São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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OS PARASITAS E OS OTÁRIOS

É curta a distância entre o jeitinho brasileiro e o graúdo tráfico de influência; entre a "boquinha" por todos almejada e a corrupção endêmica

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Se le pasó la mano" era o comentário mais ouvido no México no início de 1983. A expressão castelhana não guarda relação com certo tipo comum de cafajestagem machista, indicando apenas que alguém extrapolou, exagerou na dose. Seu alvo era o temido chefe de polícia da capital, Arturo Durazo Moreno, em cujas mãos repousava muito mais do que o controle de quase 20 milhões de habitantes de uma cidade de resto ingovernável.
"El Negro Durazo", como era chamado, fora entronizado no posto pelo presidente José Lopez Portillo (1976-1982), seu amigo de infância. E dali comandava uma mui original e rentável rede de corrupção. Não se tratava de Estado paralelo: era parte dele. A coisa tinha por base a prefixação diária das somas que os subordinados deveriam depositar na conta de Durazo. Para tanto, os principais cargos da polícia eram escrupulosamente vendidos a quem melhor pudesse se locupletar a fim de garantir o contínuo fluxo do jabá do chefão. Diz-se que o know-how foi exportado.
Arturo Durazo amealhou fortuna impressionante. Chegou a habitar uma mansão com hipódromo, cavalariças, lagos, heliporto, "galgódromo" e até uma réplica do Studio 54, a famosa boate nova-iorquina onde os bacanas se entupiam de pó. Mas caiu em desgraça quando o autocrata seguinte, Miguel de la Madrid Hurtado (1982-1988), precisou de um bode expiatório para justificar a campanha de "Renovação Moral" que o levara ao poder.
"Se le pasó la mano" tornou-se juízo definitivamente associado ao nome Durazo quando duas outras gigantescas propriedades foram devassadas pela ralé em festa (caravanas se sucediam para visitá-las). A primeira, um chalé suíço alcançado apenas por helicópteros -sua mulher tinha horror a multidões. A segunda, uma casa de praia plena de motivos greco-romanos, dentre os quais a cópia em escala natural do Parthenon, o célebre templo de mármore erigido na época de Péricles em homenagem a Palas Atena.
O excêntrico morreu de velhice no ano 2000, não sem antes passar um tempo na cadeia. Poderia haver saído da galeria de personagens de Gabriel Garcia Márquez ou de Augusto Roa Bastos. Mas a sua é também a trajetória da cultura política de "nuestra" América, dos meios que secularmente a reproduzem e do grau de adesão por ela desfrutado.
"El Negro Durazo" encarna a política como negócio de compadres e o aparelhamento do Estado por redes clientelares fundadas na máxima "não me dê, ponha-me onde há" (a lembrança é do jornalista Alain García Gómez). Seu Parthenon particular personifica o delírio eventualmente contido na impunidade, não sem uma dose de ironia: virgem, Palas Atena era a deusa da sabedoria.
Tampouco deve passar desapercebido o conteúdo da expressão que o condenava. Ao dizer "se le pasó la mano", o homem comum censurava em Durazo o que certamente criticaria naquele que, podendo, não roubasse. O problema era o roubar muito, roubar mal.
A cultura política entranhada no impagável Durazo está longe de constituir-se em exclusividade da América espanhola. Sua raiz é ibérica e contra-reformista, conforme demonstrou Richard Morse em "O Espelho de Próspero" (Cia. das Letras). Sequer trata-se de padrão restrito à direita latino-americana.
Se, de todo modo, parece difícil encontrá-la no processo que resultou na agonia do governo do PT, é porque muito se exagerou sobre a natureza alternativa e moderna de sua posse em janeiro de 2003. Tal como é descabida, hoje, a idéia de que o lamaçal em que ele se meteu resulta em desencanto generalizado.
No Brasil de 2005 há os que dizem que a nação está de luto, que desprovida de esperança ela corre o risco de fenecer, que nada há para legar às gerações vindouras. Chegaram a afirmar, não sei fundado em quê, jamais ter havido frustração igual em nossa história. Como se o suicídio de Vargas, por exemplo, tivesse sido mera ficção.
Tudo ocorre como se a desilusão de muitos fosse a de todos os brasileiros. Não é. Sinceramente doída está grande parte dos que habitam a interseção um tanto fluida entre a nossa intelligentsia e a esquerda brasileira, a qual, em virtude de sua enorme capacidade formadora de opinião, acaba vendendo por verdadeira a idéia falsa de que o seu é o tormento de todos nós.
Claro que a descrença é também enorme entre os que simplesmente batalham para pagar as contas no final do mês. Mas seu alvo são os políticos e o governo, o que, convenhamos, não constitui exatamente uma novidade. Afinal, a crença intransitiva na força moral da representação e das instituições é condição para o pleno exercício de uma cidadania da qual sempre nos apartamos.

Todos contra a "civitas"
Somos das nações socialmente mais desiguais e, ao mesmo tempo, mais miscigenadas do mundo -excluímos a quem nos juntamos e misturamo-nos com quem nos exclui. A adesão a uma cultura secularmente avessa à "civitas" é de todos. No passado, africanos tornavam-se livres e a primeira providência era comprar um preto novinho em folha, se pudessem; hoje, metade dos paulistanos de todas as classes sociais aceitaria receber o mensalão, informa um levantamento recente. É curta a distância entre o nosso jeitinho e o graúdo tráfico de influência, entre a boquinha por todos almejada e a corrupção endêmica. "Mamãe, eu quero mamar" é ethos encarnado no parasita de plantão e reafirmado pelo otário da vez.
Tal cultura é campo fertilíssimo para a afirmação do mandonismo. Não por acaso o dirigismo estatal, mesmo quando travestido de esperança alternativa e moderna, encontra tantos adeptos.
E nos distancia mais ainda do fortalecimento da sociedade civil e do ideal republicano de igualdade, fraternidade e liberdade.
Pois bem: o marxismo, sobretudo em sua vertente leninista, marcou como nódoa sucessivas gerações que se reproduziram na tal interseção entre a intelligentsia e a esquerda. Sua derrocada planetária, eufemisticamente cunhada de "crise de paradigmas" -como se a acepção khuniana não admitisse registro de nome e endereço-, subitamente desproveu grande parte de nossa interseção bem pensante da necessária capacidade de simbolização. Daí muitos se aferrarem como náufragos à possibilidade de redenção representada por um governo que, afinal, é o seu.
Falharam e agora imaginam que seu carpir é o de toda a gente num evidente signo de arrogância. Se de todo lhes for impossível cantar no suplício, como Rimbaud, que ao menos possam resgatar em si o que restar de sabedoria para entender por que deixaram escorrer pelo esgoto um dos maiores capitais políticos já recebidos na história da República. Assim procedendo, talvez se dêem conta de que o Brasil é ingovernável sem alianças, sim, mas não com partidos de aluguel; que é imoral aparelhar instituições; que governo não é partido (o presidente é o chefe da nação), e que de um líder o mínimo que se espera é que tenha alguma noção do que fala.
Se ânimo lhes restar, aceitarão que ideário nenhum é carta de impunidade, que os fins não justificam os meios, que interlocutor não é sinônimo de otário -malandro demais se atrapalha.
Ainda assim, triste ironia, a história não os absolverá.


Manolo Florentino é professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira).


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