|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Volume extraordinário de informações permitia a Carpeaux investigar a razão
das coisas e impor a coerência do texto
O método da fúria e da clareza
JOSÉ LINO GRÜNEWALD
especial para a Folha
O dia 9 de março do próximo e
pré-comemorado ano 2000 (último deste século 20 e do segundo
milênio) irá assinalar o centenário
de nascimento de um dos maiores
intelectuais e "scholars" que viveu
grande parte de sua vida em nosso
país. Estou falando de Otto Maria
Carpeaux, que nasceu em Viena
naquela data e morreu na cidade
do Rio de Janeiro, em 3 de fevereiro de 1978. Então, já era brasileiro
de mais de três décadas, pois se naturalizara em 1944.
Além de todos os títulos obtidos
na Europa, formado em ciências
exatas, letras e filosofia, dos livros
que lá publicou e que veio a desprezar e das inúmeras personalidades que conheceu e/ou conviveu, foi um luminar do jornalismo,
principalmente no "Correio da
Manhã", até o final dos anos 60.
Nessa altura, companheiro dele
anos e muitos anos na mesma sala,
recorro à memória.
Quem, no meio da tarde, chegasse ao terceiro andar de um velho
prédio na avenida Gomes Freire
-onde ficava toda a redação-,
haveria de ver uma porta fechada
numa das extremidades do salão.
Abrindo-a e entrando, se deparava
com uma sala com umas dez mesas
metálicas e suas respectivas máquinas de escrever, que poderiam
ficar embutidas. Essa sala tinha sido cognominada de Pétit Trianon,
porque era ocupada pela maioria
dos principais redatores, editorialistas e articulistas da casa: boa
parte deles, escritores de renome.
Numa das mesas do fundo, estava um homem, nestas possíveis
posturas ou atitudes: cabeça debruçada sobre o papel, com a face
quase se esfregando no mesmo e a
escrever quase ininterruptamente
com a caneta (não usava a máquina); a cabeça também imersa em
alguns pedaços de papel escritos,
de onde aparentemente extraía
suas formulações; fumando e com
o olhar para o espaço, em meditação; andando de um lado para o
outro. Esse homem era Otto Maria
Carpeaux.
Iluminado, dotado de humor e
alegria, do dom da fúria, mas sofrido. Um sofrimento que não apenas
vinha de um passado de fuga ao
nazismo -abandono de seus bens
e de sua terra natal, peregrinação
por alguns dos países da Europa
(trabalhou algum tempo, como
jornalista, na Antuérpia), chegando, enfim, ao Brasil, em São Paulo,
em 1939-, mas um sofrimento
também presente, relacionado
com problemas de trabalho, incompreensões, um certo sectarismo seu e, principalmente, algumas
fases do nosso regime político.
Ele foi diretor da Biblioteca da
Faculdade Nacional de Filosofia,
entre 1942 e 1944, e, depois, da Biblioteca da Fundação Getúlio Vargas. Publicou muitos livros, monografias, separatas etc., mas aquilo
que lhe propiciou o máximo de
projeção foi "O Correio da Manhã": ali, sem falar nos artigos, na
literatura, na música, nas artes, a
aura do editorialista, o ápice do
domínio de uma língua -uma língua que não era natal. Aliás, vale
recordar um fato algo curioso: três
outros intelectuais, vindos também da Europa Central, e que,
aqui, também na mesma época,
obtiveram a mestria da língua e
deixaram contribuição importante na área da literatura, estética,
historiografia ou filosofia, entre
outras coisas: o húngaro Paulo Rónai, o alemão Anatol Rosenfeld e o
fabuloso tcheco Vilém Flusser.
Carpeaux foi, sem dúvida, um
dos maiores editorialistas (isto é,
aquele que redige a opinião do jornal, não assinando) de nossa imprensa, sabendo dosar sarcasmo e
ironia e rigorosamente insuperável quando falava nas entrelinhas.
Essa proeza serve para descerrar
outra das suas facetas -o método.
A emoção, presente em seu comportamento e, muitas vezes, acentuada em suas reações, desaparecia no momento das formulações.
Era o método, não na acepção rotineira do termo metódico, ou o assim chamado metodismo, mas,
sim, a carga de informações que
permitem investigar a razão das
coisas. Tomava partido muitas vezes, posições arraigadas. No entanto, na hora da formulação escrita, o
método ia condicionando uma determinada estrutura para a coerência do texto. A explosão já estava
contida a fim de dar asas à manifestação: entre a "faca só lâmina",
de João Cabral, e a "emotion recollected in tranquility" (emoção
captada na tranquilidade), de
Wordsworth. Em suma, a "clarté"
(clareza).
Mas, no jornal, ele não se limitava a ficar fechado na sala do Petit
Trianon. Batia o seu papo, trocava
idéias, tanto com os companheiros
dentro ou do outro lado da porta.
Era comum vê-lo andando pela redação, conversando, lendo na diagonal a matéria de alguma reportagem para a hipótese de redigir um
tópico, os assim antigamente denominados "sueltos" -comentários de menor extensão que apareciam debaixo do editorial e do "reboque". Este último era uma espécie de semi-editorial, na maioria
das vezes, escrito por Carpeaux.
