São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Volume extraordinário de informações permitia a Carpeaux investigar a razão das coisas e impor a coerência do texto
O método da fúria e da clareza

JOSÉ LINO GRÜNEWALD
especial para a Folha

O dia 9 de março do próximo e pré-comemorado ano 2000 (último deste século 20 e do segundo milênio) irá assinalar o centenário de nascimento de um dos maiores intelectuais e "scholars" que viveu grande parte de sua vida em nosso país. Estou falando de Otto Maria Carpeaux, que nasceu em Viena naquela data e morreu na cidade do Rio de Janeiro, em 3 de fevereiro de 1978. Então, já era brasileiro de mais de três décadas, pois se naturalizara em 1944.
Além de todos os títulos obtidos na Europa, formado em ciências exatas, letras e filosofia, dos livros que lá publicou e que veio a desprezar e das inúmeras personalidades que conheceu e/ou conviveu, foi um luminar do jornalismo, principalmente no "Correio da Manhã", até o final dos anos 60. Nessa altura, companheiro dele anos e muitos anos na mesma sala, recorro à memória.
Quem, no meio da tarde, chegasse ao terceiro andar de um velho prédio na avenida Gomes Freire -onde ficava toda a redação-, haveria de ver uma porta fechada numa das extremidades do salão. Abrindo-a e entrando, se deparava com uma sala com umas dez mesas metálicas e suas respectivas máquinas de escrever, que poderiam ficar embutidas. Essa sala tinha sido cognominada de Pétit Trianon, porque era ocupada pela maioria dos principais redatores, editorialistas e articulistas da casa: boa parte deles, escritores de renome.
Numa das mesas do fundo, estava um homem, nestas possíveis posturas ou atitudes: cabeça debruçada sobre o papel, com a face quase se esfregando no mesmo e a escrever quase ininterruptamente com a caneta (não usava a máquina); a cabeça também imersa em alguns pedaços de papel escritos, de onde aparentemente extraía suas formulações; fumando e com o olhar para o espaço, em meditação; andando de um lado para o outro. Esse homem era Otto Maria Carpeaux.
Iluminado, dotado de humor e alegria, do dom da fúria, mas sofrido. Um sofrimento que não apenas vinha de um passado de fuga ao nazismo -abandono de seus bens e de sua terra natal, peregrinação por alguns dos países da Europa (trabalhou algum tempo, como jornalista, na Antuérpia), chegando, enfim, ao Brasil, em São Paulo, em 1939-, mas um sofrimento também presente, relacionado com problemas de trabalho, incompreensões, um certo sectarismo seu e, principalmente, algumas fases do nosso regime político.
Ele foi diretor da Biblioteca da Faculdade Nacional de Filosofia, entre 1942 e 1944, e, depois, da Biblioteca da Fundação Getúlio Vargas. Publicou muitos livros, monografias, separatas etc., mas aquilo que lhe propiciou o máximo de projeção foi "O Correio da Manhã": ali, sem falar nos artigos, na literatura, na música, nas artes, a aura do editorialista, o ápice do domínio de uma língua -uma língua que não era natal. Aliás, vale recordar um fato algo curioso: três outros intelectuais, vindos também da Europa Central, e que, aqui, também na mesma época, obtiveram a mestria da língua e deixaram contribuição importante na área da literatura, estética, historiografia ou filosofia, entre outras coisas: o húngaro Paulo Rónai, o alemão Anatol Rosenfeld e o fabuloso tcheco Vilém Flusser.
Carpeaux foi, sem dúvida, um dos maiores editorialistas (isto é, aquele que redige a opinião do jornal, não assinando) de nossa imprensa, sabendo dosar sarcasmo e ironia e rigorosamente insuperável quando falava nas entrelinhas. Essa proeza serve para descerrar outra das suas facetas -o método.
A emoção, presente em seu comportamento e, muitas vezes, acentuada em suas reações, desaparecia no momento das formulações. Era o método, não na acepção rotineira do termo metódico, ou o assim chamado metodismo, mas, sim, a carga de informações que permitem investigar a razão das coisas. Tomava partido muitas vezes, posições arraigadas. No entanto, na hora da formulação escrita, o método ia condicionando uma determinada estrutura para a coerência do texto. A explosão já estava contida a fim de dar asas à manifestação: entre a "faca só lâmina", de João Cabral, e a "emotion recollected in tranquility" (emoção captada na tranquilidade), de Wordsworth. Em suma, a "clarté" (clareza).
Mas, no jornal, ele não se limitava a ficar fechado na sala do Petit Trianon. Batia o seu papo, trocava idéias, tanto com os companheiros dentro ou do outro lado da porta. Era comum vê-lo andando pela redação, conversando, lendo na diagonal a matéria de alguma reportagem para a hipótese de redigir um tópico, os assim antigamente denominados "sueltos" -comentários de menor extensão que apareciam debaixo do editorial e do "reboque". Este último era uma espécie de semi-editorial, na maioria das vezes, escrito por Carpeaux.
