São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Zaratustra no Rio

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

É sensação estranha toda vez que, para uma consulta ou deleite, apanho um dos oito volumes da "História da Literatura Ocidental", de Otto Maria Carpeaux. Simplesmente não acredito que convivi durante anos com aquele autor que, a cada releitura, adquire a estatura de um clássico. Leio Shakespeare, Dante, Balzac, a "Enciclopédia Britânica" e nunca perco o referencial da distância, o abismo que separa leitor e autor. São semideuses que ocupam um olimpo esmaecido pelo tempo, pela história ou pela lenda.
Daí a confusão quando leio Carpeaux e as imagens que dele guardo se misturam à reverência e ao espanto que seu texto me provoca. Impossível ligar o autor daquele prefácio de "Os Irmãos Karamazov" ao companheiro de viagem que, numa ida a Belo Horizonte, tendo a bomba de gasolina do meu simca-chambord esquentado e interrompido a alimentação do carburador, tirou a camisa, foi a um regato próximo, molhou-a e com ela esfriou a peça que provocava a pane do motor.
Abandonamos quase ao mesmo tempo o "Correio da Manhã", pedindo demissão em 1965. Havíamos formado um grupo de resistência ao movimento militar de 64. Sem jornal, a alternativa foi aceitar convites para palestras em universidades e associações. O AI-5 ainda não havia sido baixado e sobrara um fiapo de liberdade para alguns poucos espernearem. Carpeaux esperneou com a violência proporcional à imensidão de seu caráter e cultura.
Na redação, em tempos mais calmos, ele era um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair. Fumava tanto ou mais do que Graciliano Ramos -e por acaso cito os dois pólos daquela sala que Paulo Bittencourt tornou refrigerada, a primeira redação refrigerada do Rio, e a mais influente. Graciliano fazia a revisão de originais, não havia ainda o copidesque, ele se limitava a dar morfologia e sintaxe aos textos produzidos por aquilo que chamavam de "rapaziada".
Carpeaux era o cimo, a montanha, onde o anacoreta de Zaratustra orava, chorava e murmurava. E ele fazia as três coisas, principalmente murmurava.
Vindo de Viena, onde até o último instante escreveu editoriais e artigos contra o nazismo, procurava esconder um cristianismo que alguns judeus convertidos relutam em exibir.
O "Maria" de seu nome é sintomático. Carpeaux rezava; várias noites dormimos no mesmo quarto em hotéis e alojamentos estudantis, eu ainda muito moço, ele entrado nos 60 anos. Eu sabia que ele rezava.
Apesar de gago, sobretudo quando tinha acessos de cólera -ele me ensinou que Tomás de Aquino defendera a "ira bonna" como necessária em certas ocasiões- era espantosa sua capacidade de síntese nos debates que mantínhamos com os estudantes. Muitos nem percebiam esse defeito, que atribuíam a um passo de sua biografia não bem esclarecido: fora obrigado pelos nazistas a assistir ao estupro de uma parenta próxima.
Sou responsável por uma anedota da qual o próprio Carpeaux gostava. Indo no mesmo simca-chambord para São Paulo, ele começara a falar "Kierkegaard" em Itatiaia e só conseguiu terminar aquele nome em Taubaté.
Grande Carpeaux! Em 1966, Maurício Gomes Leite fez um documentário ("O Velho e o Novo") sobre sua influência na cultura brasileira. Fomos à sua casa, Maurício, o então fotógrafo José Carlos Avellar e eu. Nossa perplexidade: a estante dele tinha pouquíssimos livros. Sua discoteca era mínima e de má qualidade. Como podia aquele homem ter armazenado tamanha cultura?
Na música, ele preferia ler a partitura, dispensando maestros majestosos e intérpretes temperamentais. Ia à essência de Bach, de Beethoven, de Mozart. Na literatura, formara-se a lenda de que decorara enciclopédias inteiras.
O certo é que dominava um sistema mnemônico que o Callado garantia ter sido aprendido em Cracóvia, onde Carpeaux fizera um curso de filosofia. Num sábado, dei-lhe carona da rua Paula Freitas (Copacabana) até a redação.
Mal ele chegou, foi à sua mesa, apanhou uma lauda e escreveu em cima um número: "144". E, na primeira linha, a palavra "Novalis," com a vírgula mesmo. Sei disso porque ele foi ao banheiro, e eu fui assuntar o que ele escrevia tão repentinamente, como se estivesse em meio de um artigo que estava todo em sua cabeça.
No dia seguinte, li o editorial do "Correio", os tópicos, a crônica que abria a página da internacional e que era assinada por OMC. Não havia nenhuma referência a Novalis.
Semanas após, ajudo-o a fazer o embrulho dos originais de um livro sobre a literatura alemã, que ele encaminhava à editora Cultrix. Numa bobeada dele, procurei a página 144. Lá estava Novalis com vírgula. Ele interrompera o texto quando fui apanhá-lo em casa, veio conversando amenidades pelo caminho. Chegando à redação, para não esquecer a numeração e a continuidade do texto, anotara o ponto em que parara. Sem nenhuma ficha, sem nenhuma consulta.
Quando a Civilização Brasileira homenageou-o pelos seus 25 anos de literatura no Brasil, Carpeaux publicou um pequeno e precioso livro de ensaios. Levei um susto quando me informaram que ele dedicara aquele volume a três amigos: Antônio Houaiss, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito e eu.
Meses antes de morrer, Carpeaux visitou sua Viena após tantos anos de exílio. Quando voltou e soube que eu iria a Viena, tentou me convencer a ir a qualquer outra parte do mundo ou da matéria, menos a Viena. Já contei isso num artigo que publiquei na Ilustrada, sob o título de "Viagem em torno de Otto Maria Carpeaux".
A Viena que ele amava estava dentro dele. E foi assim que ele me ensinou a amá-la. Ensinando-me também a amá-lo.


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