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Zaratustra no Rio
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
É sensação estranha toda vez
que, para uma consulta ou deleite,
apanho um dos oito volumes da
"História da Literatura Ocidental",
de Otto Maria Carpeaux. Simplesmente não acredito que convivi
durante anos com aquele autor
que, a cada releitura, adquire a estatura de um clássico. Leio Shakespeare, Dante, Balzac, a "Enciclopédia Britânica" e nunca perco o referencial da distância, o abismo
que separa leitor e autor. São semideuses que ocupam um olimpo esmaecido pelo tempo, pela história
ou pela lenda.
Daí a confusão quando leio Carpeaux e as imagens que dele guardo se misturam à reverência e ao
espanto que seu texto me provoca.
Impossível ligar o autor daquele
prefácio de "Os Irmãos Karamazov" ao companheiro de viagem
que, numa ida a Belo Horizonte,
tendo a bomba de gasolina do meu
simca-chambord esquentado e interrompido a alimentação do carburador, tirou a camisa, foi a um
regato próximo, molhou-a e com
ela esfriou a peça que provocava a
pane do motor.
Abandonamos quase ao mesmo
tempo o "Correio da Manhã", pedindo demissão em 1965. Havíamos formado um grupo de resistência ao movimento militar de 64.
Sem jornal, a alternativa foi aceitar
convites para palestras em universidades e associações. O AI-5 ainda
não havia sido baixado e sobrara
um fiapo de liberdade para alguns
poucos espernearem. Carpeaux
esperneou com a violência proporcional à imensidão de seu caráter e
cultura.
Na redação, em tempos mais calmos, ele era um dos primeiros a
chegar e um dos últimos a sair. Fumava tanto ou mais do que Graciliano Ramos -e por acaso cito os
dois pólos daquela sala que Paulo
Bittencourt tornou refrigerada, a
primeira redação refrigerada do
Rio, e a mais influente. Graciliano
fazia a revisão de originais, não havia ainda o copidesque, ele se limitava a dar morfologia e sintaxe aos
textos produzidos por aquilo que
chamavam de "rapaziada".
Carpeaux era o cimo, a montanha, onde o anacoreta de Zaratustra orava, chorava e murmurava. E
ele fazia as três coisas, principalmente murmurava.
Vindo de Viena, onde até o último instante escreveu editoriais e
artigos contra o nazismo, procurava esconder um cristianismo que
alguns judeus convertidos relutam
em exibir.
O "Maria" de seu nome é sintomático. Carpeaux rezava; várias
noites dormimos no mesmo quarto em hotéis e alojamentos estudantis, eu ainda muito moço, ele
entrado nos 60 anos. Eu sabia que
ele rezava.
Apesar de gago, sobretudo quando tinha acessos de cólera -ele me
ensinou que Tomás de Aquino defendera a "ira bonna" como necessária em certas ocasiões- era espantosa sua capacidade de síntese
nos debates que mantínhamos
com os estudantes. Muitos nem
percebiam esse defeito, que atribuíam a um passo de sua biografia
não bem esclarecido: fora obrigado pelos nazistas a assistir ao estupro de uma parenta próxima.
Sou responsável por uma anedota da qual o próprio Carpeaux gostava. Indo no mesmo simca-chambord para São Paulo, ele começara
a falar "Kierkegaard" em Itatiaia e
só conseguiu terminar aquele nome em Taubaté.
Grande Carpeaux! Em 1966,
Maurício Gomes Leite fez um documentário ("O Velho e o Novo")
sobre sua influência na cultura
brasileira. Fomos à sua casa, Maurício, o então fotógrafo José Carlos
Avellar e eu. Nossa perplexidade: a
estante dele tinha pouquíssimos livros. Sua discoteca era mínima e
de má qualidade. Como podia
aquele homem ter armazenado tamanha cultura?
Na música, ele preferia ler a partitura, dispensando maestros majestosos e intérpretes temperamentais. Ia à essência de Bach, de
Beethoven, de Mozart. Na literatura, formara-se a lenda de que decorara enciclopédias inteiras.
O certo é que dominava um sistema mnemônico que o Callado garantia ter sido aprendido em Cracóvia, onde Carpeaux fizera um
curso de filosofia. Num sábado,
dei-lhe carona da rua Paula Freitas
(Copacabana) até a redação.
Mal ele chegou, foi à sua mesa,
apanhou uma lauda e escreveu em
cima um número: "144". E, na primeira linha, a palavra "Novalis,"
com a vírgula mesmo. Sei disso
porque ele foi ao banheiro, e eu fui
assuntar o que ele escrevia tão repentinamente, como se estivesse
em meio de um artigo que estava
todo em sua cabeça.
No dia seguinte, li o editorial do
"Correio", os tópicos, a crônica
que abria a página da internacional e que era assinada por OMC.
Não havia nenhuma referência a
Novalis.
Semanas após, ajudo-o a fazer o
embrulho dos originais de um livro sobre a literatura alemã, que
ele encaminhava à editora Cultrix.
Numa bobeada dele, procurei a página 144. Lá estava Novalis com
vírgula. Ele interrompera o texto
quando fui apanhá-lo em casa,
veio conversando amenidades pelo caminho. Chegando à redação,
para não esquecer a numeração e a
continuidade do texto, anotara o
ponto em que parara. Sem nenhuma ficha, sem nenhuma consulta.
Quando a Civilização Brasileira
homenageou-o pelos seus 25 anos
de literatura no Brasil, Carpeaux
publicou um pequeno e precioso
livro de ensaios. Levei um susto
quando me informaram que ele
dedicara aquele volume a três amigos: Antônio Houaiss, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito e eu.
Meses antes de morrer, Carpeaux visitou sua Viena após tantos anos de exílio. Quando voltou e
soube que eu iria a Viena, tentou
me convencer a ir a qualquer outra
parte do mundo ou da matéria,
menos a Viena. Já contei isso num
artigo que publiquei na Ilustrada,
sob o título de "Viagem em torno
de Otto Maria Carpeaux".
A Viena que ele amava estava
dentro dele. E foi assim que ele me
ensinou a amá-la. Ensinando-me
também a amá-lo.
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