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LITERATURA
Leia conto de um dos mais importantes escritores italianos do século 20, de
quem a Editora Nova Alexandria está lançando uma coletânea
Um rapapé respeitoso
CARLO EMILIO GADDA
A pequena casa de persianas verdes é abraçada por uma guarda de
ciprestes e dista não menos de 400
metros da Villa Guidi e uns cem da
avenida. O bonde número 13, depois das 9h, passa de hora em hora, até a meia-noite. Da margem
oposta do rio, avista-se a breve série de janelinhas iluminadas lançando na solidão e no escuro da
avenida um sinal do mundo ainda
acordado, ainda vigilante:
vêem-se as janelinhas correrem ao
longo do negro pavoroso que as
tílias coagularam no paredão. Do
alto, a cidade, as torres de madrepérola, as luzes de cada ponte parecem amigas e próximas: um grito poderia atingir as ameias das
torres, descer às mesinhas dos cafés: até as pessoas que estão se deleitando com os sorvetes. Não, nenhum grito seria ouvido nos cafés:
nenhum grito que saísse da pequena casa de persianas verdes, a cem
metros da tenebrosa avenida. Nem
mesmo o motorneiro e o cobrador
do bonde número 13 poderiam
ouvi-lo, já que a geringonça rodando sobre os trilhos, saltitando
a cada articulação, faz tamanho
barulho que os deixa surdos, obriga-os a conversar em voz alta. E,
depois, mal o bonde acaba de passar, tudo fica escuro de novo: e os
grilos são os únicos donos da noite, das colinas. Os grilos, apesar de
inumeráveis, não podem dar testemunho de nada, nem ir à delegacia dizer nada, nem aos guardas:
nem chamar por gente.
A língua das pessoas, sobretudo a
das mulheres, mas também a dos
caixeiros das vendas lá de baixo,
do bairro, e até a de gente muito
séria, de outro lugar, dizia que dona Esther andava promovendo...:
ou seja: que era muito hospitaleira
com os conhecidos: uns sujeitos
(quase sempre) muito distintos. O
lugar ermo, dizia-se, era propício
à hospitalidade. Para cada senhor
que se via parado junto ao portão
da casinha solitária, esperando o
estalo da fechadura elétrica, tinha
estado logo depois ou pouco antes
uma senhora, no mesmo portão,
tal qual mente distinta e na mesma
atitude de espera. A meninada já
tinha notado.
Outra opinião, em vez disso, era
de que as raras visitas, masculinas
e femininas, não tinham qualquer
ligação entre si. As mulheres eram
velhas amigas, uma enfermeira,
ou a costureira, ou uma colega de
colégio de muitos anos atrás: ou
moças que recorriam à dona Esther para um conselho, para saber
onde podiam fazer o enxoval mais
barato. Os homens, poucos e sérios, também eles eram conhecidos perfeitamente inócuos: o dos
impostos, o da luz, o do gás não,
que não chega lá em cima: ou o
advogado Farri, o médico, um entregador de mantimentos da vila,
ou algum mendigo pedindo esmola. Dois ou três eleitos do coração
(de antanho), ao que parece, e
agora velhos aposentados: aos
quais, dizia-se, a velha amiga não
tinha coragem de recusar um auxílio para os apertos dos tempos
novos e terríveis, um "adiamento", como eles o chamavam, com
um sorriso melancólico: nos dias
magros do fim do mês, mais frequentemente.
