São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O INVENTÁRIO DAS DERROTAS

País é marcado por tentativas frustradas de refundação, afirma José Murilo de Carvalho, mas os brasileiros aprendem a ser cada vez menos derrotados

JOSÉ MURILO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A corrupção tem sido nossa fiel companheira desde 1822, se não desde 1500. Quase todos os nossos movimentos de reforma política se fizeram em nome do combate a essa velha conhecida. Sistematicamente, o inimigo da corrupção na véspera do movimento transformou-se no corrupto do dia seguinte. Leiam-se, a propósito, os clássicos "A Arte de Furtar" e o "Sermão do Bom Ladrão", este último do padre Vieira.
Sobre as origens do mensalão, recomendo a leitura da carta de número 7, das "Cartas Chilenas" de Tomás Antônio Gonzaga. Nela, Gonzaga denuncia "a venda de despachos e contratos" e fala de um contratador, Silverino (Joaquim Silvério dos Reis), que, contra a lei, usa dinheiro público para pagar credores e envia ao chefe, "em todos os trimestres, as mesadas".
"De Silvério a Valério", eis um bom o título para uma história do mensalão. Para salvar a honra de Minas Gerais, recorde-se que Gonzaga foi um inconfidente e pagou seu protesto com o exílio.
O surto atual distingue-se dos anteriores por ser mais amplo, mais sistemático e mais profundo. No governo de Collor, a corrupção concentrava-se em algumas pessoas, incluindo o presidente. Agora é um partido que a planeja, envolvendo outros partidos, o Congresso e o Planalto, instituições responsáveis pelo funcionamento do sistema democrático. Mesmo assim, creio que o principal veneno embutido nas recentes denúncias não consista na corrupção em si, por mais grave que seja. Ele está na autoria. O maior dano à democracia está sendo causado pelo estelionato eleitoral praticado pelo Partido dos Trabalhadores em relação a promessas de campanha e à imagem que vendia de si mesmo.
Ainda nos lembramos (parece tão distante!) do que foi a eleição de Lula. Em entrevista de janeiro de 2003, a ela me referi como um orgasmo político, tão intenso fora o entusiasmo popular e a esperança despertada. Alguns intelectuais falaram mesmo em refundação do país. Menos retórico, o cidadão comum apenas cantou a esperança e celebrou a chegada ao poder de alguém que se parecia com ele. Séculos de afastamento entre povo e poder pareciam ter chegado ao fim.
Até três meses atrás, a grande esperança dos eleitores tinha sido arranhada por estelionato mais profundo, mas de menor alcance público. Refiro-me àquele embutido na manutenção da política econômica do governo anterior, denunciado dentro do próprio PT pelas correntes opostas ao Campo Majoritário. Mas os atingidos eram grupos doutrinários, e os êxitos aparentes dessa mesma política compensavam de algum modo os danos causados.
O estelionato agora revelado, referente a outro produto falsificado vendido na campanha, a moralidade pública, tem dimensão muito mais ampla. Lula foi eleito em sua quarta tentativa, entre outras coisas, também por se apresentar como candidato de um partido que empunhava a bandeira da moralidade, um partido que Brizola chamava de UDN de macacão. O primeiro estelionato alienou a esquerda, o segundo chocou meio mundo, ou quase o mundo inteiro.

Novela
De repente, diante do cidadão perplexo, ou estarrecido, para usar o adjetivo predileto das cartas de leitores, postado e prostrado diante das transmissões ao vivo, desdobra-se uma novela aparentemente interminável de denúncias de escândalos gerados no bojo do partido que se exibia, e se vendia na publicidade, como vestal política. Mais ainda, a figura carismática do presidente, símbolo de toda a promessa de redenção, se vê arranhada por depoimentos de pessoas que afirmam lhe ter comunicado a existência das falcatruas e por suas reações tardias, dúbias, hesitantes, contraditórias, arrogantes.
A reação do cidadão tem-se manifestado de várias maneiras, em cartas às redações, nas ruas, em conversas de elevador, nos táxis, em salas de espera, nas cada vez maiores e incontroláveis redes de comunicação da internet. Dependendo do grau de confiança antes colocado no governo, ela varia entre a indignação dos mais críticos, a vergonha dos confiantes e o desencanto dos crentes.
Sua intensidade é diretamente proporcional ao entusiasmo provocado pela eleição. Se essa foi um orgasmo cívico, agora estamos diante de uma dramática sensação de impotência. O desencanto se projeta para além dos envolvidos nas denúncias. Visa todos os políticos, toda a política, toda política.
"Fora todos!", grita um cartaz nas ruas de Brasília. Baixou sobre o país um mal-estar cívico generalizado. O último crente se foi com a morte da Velhinha de Taubaté, anunciada por Veríssimo. As conseqüências para a democracia não podem ser subestimadas. Muitos analistas já temem, com razão, que as próximas eleições podem apresentar um número recorde de abstenções e de votos nulos. Demos um passo para trás.

