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Saga interestelar gera frenesi interpretativo
ALVARO MACHADO
especial para a Folha
À parte o furacão nas bilheterias
e o açambarcamento do mercado
de jogos e brinquedos, "Guerra
nas Estrelas - Episódio 1 - A
Ameaça Fantasma" provoca dilúvio na mídia, alimentado em parte por uma espécie de frenesi interpretativo.
Até o momento, uma das principais questões que ocupa os "intelectuais" de "Star Wars" é a dos
sotaques étnicos bem terrestres
colados a tribos e personagens
descritos como "galácticos".
Nos EUA, o irreverente semanário "The Village Voice" coincide
com a revista de esquerda "The
Nation" numa análise que tende a
ser reproduzida em todos os quadrantes.
Ambos sublinham as "reveladoras" diferenças de prosódia ouvidas durante a projeção: jedis e governantes se expressam em ressonante inglês britânico, heróis dialogam com acento norte-americano popular, e gungans, "seres
inferiores de planetas periféricos"
(segundo classificação da Lucasfilm), falam a "sua própria língua", que os alto-falantes dos cinemas revelam ser derivada, na
verdade, do jargão inglês cunhado pela cultura negra de rua dos
EUA, porém com abundância de
antigas expressões de auto-humilhação e submissão. Argumenta-se, por isso, que "A Ameaça Fantasma" constitui regressão aos
tempos pré-direitos civis e ao paternalismo da época de "A Cabana do Pai Tomás" (livro de Harriet Beecher Stowe, de 1852).
No artigo "Ventriloquismo Racial", da atual edição de "The Nation", Patricia J. Williams, professora de direito da Columbia University e docente de crítica e teoria no Dartmouth College, relata
seu exame de jogos e material impresso consumidos por seu filho
de seis anos. E conclui que "Episódio 1" é um artefato que "coloca
na boca de toda uma geração estereótipos étnicos pouco sutis, típicos de simplórios e de rábulas".
Segundo a autora, o desmiolado
personagem Jar Jar poderia pertencer, como alega a produtora
Lucasfilm, apenas ao universo da
ficção científica, mesmo tratando-se, "aparentemente, de um
homem preto com cara de sapo" e
que "trota", segundo explicou
Ahmed Best, bailarino negro do
musical "Stomp" que emprestou
seus gestos à construção da figura
digital, descrita nos álbuns "Star
Wars" como "um ladrão Chuba".
Porém Jar Jar também fala, e
problema de fato, para Williams,
é a "sua idiotia mostrar-se importada diretamente dos dias de
"Amos'n Andy" (seriado de rádio
e TV dos EUA, anos 40 a 60, estrelado por negros, mas de caráter
racista) e sua palhaçaria ser tanto
mais insultante por estar vazada
num "estranho mingau de estilos
linguísticos africano-ocidentais,
caribenhos e afro-americanos'".
Por outro lado, teria clara conotação anti-semita o pesado sotaque médio-oriental do sucateiro
inescrupuloso Watto, que já foi
objeto de protesto por parte de
grupos de origem árabe. Williams
aponta, ainda, a coincidência
quase total do desenho desse personagem escravagista com a caricatura de um jornalista judeu publicada na revista vienense "Kikeriki" no final do século passado.
Por fim, pode-se notar o nome
dado à loja do negociante: "Mos
Espa", possível abreviação de
"Espaço Moisés".
A segunda maior polêmica despertada por "Episódio 1" gira em
torno da inclinação sexual de Jar
Jar Binks, um gay mal disfarçado,
segundo "Village Voice", que, em
reportagem de capa, "tirou do armário" o anfíbio. A interpretação
é sedimentada por diálogos e situações do filme, e também pela
multiplicação, na Internet, de sites dedicados ao personagem, porém de caráter homófobo.
Fãs da série tem ensinado como
deletar, dos CD-ROMs, o gungan
dúbio, cuja primeira fala -"eu te
amo"- é dirigida ao jedi Qui-Gon. Inimigos de Jar Jar também
propõe a George Lucas torturar
ou assassinar Binks no futuro.
Críticos de alguns dos mais importantes diários norte-americanos consideram a faceta homo em
Jar Jar, mas, como nas primeiras
fases da saga, predominam análises de parentescos de "Episódio
1" com faroestes clássicos, filosofia zen ou ética samurai. Entre os
psicólogos, volta-se a analisar a
nostalgia de um pai ausente -o
que aproxima o filme do prestigiado "Central do Brasil", bem
como o fenômeno da inexistência
da figura do mestre (ou líder) nas
sociedades hodiernas.
"Ameaça Fantasma" aponta,
contudo, suas baterias de voltagem sincrética também para o catolicismo e arregimenta para a
"Força" novos admiradores, ao
sugerir, de maneira óbvia, identificação da mãe do garoto-herói
Anakin Skywalker (Pernilla August) com a Virgem Maria.
"Ani" teria sido autogerado em
seu ventre, à maneira de Cristo e
de avatares como Krishna e Buda,
porém com a concorrência de uns
tais impalpáveis "midi-chloridians". O idealizador do imbróglio, George Lucas, não mede palavras: "A Virgem Maria não foi a
primeira a conceber imaculadamente. Existe concepção parecida
na maioria das culturas".
Com a tecnologia digital doravante a seu favor, Lucas pode ousar as mais mirabolantes colagens
simbólicas, apoiado por sua indústria milionária de efeitos especiais e pelo produtor Rick McCallum, que por sua vez declara:
"Agora podemos quebrar as regras e tornar real qualquer coisa".
Alvaro Machado é jornalista, editor da revista
virtual "Opera Prima"
(www.opera-prima.com) e autor de "A Sabedoria dos Animais" (Ground).
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