Quando o Cavaleiro Barbetti também precisou recorrer à coragem,
como todos nós, e ajuntara os ouros e as jóias de sua querida Irma,
a inesquecível companheira de 33
anos de vida (que lhe faltara há um
ano exatamente), e daquelas jóias
fizera um pacotinho e o enfiou no
bolso: com todo o cuidado possível. Mirou-se de novo no espelho,
virou-se, torceu o pescoço tentando enxergar-se... de lado, já que
atrás não conseguia: alisou os bigodes, despediu-se com um leve
rapapé, cheio de decoro e de melancolia: o ensaio geral, talvez, daquele que faria à dona Esther. Pegou a bengala de cana da Índia, do
porta-guarda-chuvas, com um belo castão de marfim em forma de
escarpim virado. Tinha calçado,
um sofrimento de deslocar o lombo!, os sapatos bons de pala de
verniz, de orelha de camurça cor
de rola: (mas os saltos tinham se
nivelado à sola, e por duas fendas
transversais, sobre os dedos,
olhando bem, entreviam-se as
meias). Até com as luvas amarelas
ele estava: sim. Estava com tudo.
Depois das vultosas despesas do
hospital, dos funerais, do túmulo,
a instabilidade não o largara um
instante: parecia-lhe ter atrás um
demônio que o puxava pelos cabelos, que o puxava para baixo, bem
para baixo. De modo que, naquela
noite, precisou mesmo recorrer à
coragem.
Atravessou a ponte de ferro, que
oscilava lentamente, à passagem
dos carros: o rio, à noite, sob a
ponte, incutia-lhe toda vez uma
sensação de temor: como se lhe
pudesse acontecer de cair ali, de
ser arrastado pela correnteza de
um verde lívido, das águas tumultuosas. Atingindo a outra margem, pareceu-lhe ter aportado são
e salvo. Tomou o 13. O encontro
era para as nove. Nem mesmo tinha comido: só de pensar, perdera
o apetite. Tinha um papelucho
com o endereço. Releu: avenida
Michelangelo, nš 281, a uma centena de passos da parada do bonde. Pediu ao cobrador para descer
ali. Dos bons propósitos de dona
Esther o Malvezzi não duvidava
(fora o amigo a "colocá-los em
contato": a comentar com ela o
seu caso). A ele, então, falara dela
muito bem: dera-lhe, pode-se dizer, o empréstimo por garantido.
O coração de uma senhora, de
uma mulher: que sabe: que intui.
Que compreende. Naturalmente...
um desconhecido. Mas, já que era
ele que o apresentava! E depois...
uma pessoa de bem se conhece pela cara. Cavaleiro: aposentado do
Estado. Naturalmente, visto que
dona Esther... Uma garantia seria
bem-vinda. Naturalmente, naturalmente... Oh, a sua Irma devia
perdoá-lo. Nunca imaginaria ter
que rebaixar-se a tanto. Quando o
bonde parou, só para ele, havia
uma última réstia de luz no horizonte distante: as andorinhas tinham todas desaparecido do céu:
o morcego, na Villa Guidi, já enguirlandara os arcos e a torre com
seu vôo cego, pesado, desgarrado:
feito um rato com asas.
Os ciprestes meteram-lhe medo.
Os sapatos bons, de verniz e de camurça, estalaram ao longo do caminho. As meias, não, não, não
iriam dar na vista... através das
duas rachaduras da pala: dona Esther não haveria de botar reparo
nisso: estava escuro, quase: era
noite. Mas do portão um jovem
saiu correndo como numa competição de ginástica: como se quisesse alcançar o bonde que se afastara
a galope. Não olhou, não diminuiu
a marcha, não disse nada: estava
escuro: corria como um atleta, esbarrava numa de suas mangas, ao
passar: pois é: mas o rosto virado,
na direção do bonde que agora desaparecia numa curva. O cavaleiro
Barbetti deu mais alguns passos. O
jovem deixara aberto o portãozinho: a porta da casa também estava aberta, a luz acesa, dentro: uma
luz velha e fraca de vestíbulo. O cavaleiro Barbetti pediu: dá licença?,
dá licença?, com toda distinção.
