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OS PARASITAS E OS OTÁRIOS
É curta a distância entre o jeitinho brasileiro e o graúdo tráfico de influência; entre a "boquinha" por todos almejada
e a corrupção endêmica
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Se le pasó la mano" era o comentário mais ouvido no México no início de 1983. A expressão castelhana não guarda relação com certo tipo comum de
cafajestagem machista, indicando
apenas que alguém extrapolou, exagerou na dose. Seu alvo era o temido
chefe de polícia da capital, Arturo
Durazo Moreno, em cujas mãos repousava muito mais do que o controle de quase 20 milhões de habitantes de uma cidade de resto ingovernável.
"El Negro Durazo", como era chamado, fora entronizado no posto pelo presidente José Lopez Portillo
(1976-1982), seu amigo de infância.
E dali comandava uma mui original
e rentável rede de corrupção. Não se
tratava de Estado paralelo: era parte
dele. A coisa tinha por base a prefixação diária das somas que os subordinados deveriam depositar na
conta de Durazo. Para tanto, os principais cargos da polícia eram escrupulosamente vendidos a quem melhor pudesse se locupletar a fim de
garantir o contínuo fluxo do jabá do
chefão. Diz-se que o know-how foi
exportado.
Arturo Durazo amealhou fortuna
impressionante. Chegou a habitar
uma mansão com hipódromo, cavalariças, lagos, heliporto, "galgódromo" e até uma réplica do Studio 54, a
famosa boate nova-iorquina onde os
bacanas se entupiam de pó. Mas caiu
em desgraça quando o autocrata seguinte, Miguel de la Madrid Hurtado (1982-1988), precisou de um bode expiatório para justificar a campanha de "Renovação Moral" que o
levara ao poder.
"Se le pasó la mano" tornou-se juízo definitivamente associado ao nome Durazo quando duas outras gigantescas propriedades foram devassadas pela ralé em festa (caravanas se sucediam para visitá-las). A
primeira, um chalé suíço alcançado
apenas por helicópteros -sua mulher tinha horror a multidões. A segunda, uma casa de praia plena de
motivos greco-romanos, dentre os
quais a cópia em escala natural do
Parthenon, o célebre templo de mármore erigido na época de Péricles
em homenagem a Palas Atena.
O excêntrico morreu de velhice no
ano 2000, não sem antes passar um
tempo na cadeia. Poderia haver saído da galeria de personagens de Gabriel Garcia Márquez ou de Augusto
Roa Bastos. Mas a sua é também a
trajetória da cultura política de
"nuestra" América, dos meios que
secularmente a reproduzem e do
grau de adesão por ela desfrutado.
"El Negro Durazo" encarna a política como negócio de compadres e o
aparelhamento do Estado por redes
clientelares fundadas na máxima
"não me dê, ponha-me onde há" (a
lembrança é do jornalista Alain García Gómez). Seu Parthenon particular personifica o delírio eventualmente contido na impunidade, não
sem uma dose de ironia: virgem, Palas Atena era a deusa da sabedoria.
Tampouco deve passar desapercebido o conteúdo da expressão que o
condenava. Ao dizer "se le pasó la
mano", o homem comum censurava em Durazo o que certamente criticaria naquele que, podendo, não
roubasse. O problema era o roubar
muito, roubar mal.
A cultura política entranhada no
impagável Durazo está longe de
constituir-se em exclusividade da
América espanhola. Sua raiz é ibérica e contra-reformista, conforme
demonstrou Richard Morse em "O Espelho de Próspero" (Cia. das
Letras). Sequer trata-se de padrão
restrito à direita latino-americana.
Se, de todo modo, parece difícil encontrá-la no processo que resultou
na agonia do governo do PT, é porque muito se exagerou sobre a natureza alternativa e moderna de sua
posse em janeiro de 2003. Tal como é
descabida, hoje, a idéia de que o lamaçal em que ele se meteu resulta
em desencanto generalizado.
No Brasil de 2005 há os que dizem
que a nação está de luto, que desprovida de esperança ela corre o risco de
fenecer, que nada há para legar às
gerações vindouras. Chegaram a
afirmar, não sei fundado em quê, jamais ter havido frustração igual em
nossa história. Como se o suicídio de
Vargas, por exemplo, tivesse sido
mera ficção.
Tudo ocorre como se a desilusão
de muitos fosse a de todos os brasileiros. Não é. Sinceramente doída está grande parte dos que habitam a
interseção um tanto fluida entre a
nossa intelligentsia e a esquerda brasileira, a qual, em virtude de sua
enorme capacidade formadora de
opinião, acaba vendendo por verdadeira a idéia falsa de que o seu é o
tormento de todos nós.
Claro que a descrença é também
enorme entre os que simplesmente
batalham para pagar as contas no final do mês. Mas seu alvo são os políticos e o governo, o que, convenhamos, não constitui exatamente uma
novidade. Afinal, a crença intransitiva na força moral da representação e
das instituições é condição para o
pleno exercício de uma cidadania da
qual sempre nos apartamos.
Todos contra a "civitas"
Somos das nações socialmente
mais desiguais e, ao mesmo tempo,
mais miscigenadas do mundo -excluímos a quem nos juntamos e misturamo-nos com quem nos exclui. A
adesão a uma cultura secularmente
avessa à "civitas" é de todos. No passado, africanos tornavam-se livres e
a primeira providência era comprar
um preto novinho em folha, se pudessem; hoje, metade dos paulistanos de todas as classes sociais aceitaria receber o mensalão, informa um
levantamento recente. É curta a distância entre o nosso jeitinho e o
graúdo tráfico de influência, entre a
boquinha por todos almejada e a
corrupção endêmica. "Mamãe, eu
quero mamar" é ethos encarnado no
parasita de plantão e reafirmado pelo otário da vez.
Tal cultura é campo fertilíssimo
para a afirmação do mandonismo.
Não por acaso o dirigismo estatal,
mesmo quando travestido de esperança alternativa e moderna, encontra tantos adeptos.
E nos distancia mais ainda do fortalecimento da sociedade civil e do
ideal republicano de igualdade, fraternidade e liberdade.
Pois bem: o marxismo, sobretudo
em sua vertente leninista, marcou
como nódoa sucessivas gerações
que se reproduziram na tal interseção entre a intelligentsia e a esquerda. Sua derrocada planetária, eufemisticamente cunhada de "crise de
paradigmas" -como se a acepção
khuniana não admitisse registro de
nome e endereço-, subitamente
desproveu grande parte de nossa interseção bem pensante da necessária
capacidade de simbolização. Daí
muitos se aferrarem como náufragos à possibilidade de redenção representada por um governo que, afinal, é o seu.
Falharam e agora imaginam que
seu carpir é o de toda a gente num
evidente signo de arrogância. Se de
todo lhes for impossível cantar no
suplício, como Rimbaud, que ao
menos possam resgatar em si o que
restar de sabedoria para entender
por que deixaram escorrer pelo esgoto um dos maiores capitais políticos já recebidos na história da República. Assim procedendo, talvez se
dêem conta de que o Brasil é ingovernável sem alianças, sim, mas não
com partidos de aluguel; que é imoral aparelhar instituições; que governo não é partido (o presidente é o
chefe da nação), e que de um líder o
mínimo que se espera é que tenha alguma noção do que fala.
Se ânimo lhes restar, aceitarão que
ideário nenhum é carta de impunidade, que os fins não justificam os
meios, que interlocutor não é sinônimo de otário -malandro demais
se atrapalha.
Ainda assim, triste ironia, a história não os absolverá.
Manolo Florentino é professor de história
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas"
(Civilização Brasileira).
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