São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009

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Paradoxos morais

Complexidade inerente às escolhas éticas ajuda a entender por que brasileiros ao mesmo tempo se dizem ciosos das leis e reconhecem praticar desvios

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Setenta e quatro por cento dos brasileiros declaram sempre obedecer às leis, mesmo que isso possa custar-lhes uma boa oportunidade. Não obstante, 83% admitem já ter cometido pelo menos uma ação ilegítima, de um cardápio que traz desde sonegação de impostos até estacionar em fila dupla.
A conclusão mais óbvia é que há gente mentindo. Outra, menos flagrante e de maior interesse, é que o comportamento ético constitui uma característica que resiste a abordagens puramente racionais -daí nossa indisfarçável ambiguidade ao lidar com escolhas morais.
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de teorias éticas. A primeira, que podemos chamar de deontológica, tem como expoentes os sistemas de inspiração religiosa e Immanuel Kant (1724-1804).
Aqui, são as ações e os princípios em que elas se fundam que importam. Regras como "não matarás" ou "não mentirás" valem incondicionalmente, seja porque estão amparadas por Deus, pelo imperativo categórico ou outra entidade abstrata.
No polo oposto está o consequencialismo, cujos grandes defensores incluem Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-73). Basicamente eles dizem que não existem princípios externos que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que produzem: são boas as ações que engendram bons resultados.
É da condição humana flutuar entre essas duas matrizes, já que, tomadas em suas formas puras, ambas parecem incapazes de dar respostas razoáveis para nossas "necessidades sociais". A impossibilidade de mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria, por exemplo, a revelar para um assassino onde sua próxima vítima se esconde.
Já o consequencialismo me obrigaria a aceitar como moralmente válido o ato do médico que mata o sujeito saudável para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
Na tentativa de estabilizar um pouco a situação, diferentes filósofos combinaram em diferentes proporções elementos deontológicos e consequencialistas. Os resultados, entretanto, sempre podem ser reduzidos a novas aporias.

Instinto moral
Mais recentemente, estudos éticos vêm recebendo apoio de outras ciências, como a psicologia e a biologia evolutiva. É nessa categoria que entra o trabalho de Marc Hauser consubstanciado no livro "Moral Minds" (Mentes Morais).
A tese da obra de Hauser é que a faculdade moral é um "instinto". Não chega a ser um código penal, mas um conjunto de princípios elementares, comuns a toda a humanidade -coisas como não matar, não casar com a filha etc.-, e maleáveis o bastante para comportar variações culturais.
Tal instinto pode ser modulado pelas emoções, como sugeria David Hume [1711-76], e pela razão, como queria Kant. Não matamos o motoboy que arranca o espelhinho de nosso carro tanto porque a maioria de nós tem repulsa ao assassinato (emoção) como também por temermos as consequências legais do gesto (razão).
É principalmente na série de experimentos mentais conhecidos como "problema do trem" que Hauser busca apoio empírico a suas ideias.
Vamos a dois exemplos: Denise é passageira de um trem cujo maquinista desmaiou. A locomotiva desembestada vai atropelar cinco pessoas que caminham sobre a linha. Ela tem a opção de fazer com que o comboio mude de trilhos e, assim, atinja um único passante. Ela deve acionar a alavanca?
Cerca de 90% dos mais de 60 mil voluntários que responderam ao questionário de Hauser cederam à razão utilitária e disseram que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.
Hauser então coloca uma variante do problema. Frank está sobre uma ponte e avista um trem prestes a abalroar cinco alegres caminhantes. Ao lado dele está um sujeito imenso, que, lançado sobre os trilhos, teria corpo para parar a locomotiva, salvando os passantes. Frank deve atirar o gordão?
Aqui, a maioria (90%) responde que não, embora, em termos racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida inocente em troca de cinco.
Hauser sustenta que nosso "software" moral opera com parâmetros como tipo de ação (se pessoal ou impessoal, direta ou indireta), consequências negativas e positivas e, principalmente, a intencionalidade. No fundo, o que difere a ação de Denise da de Frank é que o sacrifício do passante solitário é uma espécie de efeito colateral (ainda que antevisto) de uma ação que visava a salvar cinco pessoas. Já atirar o gordão é um ato intencional, um homicídio, ainda que por um bem maior.
É claro que o interesse pessoal também entra na conta. Se os cinco passantes são membros de minha família, vou hesitar menos antes de atirar o sujeito ponte abaixo. De modo análogo, serei capaz de encontrar razões "racionais" para justificar pecadilhos, por exemplo, de elisão fiscal: já dou muito dinheiro para o governo e vai tudo para a corrupção.
Decididamente, não é fácil ser humano.


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