Esperava ouvir perguntarem:
quem é?, e preparava-se para responder, um amigo! Nada, ninguém. A solidão imprevista, o silêncio e a imprevista imobilidade
dos ciprestes deixaram-no aterrorizado. Apalpou com a mão o seu
tesouro, a sua "garantia", no bolso do paletó. Mas onde viera parar, àquela hora? naquela escuridão?... Sentiu que a garantia era
justamente o que menos o garantiria... na eventualidade... era uma
razão a mais, aliás, a mais que de
costume... Imagens assustadoras
rodearam-no... Sua velhice indefesa... Sua cana da Índia... com o castão de marfim... Recobrou o ânimo, não podia deixar de fazê-lo
depois de toda aquela viagem: superou os dois degraus, tirou o chapéu, e aí pediu: dá licença?, entrou.
Um gato desceu as escadas precipitadamente, dardejou através do
vestíbulo, sumiu. Quem sabe, talvez dona Esther, como algumas
vezes sói acontecer às velhas, fosse
surda... Ou talvez tivesse passado
mal? O jovem estava correndo
atrás do médico?... Mas, e o telefone, então?... O cavaleiro subiu,
chegou ao patamar das escadas. A
porta de um quarto entreaberta:
no quarto... a luz acesa. O cavaleiro sentiu... sentiu... que os ouros e
as jóias de sua Irma deviam ser
empenhados naquela mesma noite, a qualquer preço... E então...
Então aproximou-se: com um rapapé, como aquele que uma hora
antes saíra-lhe tão bem, diante do
espelho. O chapéu na mão, dessa
vez, as luvas amarelas, a cana da
Índia segurada pelo castão de
marfim, pelo escarpim... Pôs nele,
no rapapé, toda a distinção, todo o
decoro de uma vida. Levantou a
cabeça.
Uma coisa horrenda olhou-o da
cama: com dois olhos horrendos,
fitava-o, de um jeito que o cavaleiro Barbetti jamais vira em sua vida. Parecia estar prestes a vomitar,
a velha: a língua, fora da boca, estava enorme, escura: ele teve a impressão de que dona Esther tinha
enlouquecido, possuída por um
demônio: e que por maldade daquele demônio que a dominava, lá
do íntimo, quisesse insultá-lo e fazer-lhe uma desfeita, a ele, à sua
falecida Irma, ao sacrifício de ambos, às jóias do casamento. No
pescoço, uma espécie de trapo esfiapado... não entendeu o que
era... Bracejou com as mãos, com
as luvas, com o chapéu, com a cana da Índia... retirou-se... O terror
queria petrificá-lo, gostaria de sair
correndo... como o outro... Cri, cri
faziam-lhe sob os pés os malditos
sapatos, ao descer..., cri, cri, cri...
Muitos meses mais tarde, a polícia
conseguiu identificar e prender o
assassino. Fizeram todo tipo de
conjecturas, as pessoas, inventaram todas que quiseram. Das mais
variadas, assustaram. Até aquela,
mas qual!, de que dona Esther tinha uma queda pelo rapazola. A
polícia não, desde o princípio: conhecem o mundo: com o faro, eles
o conhecem: mas são gente séria.
A polícia achou que o rapazola devia ter tomado alguns empréstimos, da velha, talvez até sem garantia, isto sim: confidências imprudentes, talvez: por isso ele sabia, ou tinha adivinhado, que naquela noite às nove dona Esther
"iria receber um cliente": (no caso o cavaleiro Barbetti): e que,
portanto, havia dinheiro em casa.
Dinheiro! Dois coelhos numa cajadada: cancelamento dos débitos,
dinheiro vivo sem recibo.
No processo, além do cavaleiro
Barbetti, mais a cana da Índia e os
sapatos de verniz (sobre os quais o
procurador do ex-rei deteve-se e
dissertou longamente, pois que faziam cri cri, e deduzia-se daí que
deveriam ter acordado a senhora,
a velha: mas aconteceu que não a
despertaram de jeito nenhum),
além de tudo isso, no processo,
veio à baila uma cordinha: não
muito velha, e de qualquer modo
"muito resistente à tração", como a perícia técnica não deixou de
especificar.
Conto extraído do livro "Casamentos Bem Arranjados" (Nova Alexandria).
Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
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