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O INVENTÁRIO DAS DERROTAS
País é marcado por tentativas frustradas de refundação, afirma José Murilo
de Carvalho, mas os brasileiros aprendem a ser cada vez menos derrotados
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
corrupção tem sido nossa
fiel companheira desde
1822, se não desde 1500.
Quase todos os nossos movimentos de reforma política se fizeram em nome do combate a essa velha conhecida. Sistematicamente, o
inimigo da corrupção na véspera do
movimento transformou-se no corrupto do dia seguinte. Leiam-se, a
propósito, os clássicos "A Arte de
Furtar" e o "Sermão do Bom Ladrão", este último do padre Vieira.
Sobre as origens do mensalão, recomendo a leitura da carta de número 7, das "Cartas Chilenas" de Tomás Antônio Gonzaga. Nela, Gonzaga denuncia "a venda de despachos e
contratos" e fala de um contratador,
Silverino (Joaquim Silvério dos
Reis), que, contra a lei, usa dinheiro
público para pagar credores e envia
ao chefe, "em todos os trimestres, as
mesadas".
"De Silvério a Valério", eis um
bom o título para uma história do
mensalão. Para salvar a honra de
Minas Gerais, recorde-se que Gonzaga foi um inconfidente e pagou
seu protesto com o exílio.
O surto atual distingue-se dos anteriores por ser mais amplo, mais
sistemático e mais profundo. No governo de Collor, a corrupção concentrava-se em algumas pessoas, incluindo o presidente. Agora é um
partido que a planeja, envolvendo
outros partidos, o Congresso e o Planalto, instituições responsáveis pelo
funcionamento do sistema democrático. Mesmo assim, creio que o
principal veneno embutido nas recentes denúncias não consista na
corrupção em si, por mais grave que
seja. Ele está na autoria. O maior dano à democracia está sendo causado
pelo estelionato eleitoral praticado
pelo Partido dos Trabalhadores em
relação a promessas de campanha e
à imagem que vendia de si mesmo.
Ainda nos lembramos (parece tão
distante!) do que foi a eleição de Lula. Em entrevista de janeiro de 2003,
a ela me referi como um orgasmo
político, tão intenso fora o entusiasmo popular e a esperança despertada. Alguns intelectuais falaram mesmo em refundação do país. Menos
retórico, o cidadão comum apenas
cantou a esperança e celebrou a chegada ao poder de alguém que se parecia com ele. Séculos de afastamento entre povo e poder pareciam ter
chegado ao fim.
Até três meses atrás, a grande esperança dos eleitores tinha sido arranhada por estelionato mais profundo, mas de menor alcance público. Refiro-me àquele embutido na
manutenção da política econômica
do governo anterior, denunciado
dentro do próprio PT pelas correntes opostas ao Campo Majoritário.
Mas os atingidos eram grupos doutrinários, e os êxitos aparentes dessa
mesma política compensavam de algum modo os danos causados.
O estelionato agora revelado, referente a outro produto falsificado
vendido na campanha, a moralidade
pública, tem dimensão muito mais
ampla. Lula foi eleito em sua quarta
tentativa, entre outras coisas, também por se apresentar como candidato de um partido que empunhava
a bandeira da moralidade, um partido que Brizola chamava de UDN de
macacão. O primeiro estelionato
alienou a esquerda, o segundo chocou meio mundo, ou quase o mundo inteiro.
Novela
De repente, diante do cidadão perplexo, ou estarrecido, para usar o adjetivo predileto das cartas de leitores,
postado e prostrado diante das
transmissões ao vivo, desdobra-se
uma novela aparentemente interminável de denúncias de escândalos
gerados no bojo do partido que se
exibia, e se vendia na publicidade,
como vestal política. Mais ainda, a figura carismática do presidente, símbolo de toda a promessa de redenção, se vê arranhada por depoimentos de pessoas que afirmam lhe ter
comunicado a existência das falcatruas e por suas reações tardias, dúbias, hesitantes, contraditórias, arrogantes.
A reação do cidadão tem-se manifestado de várias maneiras, em cartas às redações, nas ruas, em conversas de elevador, nos táxis, em salas
de espera, nas cada vez maiores e incontroláveis redes de comunicação
da internet. Dependendo do grau de
confiança antes colocado no governo, ela varia entre a indignação dos
mais críticos, a vergonha dos confiantes e o desencanto dos crentes.
Sua intensidade é diretamente
proporcional ao entusiasmo provocado pela eleição. Se essa foi um orgasmo cívico, agora estamos diante
de uma dramática sensação de impotência. O desencanto se projeta
para além dos envolvidos nas denúncias. Visa todos os políticos, toda a política, toda política.
"Fora todos!", grita um cartaz nas
ruas de Brasília. Baixou sobre o país
um mal-estar cívico generalizado. O
último crente se foi com a morte da
Velhinha de Taubaté, anunciada por
Veríssimo. As conseqüências para a
democracia não podem ser subestimadas. Muitos analistas já temem,
com razão, que as próximas eleições
podem apresentar um número recorde de abstenções e de votos nulos. Demos um passo para trás.
