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A prática da ciência social e o exercício do poder são radicalmente incompatíveis
Crítica e masoquismo
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
A maneira mais fácil de ter contato direto com autoridades brasileiras é sair do país. No curto período que tenho passado aqui na
Universidade de Stanford (EUA) já
encontrei umas quatro. A última
foi o secretário de Estado de Direitos Humanos, José Gregori. O encontro aconteceu em maio, durante uma Semana Brasileira organizada com competência pela Associação de Estudantes Brasileiros,
com apoio do Centro de Estudos
Latino-americanos e outras instituições de Stanford.
Em meio às inevitáveis demonstrações de música, dança e capoeira (Mestre Beicola foi a estrela),
houve também um painel sobre direitos humanos e cidadania, de
que foi convidado de honra o secretário Gregori. Compuseram a
mesa, além do secretário, o cônsul
brasileiro em San Francisco, José
Augusto Lindgren Alves, a juíza do
trabalho Mylene Pereira e eu mesmo.
O cônsul falou sobre os acordos
internacionais sobre direitos humanos, tema de sua especialidade.
A juíza discutiu a relação entre direitos humanos e o sistema judiciário. Eu apresentei um trabalho,
já exposto e publicado no Brasil,
sobre a relação entre educação e cidadania. Com a ajuda de transparências, mostrei uma dezena de
quadros estatísticos que demonstravam, primeiro, a vexaminosa situação educacional do país e, a seguir, o grande impacto positivo
que a escolaridade exerce sobre a
consciência e o exercício de direitos.
Coube ao secretário Gregori falar
por último. Entre outras coisas,
afirmou que o país conseguiu
grande progresso em matéria de
direitos humanos nos últimos dois
anos, isto é, desde a criação da Secretaria por ele dirigida. Citou como um dos principais avanços o
novo Código Nacional de Trânsito.
Revelou também que os consumidores brasileiros tinham dado ao
mundo um exemplo ímpar de cidadania, ao terem deixado de
comprar os produtos cujos preços
sofreram aumento após a desvalorização do real, evitando assim a
retomada da inflação. O que mais
impressionou a refinada platéia de
professores e estudantes de pós-graduação, no entanto, foi sua garantia de que os brasileiros há mais
de dois anos ausentes do país, ao
regressarem, o encontrariam mudado no que se refere à área de direitos humanos.
Defender o governo e fazer propaganda do próprio trabalho é natural e esperado de autoridades. A
razão que me leva a comentar o
painel é outra. Antes de elogiar o
próprio trabalho e o senso de cidadania dos brasileiros, o secretário
Gregori, reagindo obviamente à
minha intervenção, afirmou que
os cientistas sociais tinham tendências masoquistas.
A afirmação, que era uma acusação, intrigou-me por duas razões.
A primeira era sua gratuidade. Eu
não criticara, nem mesmo mencionara, o governo em minha intervenção. Apenas apresentara dados
estatísticos oriundos de fontes oficiais e de pesquisas acadêmicas.
Meu único comentário analítico
foi uma citação de Joaquim Nabuco, uma homenagem ao patrono
da cátedra que ocupo na universidade. O contra-ataque do secretário Gregori não foi assim precedido por um ataque. Mas talvez a alta
sensibilidade secretarial possa ser
explicada pela conhecida tradição
de governantes brasileiros, e possivelmente também de outros países, de não aceitarem que se digam
no exterior coisas feias sobre o
país, mesmo que sancionadas pela
objetividade das estatísticas.
A segunda razão é mais intrigante. Por que usar o velho recurso retórico do ataque pessoal, do argumento "ad hominem", em vez de
discutir a substância do raciocínio,
sobretudo diante de um público
universitário, por excelência raciocinante?
Tachar os cientistas sociais de
masoquistas envolve de imediato a
questão da relação entre os dois fenômenos. É a ciência social que
torna as pessoas masoquistas, ou
são os masoquistas que se tornam
cientistas sociais? Mas deixemos
essa discussão para psicólogos sociais e psicanalistas. O ponto mais
importante tem a ver com a desqualificação de argumentos, ou
dados, sob a alegação de que os autores sofrem de algum problema
psicológico. Com boa vontade, e
para efeito de argumentação, no
entanto, vou entender por masoquismo a tendência a criticar, a
apontar aspetos desagradáveis da
realidade, inclusive do próprio
país. A recusa do debate substantivo teria então a ver com a dificuldade que têm governantes em
aceitar a divergência e a crítica,
reais ou imaginadas.
O fato de que a dificuldade atinge
pessoas como o secretário Gregori,
respeitado pelo real trabalho que
tem feito a favor da proteção de direitos, inclusive, espera-se, do direito de discordar, indica a existência de uma área de incompatibilidade radical entre o exercício do
poder e a prática da ciência social.
O fascínio do poder
Parece-me importante salientar
esse ponto, num momento em que
tantos cientistas sociais ocupam
posições de poder, inclusive a mais
alta delas. Cientistas sociais, como
os outros mortais, são sensíveis ao
fascínio do poder. Não há nada de
errado nisso. É possível também,
embora não seja fácil, haver diálogo e eventual colaboração entre
cientistas sociais e governantes.
Mas ninguém pode exercer o poder como cientista social. Os objetivos, os compromissos, os métodos, a ética são diferentes, como já
nos lembrou Max Weber. O cientista social, enquanto tal, não pode
abrir mão de sua liberdade de pesquisar, de analisar, de criticar, sobretudo em um país como o nosso,
sob pena de se transformar em engenheiro social. O exercício da crítica é inseparável da natureza da
profissão como tem sido vista até
agora, e como seria de desejar que
continuasse a ser vista.
Ser tachado de masoquista não
será certamente o preço mais alto a
ser pago pelo exercício da profissão assim concebida.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu último livro é "Pontos
e Bordados" (Editora da Universidade Federal de
Minas Gerais). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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