São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Saga interestelar gera frenesi interpretativo

ALVARO MACHADO especial para a Folha

À parte o furacão nas bilheterias e o açambarcamento do mercado de jogos e brinquedos, "Guerra nas Estrelas - Episódio 1 - A Ameaça Fantasma" provoca dilúvio na mídia, alimentado em parte por uma espécie de frenesi interpretativo.
Até o momento, uma das principais questões que ocupa os "intelectuais" de "Star Wars" é a dos sotaques étnicos bem terrestres colados a tribos e personagens descritos como "galácticos".
Nos EUA, o irreverente semanário "The Village Voice" coincide com a revista de esquerda "The Nation" numa análise que tende a ser reproduzida em todos os quadrantes.
Ambos sublinham as "reveladoras" diferenças de prosódia ouvidas durante a projeção: jedis e governantes se expressam em ressonante inglês britânico, heróis dialogam com acento norte-americano popular, e gungans, "seres inferiores de planetas periféricos" (segundo classificação da Lucasfilm), falam a "sua própria língua", que os alto-falantes dos cinemas revelam ser derivada, na verdade, do jargão inglês cunhado pela cultura negra de rua dos EUA, porém com abundância de antigas expressões de auto-humilhação e submissão. Argumenta-se, por isso, que "A Ameaça Fantasma" constitui regressão aos tempos pré-direitos civis e ao paternalismo da época de "A Cabana do Pai Tomás" (livro de Harriet Beecher Stowe, de 1852).
No artigo "Ventriloquismo Racial", da atual edição de "The Nation", Patricia J. Williams, professora de direito da Columbia University e docente de crítica e teoria no Dartmouth College, relata seu exame de jogos e material impresso consumidos por seu filho de seis anos. E conclui que "Episódio 1" é um artefato que "coloca na boca de toda uma geração estereótipos étnicos pouco sutis, típicos de simplórios e de rábulas".
Segundo a autora, o desmiolado personagem Jar Jar poderia pertencer, como alega a produtora Lucasfilm, apenas ao universo da ficção científica, mesmo tratando-se, "aparentemente, de um homem preto com cara de sapo" e que "trota", segundo explicou Ahmed Best, bailarino negro do musical "Stomp" que emprestou seus gestos à construção da figura digital, descrita nos álbuns "Star Wars" como "um ladrão Chuba".
Porém Jar Jar também fala, e problema de fato, para Williams, é a "sua idiotia mostrar-se importada diretamente dos dias de "Amos'n Andy" (seriado de rádio e TV dos EUA, anos 40 a 60, estrelado por negros, mas de caráter racista) e sua palhaçaria ser tanto mais insultante por estar vazada num "estranho mingau de estilos linguísticos africano-ocidentais, caribenhos e afro-americanos'".
Por outro lado, teria clara conotação anti-semita o pesado sotaque médio-oriental do sucateiro inescrupuloso Watto, que já foi objeto de protesto por parte de grupos de origem árabe. Williams aponta, ainda, a coincidência quase total do desenho desse personagem escravagista com a caricatura de um jornalista judeu publicada na revista vienense "Kikeriki" no final do século passado. Por fim, pode-se notar o nome dado à loja do negociante: "Mos Espa", possível abreviação de "Espaço Moisés".
A segunda maior polêmica despertada por "Episódio 1" gira em torno da inclinação sexual de Jar Jar Binks, um gay mal disfarçado, segundo "Village Voice", que, em reportagem de capa, "tirou do armário" o anfíbio. A interpretação é sedimentada por diálogos e situações do filme, e também pela multiplicação, na Internet, de sites dedicados ao personagem, porém de caráter homófobo.
Fãs da série tem ensinado como deletar, dos CD-ROMs, o gungan dúbio, cuja primeira fala -"eu te amo"- é dirigida ao jedi Qui-Gon. Inimigos de Jar Jar também propõe a George Lucas torturar ou assassinar Binks no futuro.
Críticos de alguns dos mais importantes diários norte-americanos consideram a faceta homo em Jar Jar, mas, como nas primeiras fases da saga, predominam análises de parentescos de "Episódio 1" com faroestes clássicos, filosofia zen ou ética samurai. Entre os psicólogos, volta-se a analisar a nostalgia de um pai ausente -o que aproxima o filme do prestigiado "Central do Brasil", bem como o fenômeno da inexistência da figura do mestre (ou líder) nas sociedades hodiernas.
"Ameaça Fantasma" aponta, contudo, suas baterias de voltagem sincrética também para o catolicismo e arregimenta para a "Força" novos admiradores, ao sugerir, de maneira óbvia, identificação da mãe do garoto-herói Anakin Skywalker (Pernilla August) com a Virgem Maria.
"Ani" teria sido autogerado em seu ventre, à maneira de Cristo e de avatares como Krishna e Buda, porém com a concorrência de uns tais impalpáveis "midi-chloridians". O idealizador do imbróglio, George Lucas, não mede palavras: "A Virgem Maria não foi a primeira a conceber imaculadamente. Existe concepção parecida na maioria das culturas".
Com a tecnologia digital doravante a seu favor, Lucas pode ousar as mais mirabolantes colagens simbólicas, apoiado por sua indústria milionária de efeitos especiais e pelo produtor Rick McCallum, que por sua vez declara: "Agora podemos quebrar as regras e tornar real qualquer coisa".


Alvaro Machado é jornalista, editor da revista virtual "Opera Prima"
(www.opera-prima.com) e autor de "A Sabedoria dos Animais" (Ground).


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