|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Criação de Estados centralizados, o livre mercado é uma instituição insustentável
Uma aberração efêmera
da Redação
O livre mercado como superstição da era da mundialização é o
principal tema de "Falso Amanhecer", de John Gray. Influente intelectual na política conservadora da
primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, na década passada, o
professor da London School of
Economics modificou, nos últimos anos, seu ponto de vista. Para
ele, o "capitalismo global pode
destruir a civilização liberal".
Leia, a seguir, um trecho do posfácio de "Falso Amanhecer", que
está sendo lançado neste mês pela
Editora Record (tradução de Max
Altman. 336 págs., R$ 25,00).
JOHN GRAY
O livre mercado não é - como a
atual filosofia econômica supõe -
uma situação natural de negócios
que ocorre depois de eliminada a
interferência política no mercado.
Em qualquer perspectiva histórica
ampla, o livre mercado é uma
aberração rara e efêmera. Mercados regulamentados são a norma,
e surgem espontaneamente na vida de qualquer sociedade. O livre
mercado é uma criação do poder
do Estado. A idéia de que mercados livres e Estado mínimo caminham juntos, que fez parte do arsenal da Nova Direita, é uma inversão da verdade. Uma vez que a tendência natural da sociedade é de
controlar mercados, os mercados
livres só podem ser criados pelo
poder de um Estado centralizado.
Mercados livres são criações de governos fortes e não podem existir
sem eles. Este é o primeiro argumento de "Falso Amanhecer".
Ele está bem ilustrado pela curta
história do laissez-faire do século
19. O livre mercado foi estruturado
em meados da era vitoriana na Inglaterra em condições excepcionalmente propícias. Ao contrário
de outros países europeus, a Inglaterra tinha longa tradição de individualismo. Durante séculos, pequenos proprietários rurais formaram a base de sua economia.
Mas, somente por intermédio do
poder do Parlamento de emendar
ou revogar velhos direitos de propriedade e de criar novos - por
meio de Enclosure Acts, pelas
quais muitas das terras comuns do
país foram privatizadas-, o capitalismo agrário de grandes propriedades pôde existir.
O laissez-faire ocorreu na Inglaterra por meio da conjunção de
circunstâncias históricas favoráveis com o poder ilimitado de um
Parlamento em que a maioria do
povo inglês não estava representado. Em meados do século 19, por
intermédio das Enclosures, das
Leis dos Pobres e da revogação da
Lei do Grão, terra, trabalho e pão
passaram a ser mercadorias como
qualquer outra: o livre mercado
tornou-se a principal instituição
da economia.
Mas o livre mercado durou na
Inglaterra apenas uma geração.
(Alguns historiadores fizeram até
a afirmação exagerada de que nunca houve uma era do laissez-faire.)
A partir dos anos 1870, ele foi sendo legalmente extinto. Na Primeira Guerra Mundial, os mercados
haviam sido amplamente regulamentados no interesse da saúde
pública e da eficiência econômica,
e o governo se apressou em fornecer uma série de serviços essenciais, principalmente escolas. A
Grã-Bretanha continuou a ter um
tipo de capitalismo bastante individualista e o livre comércio sobreviveu até a catástrofe da Grande
Depressão; mas o controle político
da economia havia sido reafirmado. O livre mercado era olhado como um excesso doutrinário ou então um mero anacronismo -até
ser revivido pela Nova Direita na
década de 1980.
A Nova Direita foi capaz de alterar irreversivelmente a vida econômica e política nos países em que
tomou o poder -porém fracassou
em alcançar a hegemonia que desejava. Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na Austrália e na Nova
Zelândia e em alguns outros países, como o México, o Chile e a República Tcheca, os governos, fortemente influenciados pelas idéias
de livre mercado, foram capazes de
desmantelar boa parte de suas heranças corporativas e coletivistas.
Mas, em todos os casos, as coalizões iniciais que tornaram politicamente viáveis as medidas de livre mercado foram solapadas pelos efeitos a médio prazo destas
mesmas medidas.