Corrupção rejeitada
Mas, se é verdade que a corrupção
é antiga, também vem de longe sua
rejeição, como provam os textos
mencionados acima. Pode-se dizer
com segurança que a intolerância à
corrupção tem crescido mais que a
corrupção, em função do aumento
da urbanização, da escolaridade e,
como conseqüência, do grau de informação e de independência do
eleitorado.
Lembre-se que Collor foi eleito pelas ruas sob a bandeira da caça aos
marajás corruptos e foi cassado pelas ruas sob a acusação de ser um
marajá corrupto. Na crise atual, os
primeiros indignados foram como
sempre setores da classe média. A
classe média foi sempre em todo lugar o principal sustentáculo da moralidade. Ela é a classe que mais sofre
com impostos e que menos deles se
beneficia pelas políticas sociais. Em
contrapartida, ela controla no Brasil
de hoje volume cada vez maior de
informação e acumula poder de fogo político graças à grande expansão
da educação superior e da internet.
Ela forma o núcleo da opinião pública e já se revelou capaz de alterar
os rumos da política, como no caso
do impedimento de Collor, por outros meios que não o voto. Não por
acaso, o presidente, em sua busca
ansiosa de apoio, foge dela e busca
os grotões distantes dos grandes
centros urbanos.
Mas o ruído da rua e pesquisas de
opinião têm mostrado que a reação
já se filtrou para baixo na escala social. Pesquisa do Ibope revelou que
52% dos entrevistados já não confiam no presidente. Mostrou, sobretudo, que num eventual segundo
turno com José Serra, o presidente
seria derrotado até mesmo entre os
que recebem até um salário mínimo.
Lembre-se que essa é a população-alvo dos programas sociais do governo. Nela sem dúvida estão colocadas as expectativas eleitorais do
presidente e de seu partido. Sua adesão ao desencanto é um golpe de
morte nos planos de segundo mandato e uma indicação da universalização da opinião pública.
Nossa história é pontuada de tentativas frustradas de refundação, de
1822 a 2002. A derrubada de dom
Pedro 1º foi chamada de jornada dos
otários pelos que a promoveram. A
República de 1889 acabou não correspondendo ao sonho dos propagandistas. A revolução de 30 desaguou no golpe de 1937. A redemocratização de 1945 naufragou em
1964. E agora, esse novo passo para
trás.
Quando penso nesses marcos históricos, me lembro sempre de uma
observação de Raul Pompéia. Em
prefácio ao livro de Rodrigo Otávio
intitulado "Festas Nacionais", publicado em 1893, o romancista de "O
Ateneu", florianista e republicano
rubro, examina as festas celebradas
pela nação, de Tiradentes à Proclamação da República, e conclui que,
na realidade, elas constituíam uma
seqüência de derrotas nacionais.
Mas, pensando melhor, vê algum
sentido em chamá-las festas. É que,
segundo ele, "na sucessão de gloriosas derrotas, vamos sendo cada vez
menos derrotados".
Nele me inspiro para registrar que,
também agora, das cinzas da derrota
democrática, do coração da indignação cívica, emerge a força de uma cidadania mais ampla, mais atenta,
mais ativa. Além da frustração, a reação nacional pode indicar também
um avanço em nosso amadurecimento democrático. Este avanço seria marcado, sobretudo, pelo desencanto com lideranças carismáticas e
com salvadores da pátria. Passado o
momento das emoções, a razão dirá
ao brasileiro que ele deve contar somente consigo mesmo para construir a democracia. Como o cantor
cego do filme de Glauber Rocha,
descobriremos que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo.
A ser assim, estaremos, mais uma
vez, apesar do passo para trás, sendo
menos derrotados.
Autoridades
Para concluir, convoco para a conversa mais dois autores, Freud e Lênin. Como ensinava Oliveira Viana,
no Brasil é preciso citar autoridades,
sobretudo estrangeiras, para que
nos levem a sério. Ao se falar em
mal-estar coletivo, é inevitável pensar na teoria freudiana do desconforto do homem na civilização, traduzida em geral como a teoria do
mal-estar da civilização. Mas tal desconforto, ou mal-estar, para Freud, é
radical e permanente, provém do
antagonismo entre as demandas do
instinto e as restrições da civilização.
O domínio da história, em que se
move minha análise, é menos rígido.
Nosso instinto de destruição política, corporificado no patrimonialismo, é, na realidade, também cultural
e poderá ser vencido pelas exigências civilizatórias da democracia. Podemos escapar da condenação freudiana.
Falar em um passo para trás, por
outro lado, lembra de imediato o livro de Lênin, "Um Passo Adiante,
Dois Passos Atrás", publicado em
1904. O livro foi escrito como arma
na intensa luta que se travava dentro
do partido entre suas duas principais correntes, a maioria, os bolcheviques, e a minoria, os mencheviques. Líder dos bolcheviques, Lênin
acusava os adversários de oportunismo e frouxidão, e defendia uma
organização partidária rigidamente
disciplinada e centralizada. A história nos conta que Lênin levou os bolcheviques à vitória contra os adversários e contra o regime do Czar. O
Brasil mais uma vez inovou. Nossos
bolcheviques (o Campo Majoritário) levaram à derrota o próprio partido, colocando Lênin de cabeça para baixo.
José Murilo de Carvalho, 65, é membro da
Academia Brasileira de Letras e autor de "Os
Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que Não Foi" (Cia. das Letras, 1987)
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