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Paradoxos morais
Complexidade inerente às escolhas éticas ajuda a entender por que brasileiros ao mesmo tempo se dizem ciosos das leis e reconhecem praticar desvios
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Setenta e quatro por
cento dos brasileiros
declaram sempre
obedecer às leis, mesmo que isso possa
custar-lhes uma boa oportunidade. Não obstante, 83% admitem já ter cometido pelo menos uma ação ilegítima, de um
cardápio que traz desde sonegação de impostos até estacionar em fila dupla.
A conclusão mais óbvia é que
há gente mentindo. Outra, menos flagrante e de maior interesse, é que o comportamento
ético constitui uma característica que resiste a abordagens
puramente racionais -daí nossa indisfarçável ambiguidade
ao lidar com escolhas morais.
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de teorias
éticas. A primeira, que podemos chamar de deontológica,
tem como expoentes os sistemas de inspiração religiosa e
Immanuel Kant (1724-1804).
Aqui, são as ações e os princípios em que elas se fundam que
importam. Regras como "não
matarás" ou "não mentirás"
valem incondicionalmente, seja porque estão amparadas por
Deus, pelo imperativo categórico ou outra entidade abstrata.
No polo oposto está o consequencialismo, cujos grandes
defensores incluem Jeremy
Bentham (1748-1832) e John
Stuart Mill (1806-73). Basicamente eles dizem que não existem princípios externos que
possam validar ou invalidar
nossos atos. A única forma de
julgá-los é por meio das consequências que produzem: são
boas as ações que engendram
bons resultados.
É da condição humana flutuar entre essas duas matrizes,
já que, tomadas em suas formas puras, ambas parecem incapazes de dar respostas razoáveis para nossas "necessidades
sociais". A impossibilidade de
mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria,
por exemplo, a revelar para um
assassino onde sua próxima vítima se esconde.
Já o consequencialismo me
obrigaria a aceitar como moralmente válido o ato do médico que mata o sujeito saudável
para, com seus órgãos, salvar a
vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
Na tentativa de estabilizar
um pouco a situação, diferentes filósofos combinaram em
diferentes proporções elementos deontológicos e consequencialistas. Os resultados, entretanto, sempre podem ser reduzidos a novas aporias.
Instinto moral
Mais recentemente, estudos
éticos vêm recebendo apoio de
outras ciências, como a psicologia e a biologia evolutiva. É nessa categoria que entra o trabalho de Marc Hauser consubstanciado no livro "Moral
Minds" (Mentes Morais).
A tese da obra de Hauser é
que a faculdade moral é um
"instinto". Não chega a ser um
código penal, mas um conjunto
de princípios elementares, comuns a toda a humanidade
-coisas como não matar, não
casar com a filha etc.-, e maleáveis o bastante para comportar variações culturais.
Tal instinto pode ser modulado pelas emoções, como sugeria David Hume [1711-76], e
pela razão, como queria Kant.
Não matamos o motoboy que
arranca o espelhinho de nosso
carro tanto porque a maioria de
nós tem repulsa ao assassinato
(emoção) como também por
temermos as consequências legais do gesto (razão).
É principalmente na série de
experimentos mentais conhecidos como "problema do
trem" que Hauser busca apoio
empírico a suas ideias.
Vamos a dois exemplos: Denise é passageira de um trem
cujo maquinista desmaiou. A
locomotiva desembestada vai
atropelar cinco pessoas que caminham sobre a linha. Ela tem
a opção de fazer com que o
comboio mude de trilhos e, assim, atinja um único passante.
Ela deve acionar a alavanca?
Cerca de 90% dos mais de 60
mil voluntários que responderam ao questionário de Hauser
cederam à razão utilitária e disseram que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.
Hauser então coloca uma variante do problema. Frank está
sobre uma ponte e avista um
trem prestes a abalroar cinco
alegres caminhantes. Ao lado
dele está um sujeito imenso,
que, lançado sobre os trilhos,
teria corpo para parar a locomotiva, salvando os passantes.
Frank deve atirar o gordão?
Aqui, a maioria (90%) responde que não, embora, em
termos racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida
inocente em troca de cinco.
Hauser sustenta que nosso
"software" moral opera com
parâmetros como tipo de ação
(se pessoal ou impessoal, direta
ou indireta), consequências negativas e positivas e, principalmente, a intencionalidade. No
fundo, o que difere a ação de
Denise da de Frank é que o sacrifício do passante solitário é
uma espécie de efeito colateral
(ainda que antevisto) de uma
ação que visava a salvar cinco
pessoas. Já atirar o gordão é um
ato intencional, um homicídio,
ainda que por um bem maior.
É claro que o interesse pessoal também entra na conta. Se
os cinco passantes são membros de minha família, vou hesitar menos antes de atirar o
sujeito ponte abaixo. De modo
análogo, serei capaz de encontrar razões "racionais" para
justificar pecadilhos, por
exemplo, de elisão fiscal: já dou
muito dinheiro para o governo
e vai tudo para a corrupção.
Decididamente, não é fácil
ser humano.
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