A venda das habitações sociais
para arrecadação de recursos
-uma das principais medidas da
política de Thatcher- foi um sucesso enquanto os preços das casas
estavam subindo. Quando caíram
abruptamente e milhões foram
apanhados na armadilha de um
débito maior que o próprio valor
da casa, isso se tornou uma responsabilidade política. A privatização de bens públicos e a liberação de mercados foram politicamente vantajosas somente enquanto o boom econômico mascarava seu impacto mais profundo,
que foi o de aumentar a insegurança econômica. Quando a derrocada econômica tornou esse efeito
palpável, os governos da Nova Direita passaram a ter apenas uma
sobrevida.
Na maioria dos países, o beneficiário político da reforma econômica neoliberal acabou sendo a esquerda moderada. Como no final
do século 19, também no final do
século 20 os efeitos da destruição
social dos mercados livres os tornaram politicamente insustentáveis.
Isso nos conduz ao segundo elemento de "Falso Amanhecer": democracia e livre mercado são concorrentes, e não parceiros. "O capitalismo democrático" -a palavra de ordem vazia dos neoconservadores por toda parte- designa
(ou esconde) uma relação profundamente problemática. O correspondente natural dos mercados livres não é um governo democrático estável. É a política volátil da insegurança econômica.
Agora, como no passado, em
praticamente todas as sociedades,
o mercado foi controlado de forma
que não frustrasse muito duramente as necessidades humanas
vitais de estabilidade e segurança.
Nos contextos modernos mais recentes, os mercados livres foram
acalmados por governos democráticos. O enfraquecimento do livre
mercado em sua forma mais pura
de meados da era vitoriana coincidiu com a ampliação do direito de
voto. Da mesma forma que o laissez-faire inglês recuou com o
avanço da democracia, na maioria
dos países os excessos dos anos
1980 foram contidos -sob a pressão da competição democrática-
por sucessivos governos. No entanto, em nível global, o livre mercado permanece irrestrito.
Um projeto histórico de reconciliação da economia de mercado
com governo democrático parece
estar sofrendo um recuo definitivo. A democracia social européia
continua a existir em um número
expressivo de países. Porém os governos social-democráticos não
têm sobre a vida econômica a influência que foram capazes de
exercer durante o bem-sucedido
período do pós-guerra. Os mercados globais de títulos não permitirão que as democracias sociais tomem grandes empréstimos. As políticas keynesianas não são eficazes
no caso das economias abertas, das
quais o capital pode sair à vontade.
A mobilidade mundial da produção permite que as empresas se
instalem nos lugares onde a carga
tributária e o ônus regulatório são
menos pesados.
Os governos social-democráticos não dispõem mais dos recursos para perseguir seus objetivos
pelos meios social-democráticos.
Como resultado, na maioria dos
países da Europa continental, o desemprego em massa é um problema sem qualquer solução evidente. Em poucos casos, circunstâncias especiais, como ganhos inesperados resultantes do petróleo na
Noruega, deram aos regimes social-democráticos uma sobrevida.
Mas, em termos gerais, a contradição entre social-democracia e mercados livres globais parece insuperável.
Existem hoje poucas instituições
eficazes com administração econômica global e nenhuma delas é
sequer remotamente democrática.
Conseguir um relacionamento humano e equilibrado entre governo
e economia de mercado continua a
ser uma aspiração ainda distante.
Em terceiro lugar, o socialismo
com sistema econômico ruiu irrecuperavelmente. Tanto em termos
humanos quanto econômicos, o
legado do planejamento centralizado socialista foi desastroso. A
União Soviética não foi um regime
que alcançou rápido progresso
com um custo humano lamentavelmente alto. Foi um Estado totalitário que matou ou arruinou as
vidas de milhões de pessoas e devastou o meio ambiente. Com exceção do gigantesco setor militar e
algumas áreas da saúde pública, a
União Soviética teve poucas conquistas genuínas no campo econômico e social. Na China maoísta, a
perda de vidas por intermédio do
terror e da fome induzidos pelo Estado e a destruição do meio ambiente natural pode ter sido maior
até do que na URSS.
Independente do que o próximo
século possa trazer, o colapso do
socialismo parece irreversível. Podemos prever que no futuro não
haverá dois sistemas econômicos
no mundo, mas apenas variações
do capitalismo.