Corrupção rejeitada
Mas, se é verdade que a corrupção é antiga, também vem de longe sua rejeição, como provam os textos mencionados acima. Pode-se dizer com segurança que a intolerância à corrupção tem crescido mais que a corrupção, em função do aumento da urbanização, da escolaridade e, como conseqüência, do grau de informação e de independência do eleitorado.
Lembre-se que Collor foi eleito pelas ruas sob a bandeira da caça aos marajás corruptos e foi cassado pelas ruas sob a acusação de ser um marajá corrupto. Na crise atual, os primeiros indignados foram como sempre setores da classe média. A classe média foi sempre em todo lugar o principal sustentáculo da moralidade. Ela é a classe que mais sofre com impostos e que menos deles se beneficia pelas políticas sociais. Em contrapartida, ela controla no Brasil de hoje volume cada vez maior de informação e acumula poder de fogo político graças à grande expansão da educação superior e da internet.
Ela forma o núcleo da opinião pública e já se revelou capaz de alterar os rumos da política, como no caso do impedimento de Collor, por outros meios que não o voto. Não por acaso, o presidente, em sua busca ansiosa de apoio, foge dela e busca os grotões distantes dos grandes centros urbanos.
Mas o ruído da rua e pesquisas de opinião têm mostrado que a reação já se filtrou para baixo na escala social. Pesquisa do Ibope revelou que 52% dos entrevistados já não confiam no presidente. Mostrou, sobretudo, que num eventual segundo turno com José Serra, o presidente seria derrotado até mesmo entre os que recebem até um salário mínimo. Lembre-se que essa é a população-alvo dos programas sociais do governo. Nela sem dúvida estão colocadas as expectativas eleitorais do presidente e de seu partido. Sua adesão ao desencanto é um golpe de morte nos planos de segundo mandato e uma indicação da universalização da opinião pública.
Nossa história é pontuada de tentativas frustradas de refundação, de 1822 a 2002. A derrubada de dom Pedro 1º foi chamada de jornada dos otários pelos que a promoveram. A República de 1889 acabou não correspondendo ao sonho dos propagandistas. A revolução de 30 desaguou no golpe de 1937. A redemocratização de 1945 naufragou em 1964. E agora, esse novo passo para trás.
Quando penso nesses marcos históricos, me lembro sempre de uma observação de Raul Pompéia. Em prefácio ao livro de Rodrigo Otávio intitulado "Festas Nacionais", publicado em 1893, o romancista de "O Ateneu", florianista e republicano rubro, examina as festas celebradas pela nação, de Tiradentes à Proclamação da República, e conclui que, na realidade, elas constituíam uma seqüência de derrotas nacionais. Mas, pensando melhor, vê algum sentido em chamá-las festas. É que, segundo ele, "na sucessão de gloriosas derrotas, vamos sendo cada vez menos derrotados".
Nele me inspiro para registrar que, também agora, das cinzas da derrota democrática, do coração da indignação cívica, emerge a força de uma cidadania mais ampla, mais atenta, mais ativa. Além da frustração, a reação nacional pode indicar também um avanço em nosso amadurecimento democrático. Este avanço seria marcado, sobretudo, pelo desencanto com lideranças carismáticas e com salvadores da pátria. Passado o momento das emoções, a razão dirá ao brasileiro que ele deve contar somente consigo mesmo para construir a democracia. Como o cantor cego do filme de Glauber Rocha, descobriremos que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo. A ser assim, estaremos, mais uma vez, apesar do passo para trás, sendo menos derrotados.

Autoridades
Para concluir, convoco para a conversa mais dois autores, Freud e Lênin. Como ensinava Oliveira Viana, no Brasil é preciso citar autoridades, sobretudo estrangeiras, para que nos levem a sério. Ao se falar em mal-estar coletivo, é inevitável pensar na teoria freudiana do desconforto do homem na civilização, traduzida em geral como a teoria do mal-estar da civilização. Mas tal desconforto, ou mal-estar, para Freud, é radical e permanente, provém do antagonismo entre as demandas do instinto e as restrições da civilização.
O domínio da história, em que se move minha análise, é menos rígido. Nosso instinto de destruição política, corporificado no patrimonialismo, é, na realidade, também cultural e poderá ser vencido pelas exigências civilizatórias da democracia. Podemos escapar da condenação freudiana.
Falar em um passo para trás, por outro lado, lembra de imediato o livro de Lênin, "Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás", publicado em 1904. O livro foi escrito como arma na intensa luta que se travava dentro do partido entre suas duas principais correntes, a maioria, os bolcheviques, e a minoria, os mencheviques. Líder dos bolcheviques, Lênin acusava os adversários de oportunismo e frouxidão, e defendia uma organização partidária rigidamente disciplinada e centralizada. A história nos conta que Lênin levou os bolcheviques à vitória contra os adversários e contra o regime do Czar. O Brasil mais uma vez inovou. Nossos bolcheviques (o Campo Majoritário) levaram à derrota o próprio partido, colocando Lênin de cabeça para baixo.


José Murilo de Carvalho, 65, é membro da Academia Brasileira de Letras e autor de "Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que Não Foi" (Cia. das Letras, 1987)


Texto Anterior: Os parasitas e os otários
Próximo Texto: + sociedade: A sedução do catolicismo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.