Tinha prazer em atender às pessoas, principalmente aos jovens e, mesmo, muitos companheiros que tivessem alguma dúvida. A sua erudição de "homem enciclopédico" não era tão-somente um empilhamento de informações, algo estático tal um monumento. Funcionava, numa espécie de mínimo-múltiplo-comum, como meio dinâmico de atingir uma sólida simplicidade dos enunciados ou a nitidez dos dados, das formulações.
Uma consequência disso tudo é a sua "História da Literatura Ocidental", em oito volumes (Ed. O Cruzeiro), um dos pontos mais altos de nossa prosa, publicado entre 1959 e 1966. Consegue fazer com que tema dessa natureza seja devorado como um folhetim -tudo em linguagem simples e direta, sem parafernálias vocabulares ou terminológicas de narradores cientificistas, estruturalistas, pós modernistas etc. & tal. E aí, de novo, o método.
Aprende-se muito com a leitura dos oito volumes e inexiste parti pris exagerado ou inadequado de qualquer enfoque extraliterário, seja o sociológico, o psicológico ou o político. Observa-se, sim, o escritor condicionado ao processo, às formas de conhecimento. Ninguém explica com melhor evidência o que era o mundo da Grécia antiga e a impossibilidade de revivê-lo. Ou, por exemplo, os motivos do romantismo ou a solidão do escritor com a ascensão da burguesia e da Revolução Industrial.
Deixou também dois outros livros de grande interesse -"Uma Nova História da Música" (1959) e "A Literatura Alemã" (1964)-, que adotam os mesmos métodos e critérios que a "História da Literatura Ocidental".
O nosso convívio, além dos assuntos do dia e das piadas de praxe, motivava muitas brincadeiras, tais como: qual os dez mais da literatura inglesa, não valendo Shakespeare, ou quais os maiores quadros? Carpeaux também gostava muito de deixar documentos ou recortes na mesa dos companheiros, que pudessem lhes causar interesse. Em decorrência disso, ele, talvez numa única ocasião, teve uma tradução de poesia de sua autoria publicada.
Tudo começou em setembro de 1964, quando ele deixou sobre minha mesa um longo poema do concreto Eugen Gomringer, com a tradução para o português feita com a sua caligrafia inconfundível. Sabia do meu interesse, tanto que, dias depois, me disse: "Afinal, vou escrever sobre a sua poesia concreta" -o que consumou, num artigo de 21 de novembro daquele ano, um texto isento, sem tomar partido, com o título de "Espaço e Espaços" e concluindo que... "o conceito Espaço e o problema Espaço são imensamente complexos" e que "o enquadramento do espaço de página no poema não pode ser apodictamente afirmado nem negado".
Aconteceu, então, que, depois da sua morte, entreguei a sua tradução ao amigo comum e também grande escritor, Antônio Houaiss, que a publicou, acompanhada de comentários, em "José", nº 10, de julho de 1978. Aliás, quando deixou o "Correio da Manhã", por volta de 1967/68, passou o período final de sua vida como um dos principais editores da "Enciclopédia Delta-Larousse" e, posteriormente, "Mirador" -ambas dirigidas pelo mesmo Antônio Houaiss.
E, ainda ressaltando Houaiss, que também foi nosso companheiro de Trianon, em 1964-65, logo depois de ter sido cassado e enquanto escrevia a sua histórica tradução de "Ulisses", de James Joyce, e fazia editoriais para a primeira página, ainda também recordo a nossa caminhada para, antes da reunião dos editorialistas, jantarmos naqueles simplórios, porém ótimos restaurantes da Lapa, todos pelas imediações: podia ser o Marialva, logo em frente, o Tin Tin, o Alemão, o Capela e, especialmente, na rua do Lavradio, o Restaurante e Hotel São Francisco, onde, na época, um misterioso estrangulador havia liquidado pelo menos três belezocas do bairro.
Além de nós três, marchavam no grupo Carlos Heitor Cony, Moniz Vianna, Armando Micelli, Newton Rodrigues, Edilberto Costa e Adelson Magalhães, o veterano All Right e mais um ou outro fruto do esquecimento. Lá no São Francisco, de comprimento longo e azulejos brancos, dando a impressão de barbearia de outrora, entre refrigerantes, mineral, caipirinha ou cerveja, comia-se uma magnífica costeleta de porco, uma salada no capricho e era comum, ao fim, o brado de Carpeaux, exigindo muzzarella com carozza, que era especialidade da casa. E, lá, prosseguiam as discussões e a eterna veemência Otto de Maria.
"Altri tempi". Hoje, decorridos mais de 20 anos do fechamento do jornal e de sua morte, ficam na memória aqueles também mais de 20 anos de alegria, inteligência, coragem, humor, fofoca, camaradagem e até mistérios. E, sobressaindo, a figura dele e aquela espécie de profecia no ensaio "Meu Dante": "Como Petrarca, "pace non trovo", a não ser que a encontrarei no último momento, quando a noite chamará para partir...".


José Lino Grünewald é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Carlos Gardel, Lunfardo e Tango" (Nova Fronteira) e tradutor de "Cantos", de Ezra Pound (Nova Fronteira), entre outros.

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