Quarto, embora a implosão do
socialismo marxista tenha sido recebida nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, como um triunfo do capitalismo de
livre mercado, ela não foi seguida,
na maioria dos antigos países comunistas, da adoção de qualquer
modelo econômico ocidental.
Tanto na Rússia quanto na China
o desaparecimento do comunismo
fez reviver tipos autóctones de capitalismo, em ambos os casos deformados por sua herança comunista. A economia russa é dominada por uma espécie de sindicalismo criminoso. As origens desse
peculiar sistema econômico situam-se na economia ilegal soviética, mas existem alguns pontos de
semelhança com a mistura do capitalismo das grandes empresas
controladas pelo Estado e o empreendimento selvagem que floresceu nas últimas décadas do czarismo. O capitalismo na China tem
muito em comum com o que é praticado em todo o mundo pelos chineses da diáspora, especialmente
quanto ao papel crucial nos negócios desempenhado pelas relações
de parentesco, mas esse também é
invadido pela corrupção e pela comercialização de instituições -inclusive as militares- que foram
herdadas da era comunista.
A opinião pública vê o colapso
do comunismo como uma vitória
do "Ocidente". De fato, o socialismo marxista era o protótipo da
ideologia ocidental. No longo curso da história, a desintegração do
socialismo marxista na Rússia e na
China representa uma derrota para todos os modelos ocidentais de
modernização. O colapso do planejamento centralizado na União
Soviética e seu desmantelamento
na China marcaram o fim de uma
experiência de modernização forçada em que o modelo de modernidade era a fábrica capitalista do
século 19.
Em seu quinto elemento, "Falso
Amanhecer" argumenta que, embora defendam sistemas econômicos diferentes, o marxismo-leninismo e o racionalismo econômico
do livre mercado têm muito em
comum.
Tanto o marxismo-leninismo
quanto o racionalismo econômico
do livre mercado adotam uma atitude de Prometeu diante da natureza e mostram pouca simpatia pelas vítimas do progresso econômico. Ambos são variações do projeto iluminista de suplantar a diversidade histórica de culturas humanas com uma civilização universal,
única. Um livre mercado global é o
projeto iluminista em sua forma
mais recente, talvez a última.
Muitas discussões atuais confundem globalização, um processo
histórico que começou há séculos,
com o projeto político efêmero de
um livre mercado em escala mundial. Entendida corretamente, a
globalização refere-se à crescente
interconexão da vida econômica e
cultural em partes distantes do
mundo. É uma tendência que se
originou na projeção do poder europeu em outras partes do mundo
pelas políticas imperialistas a partir do século 16. Hoje, o principal
motor desse processo é a rápida difusão das novas tecnologias da informação, que eliminam distâncias. Pensadores convencionais
imaginam que a globalização tende a criar uma civilização universal
por meio da difusão mundial dos
métodos e valores ocidentais -e,
mais particularmente, anglo-saxônicos.
Na verdade, o desenvolvimento
da economia mundial se deu principalmente em outra direção. A
globalização hoje difere da economia internacional aberta que foi
estabelecida sob os auspícios da
Europa imperial nas quatro ou cinco décadas anteriores à Primeira
Guerra Mundial. No mercado global, nenhuma potência ocidental
tem hoje a supremacia que tinham
a Grã-Bretanha e outras potências
européias naquela época. No final
das contas, a banalização das novas tecnologias em todo o mundo
funciona para desgastar os valores
e o poder ocidentais. A difusão das
tecnologias de armas nucleares para regimes antiocidentais é apenas
um sintoma de uma tendência
mais ampla.
Os mercados globalizados não
projetam os mercados livres anglo-americanos para o mundo inteiro. Eles lançam todos os tipos de
capitalismo -e não as variedades
de livre mercado- no fluxo. Os
mercados globais anárquicos destroem velhos capitalismos e criam
novos, ao mesmo tempo que sujeitam todos a uma permanente instabilidade.
Trecho do livro "Falso Amanhecer", de John
Gray.
Texto Anterior: Alvaro Machado: Saga interestelar gera frenesi interpretativo Próximo Texto: Lançamentos Índice
|