São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Criação de Estados centralizados, o livre mercado é uma instituição insustentável
Uma aberração efêmera

da Redação

O livre mercado como superstição da era da mundialização é o principal tema de "Falso Amanhecer", de John Gray. Influente intelectual na política conservadora da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, na década passada, o professor da London School of Economics modificou, nos últimos anos, seu ponto de vista. Para ele, o "capitalismo global pode destruir a civilização liberal".
Leia, a seguir, um trecho do posfácio de "Falso Amanhecer", que está sendo lançado neste mês pela Editora Record (tradução de Max Altman. 336 págs., R$ 25,00).

JOHN GRAY

O livre mercado não é - como a atual filosofia econômica supõe - uma situação natural de negócios que ocorre depois de eliminada a interferência política no mercado. Em qualquer perspectiva histórica ampla, o livre mercado é uma aberração rara e efêmera. Mercados regulamentados são a norma, e surgem espontaneamente na vida de qualquer sociedade. O livre mercado é uma criação do poder do Estado. A idéia de que mercados livres e Estado mínimo caminham juntos, que fez parte do arsenal da Nova Direita, é uma inversão da verdade. Uma vez que a tendência natural da sociedade é de controlar mercados, os mercados livres só podem ser criados pelo poder de um Estado centralizado. Mercados livres são criações de governos fortes e não podem existir sem eles. Este é o primeiro argumento de "Falso Amanhecer".
Ele está bem ilustrado pela curta história do laissez-faire do século 19. O livre mercado foi estruturado em meados da era vitoriana na Inglaterra em condições excepcionalmente propícias. Ao contrário de outros países europeus, a Inglaterra tinha longa tradição de individualismo. Durante séculos, pequenos proprietários rurais formaram a base de sua economia. Mas, somente por intermédio do poder do Parlamento de emendar ou revogar velhos direitos de propriedade e de criar novos - por meio de Enclosure Acts, pelas quais muitas das terras comuns do país foram privatizadas-, o capitalismo agrário de grandes propriedades pôde existir.
O laissez-faire ocorreu na Inglaterra por meio da conjunção de circunstâncias históricas favoráveis com o poder ilimitado de um Parlamento em que a maioria do povo inglês não estava representado. Em meados do século 19, por intermédio das Enclosures, das Leis dos Pobres e da revogação da Lei do Grão, terra, trabalho e pão passaram a ser mercadorias como qualquer outra: o livre mercado tornou-se a principal instituição da economia.
Mas o livre mercado durou na Inglaterra apenas uma geração. (Alguns historiadores fizeram até a afirmação exagerada de que nunca houve uma era do laissez-faire.) A partir dos anos 1870, ele foi sendo legalmente extinto. Na Primeira Guerra Mundial, os mercados haviam sido amplamente regulamentados no interesse da saúde pública e da eficiência econômica, e o governo se apressou em fornecer uma série de serviços essenciais, principalmente escolas. A Grã-Bretanha continuou a ter um tipo de capitalismo bastante individualista e o livre comércio sobreviveu até a catástrofe da Grande Depressão; mas o controle político da economia havia sido reafirmado. O livre mercado era olhado como um excesso doutrinário ou então um mero anacronismo -até ser revivido pela Nova Direita na década de 1980.
A Nova Direita foi capaz de alterar irreversivelmente a vida econômica e política nos países em que tomou o poder -porém fracassou em alcançar a hegemonia que desejava. Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na Austrália e na Nova Zelândia e em alguns outros países, como o México, o Chile e a República Tcheca, os governos, fortemente influenciados pelas idéias de livre mercado, foram capazes de desmantelar boa parte de suas heranças corporativas e coletivistas. Mas, em todos os casos, as coalizões iniciais que tornaram politicamente viáveis as medidas de livre mercado foram solapadas pelos efeitos a médio prazo destas mesmas medidas.