Tinha prazer em atender às pessoas, principalmente aos jovens e,
mesmo, muitos companheiros que
tivessem alguma dúvida. A sua
erudição de "homem enciclopédico" não era tão-somente um empilhamento de informações, algo estático tal um monumento. Funcionava, numa espécie de mínimo-múltiplo-comum, como meio dinâmico de atingir uma sólida simplicidade dos enunciados ou a nitidez dos dados, das formulações.
Uma consequência disso tudo é a
sua "História da Literatura Ocidental", em oito volumes (Ed. O
Cruzeiro), um dos pontos mais altos de nossa prosa, publicado entre
1959 e 1966. Consegue fazer com
que tema dessa natureza seja devorado como um folhetim -tudo
em linguagem simples e direta,
sem parafernálias vocabulares ou
terminológicas de narradores
cientificistas, estruturalistas, pós
modernistas etc. & tal. E aí, de novo, o método.
Aprende-se muito com a leitura
dos oito volumes e inexiste parti
pris exagerado ou inadequado de
qualquer enfoque extraliterário,
seja o sociológico, o psicológico ou
o político. Observa-se, sim, o escritor condicionado ao processo, às
formas de conhecimento. Ninguém explica com melhor evidência o que era o mundo da Grécia
antiga e a impossibilidade de revivê-lo. Ou, por exemplo, os motivos
do romantismo ou a solidão do escritor com a ascensão da burguesia
e da Revolução Industrial.
Deixou também dois outros livros de grande interesse -"Uma
Nova História da Música" (1959) e
"A Literatura Alemã" (1964)-,
que adotam os mesmos métodos e
critérios que a "História da Literatura Ocidental".
O nosso convívio, além dos assuntos do dia e das piadas de praxe, motivava muitas brincadeiras,
tais como: qual os dez mais da literatura inglesa, não valendo Shakespeare, ou quais os maiores quadros? Carpeaux também gostava
muito de deixar documentos ou
recortes na mesa dos companheiros, que pudessem lhes causar interesse. Em decorrência disso, ele,
talvez numa única ocasião, teve
uma tradução de poesia de sua autoria publicada.
Tudo começou em setembro de
1964, quando ele deixou sobre minha mesa um longo poema do concreto Eugen Gomringer, com a tradução para o português feita com a
sua caligrafia inconfundível. Sabia
do meu interesse, tanto que, dias
depois, me disse: "Afinal, vou escrever sobre a sua poesia concreta"
-o que consumou, num artigo de
21 de novembro daquele ano, um
texto isento, sem tomar partido,
com o título de "Espaço e Espaços"
e concluindo que... "o conceito Espaço e o problema Espaço são
imensamente complexos" e que "o
enquadramento do espaço de página no poema não pode ser apodictamente afirmado nem negado".
Aconteceu, então, que, depois da
sua morte, entreguei a sua tradução ao amigo comum e também
grande escritor, Antônio Houaiss,
que a publicou, acompanhada de
comentários, em "José", nº 10, de
julho de 1978. Aliás, quando deixou o "Correio da Manhã", por
volta de 1967/68, passou o período
final de sua vida como um dos
principais editores da "Enciclopédia Delta-Larousse" e, posteriormente, "Mirador" -ambas dirigidas pelo mesmo Antônio Houaiss.
E, ainda ressaltando Houaiss,
que também foi nosso companheiro de Trianon, em 1964-65, logo
depois de ter sido cassado e enquanto escrevia a sua histórica tradução de "Ulisses", de James Joyce, e fazia editoriais para a primeira página, ainda também recordo a
nossa caminhada para, antes da
reunião dos editorialistas, jantarmos naqueles simplórios, porém
ótimos restaurantes da Lapa, todos
pelas imediações: podia ser o Marialva, logo em frente, o Tin Tin, o
Alemão, o Capela e, especialmente, na rua do Lavradio, o Restaurante e Hotel São Francisco, onde,
na época, um misterioso estrangulador havia liquidado pelo menos
três belezocas do bairro.
Além de nós três, marchavam no
grupo Carlos Heitor Cony, Moniz
Vianna, Armando Micelli, Newton
Rodrigues, Edilberto Costa e Adelson Magalhães, o veterano All
Right e mais um ou outro fruto do
esquecimento. Lá no São Francisco, de comprimento longo e azulejos brancos, dando a impressão de
barbearia de outrora, entre refrigerantes, mineral, caipirinha ou cerveja, comia-se uma magnífica costeleta de porco, uma salada no capricho e era comum, ao fim, o brado de Carpeaux, exigindo muzzarella com carozza, que era especialidade da casa. E, lá, prosseguiam
as discussões e a eterna veemência
Otto de Maria.
"Altri tempi". Hoje, decorridos
mais de 20 anos do fechamento do
jornal e de sua morte, ficam na memória aqueles também mais de 20
anos de alegria, inteligência, coragem, humor, fofoca, camaradagem e até mistérios. E, sobressaindo, a figura dele e aquela espécie de
profecia no ensaio "Meu Dante":
"Como Petrarca, "pace non trovo",
a não ser que a encontrarei no último momento, quando a noite chamará para partir...".
José Lino Grünewald é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Carlos Gardel, Lunfardo e Tango" (Nova Fronteira) e tradutor de "Cantos", de
Ezra Pound (Nova Fronteira), entre outros.
Texto Anterior: Carlos Heitor Cony: Zaratustra no Rio Próximo Texto: Cronologia Índice
|