A venda das habitações sociais para arrecadação de recursos -uma das principais medidas da política de Thatcher- foi um sucesso enquanto os preços das casas estavam subindo. Quando caíram abruptamente e milhões foram apanhados na armadilha de um débito maior que o próprio valor da casa, isso se tornou uma responsabilidade política. A privatização de bens públicos e a liberação de mercados foram politicamente vantajosas somente enquanto o boom econômico mascarava seu impacto mais profundo, que foi o de aumentar a insegurança econômica. Quando a derrocada econômica tornou esse efeito palpável, os governos da Nova Direita passaram a ter apenas uma sobrevida.
Na maioria dos países, o beneficiário político da reforma econômica neoliberal acabou sendo a esquerda moderada. Como no final do século 19, também no final do século 20 os efeitos da destruição social dos mercados livres os tornaram politicamente insustentáveis.
Isso nos conduz ao segundo elemento de "Falso Amanhecer": democracia e livre mercado são concorrentes, e não parceiros. "O capitalismo democrático" -a palavra de ordem vazia dos neoconservadores por toda parte- designa (ou esconde) uma relação profundamente problemática. O correspondente natural dos mercados livres não é um governo democrático estável. É a política volátil da insegurança econômica.
Agora, como no passado, em praticamente todas as sociedades, o mercado foi controlado de forma que não frustrasse muito duramente as necessidades humanas vitais de estabilidade e segurança. Nos contextos modernos mais recentes, os mercados livres foram acalmados por governos democráticos. O enfraquecimento do livre mercado em sua forma mais pura de meados da era vitoriana coincidiu com a ampliação do direito de voto. Da mesma forma que o laissez-faire inglês recuou com o avanço da democracia, na maioria dos países os excessos dos anos 1980 foram contidos -sob a pressão da competição democrática- por sucessivos governos. No entanto, em nível global, o livre mercado permanece irrestrito.
Um projeto histórico de reconciliação da economia de mercado com governo democrático parece estar sofrendo um recuo definitivo. A democracia social européia continua a existir em um número expressivo de países. Porém os governos social-democráticos não têm sobre a vida econômica a influência que foram capazes de exercer durante o bem-sucedido período do pós-guerra. Os mercados globais de títulos não permitirão que as democracias sociais tomem grandes empréstimos. As políticas keynesianas não são eficazes no caso das economias abertas, das quais o capital pode sair à vontade. A mobilidade mundial da produção permite que as empresas se instalem nos lugares onde a carga tributária e o ônus regulatório são menos pesados.
Os governos social-democráticos não dispõem mais dos recursos para perseguir seus objetivos pelos meios social-democráticos. Como resultado, na maioria dos países da Europa continental, o desemprego em massa é um problema sem qualquer solução evidente. Em poucos casos, circunstâncias especiais, como ganhos inesperados resultantes do petróleo na Noruega, deram aos regimes social-democráticos uma sobrevida. Mas, em termos gerais, a contradição entre social-democracia e mercados livres globais parece insuperável.
Existem hoje poucas instituições eficazes com administração econômica global e nenhuma delas é sequer remotamente democrática. Conseguir um relacionamento humano e equilibrado entre governo e economia de mercado continua a ser uma aspiração ainda distante.
Em terceiro lugar, o socialismo com sistema econômico ruiu irrecuperavelmente. Tanto em termos humanos quanto econômicos, o legado do planejamento centralizado socialista foi desastroso. A União Soviética não foi um regime que alcançou rápido progresso com um custo humano lamentavelmente alto. Foi um Estado totalitário que matou ou arruinou as vidas de milhões de pessoas e devastou o meio ambiente. Com exceção do gigantesco setor militar e algumas áreas da saúde pública, a União Soviética teve poucas conquistas genuínas no campo econômico e social. Na China maoísta, a perda de vidas por intermédio do terror e da fome induzidos pelo Estado e a destruição do meio ambiente natural pode ter sido maior até do que na URSS.
Independente do que o próximo século possa trazer, o colapso do socialismo parece irreversível. Podemos prever que no futuro não haverá dois sistemas econômicos no mundo, mas apenas variações do capitalismo.
Quarto, embora a implosão do socialismo marxista tenha sido recebida nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, como um triunfo do capitalismo de livre mercado, ela não foi seguida, na maioria dos antigos países comunistas, da adoção de qualquer modelo econômico ocidental.
Tanto na Rússia quanto na China o desaparecimento do comunismo fez reviver tipos autóctones de capitalismo, em ambos os casos deformados por sua herança comunista. A economia russa é dominada por uma espécie de sindicalismo criminoso. As origens desse peculiar sistema econômico situam-se na economia ilegal soviética, mas existem alguns pontos de semelhança com a mistura do capitalismo das grandes empresas controladas pelo Estado e o empreendimento selvagem que floresceu nas últimas décadas do czarismo. O capitalismo na China tem muito em comum com o que é praticado em todo o mundo pelos chineses da diáspora, especialmente quanto ao papel crucial nos negócios desempenhado pelas relações de parentesco, mas esse também é invadido pela corrupção e pela comercialização de instituições -inclusive as militares- que foram herdadas da era comunista.
A opinião pública vê o colapso do comunismo como uma vitória do "Ocidente". De fato, o socialismo marxista era o protótipo da ideologia ocidental. No longo curso da história, a desintegração do socialismo marxista na Rússia e na China representa uma derrota para todos os modelos ocidentais de modernização. O colapso do planejamento centralizado na União Soviética e seu desmantelamento na China marcaram o fim de uma experiência de modernização forçada em que o modelo de modernidade era a fábrica capitalista do século 19.
Em seu quinto elemento, "Falso Amanhecer" argumenta que, embora defendam sistemas econômicos diferentes, o marxismo-leninismo e o racionalismo econômico do livre mercado têm muito em comum.
Tanto o marxismo-leninismo quanto o racionalismo econômico do livre mercado adotam uma atitude de Prometeu diante da natureza e mostram pouca simpatia pelas vítimas do progresso econômico. Ambos são variações do projeto iluminista de suplantar a diversidade histórica de culturas humanas com uma civilização universal, única. Um livre mercado global é o projeto iluminista em sua forma mais recente, talvez a última.
Muitas discussões atuais confundem globalização, um processo histórico que começou há séculos, com o projeto político efêmero de um livre mercado em escala mundial. Entendida corretamente, a globalização refere-se à crescente interconexão da vida econômica e cultural em partes distantes do mundo. É uma tendência que se originou na projeção do poder europeu em outras partes do mundo pelas políticas imperialistas a partir do século 16. Hoje, o principal motor desse processo é a rápida difusão das novas tecnologias da informação, que eliminam distâncias. Pensadores convencionais imaginam que a globalização tende a criar uma civilização universal por meio da difusão mundial dos métodos e valores ocidentais -e, mais particularmente, anglo-saxônicos.
Na verdade, o desenvolvimento da economia mundial se deu principalmente em outra direção. A globalização hoje difere da economia internacional aberta que foi estabelecida sob os auspícios da Europa imperial nas quatro ou cinco décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial. No mercado global, nenhuma potência ocidental tem hoje a supremacia que tinham a Grã-Bretanha e outras potências européias naquela época. No final das contas, a banalização das novas tecnologias em todo o mundo funciona para desgastar os valores e o poder ocidentais. A difusão das tecnologias de armas nucleares para regimes antiocidentais é apenas um sintoma de uma tendência mais ampla.
Os mercados globalizados não projetam os mercados livres anglo-americanos para o mundo inteiro. Eles lançam todos os tipos de capitalismo -e não as variedades de livre mercado- no fluxo. Os mercados globais anárquicos destroem velhos capitalismos e criam novos, ao mesmo tempo que sujeitam todos a uma permanente instabilidade.


Trecho do livro "Falso Amanhecer", de John Gray.

Texto Anterior: Alvaro Machado: Saga interestelar gera frenesi interpretativo
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.