São Paulo, domingo, 4 de outubro de 1998

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A linguagem 'macarrônica'

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Na literatura italiana contemporânea, Carlo Emilio Gadda (1893-1973) ocupa lugar de destaque entre os renovadores da prosa narrativa, ao lado de escritores como Italo Svevo, Alberto Moravia e Italo Calvino.
Menos conhecido no Brasil do que os outros -entre seus títulos publicados aqui estão "O Conhecimento da Dor" e "Aquela Confusão Louca da Via Merula"-, Gadda nem por isso é menos importante. Sua obra notabilizou-se pela pesquisa formal, e ele é considerado uma espécie de James Joyce italiano.
Suas escolhas estéticas lembram mesmo as de nosso Guimarães Rosa: engenheiro elétrico de formação, Gadda viajou muito pelo interior da Itália nos anos 20, pelas pequenas cidades e aldeias do norte e do centro do país, em busca do que se tornaria o material básico de sua carpintaria ficcional: os diversos dialetos italianos, os arcaísmos da língua, as expressões de humor populares.
O experimentalismo linguístico de Gadda, sua pluralidade linguística estão no âmbito da reapropriação que o escritor fez da chamada linguagem "macarrônica", de caracterização expressionista. Essas as suas ferramentas de contestação, de desvio da norma e busca de ordem interna de uma obra estruturada como pastiche, paródia dos clássicos, por meio do cômico e do grotesco.
A coletânea "Casamentos Bem Arranjados" (Nova Alexandria, 232 págs., R$ 23,00) reúne contos escritos entre 1924 e 1958. São histórias que retratam o caos do cotidiano das camadas mais baixas da sociedade italiana do período situado entre as duas grandes guerras mundiais.
Os personagens de Gadda são sujeitos perdidos no conflito entre a idealização e a realização, num mundo que parece ruir diante deles. O conto que dá título à coletânea expressa bem as considerações éticas e estéticas do escritor.
Beniamino Venarvaghi, velho doente, viúvo e sem filhos, tem como objetivo assegurar que sua herança vá para o único parente que lhe resta, um sobrinho neto perdulário, com a condição de que ele se case com uma mulher que, na visão do velho, vai preservá-la.
Por trás desse "casamento arranjado", um pouco do ambiente da Itália fascista, que impunha a supremacia do Estado ao indivíduo e seu interesse privado. O velho Beniamino vive desesperado em busca de caminhos e idéias de como preservar seu patrimônio, que o narrador chama de "Essência", sua "p.p.p.p.p." ("própria e pessoal propriedade particular privadíssima").
O conto é também bom exemplo da linguística densa e complexa de Gadda, que constrói um retrato cômico por meio de arcaísmos e citações de clássicos: "Beniamino também pensara num filho eventual de ambos, sobre o qual concentrar, como Arquimedes na trirreme de Marcelo, a totalidade dos raios ustórios de sua munificência testante (...). O descensus do patrimônio familiar ia cair assim, de repente, no funil ou embude de um vácuo sucessório."
No entanto, o tom geral dessas histórias de Gadda é de um humor melancólico, expressão do universo doloroso e confuso em que seus personagens transitam.
O conto "Um Rapapé Respeitoso", que o Mais! publica nesta página, é um caso bem-acabado do gênero grotesco. A misteriosa casa de persianas verdes da misteriosa dona Esther é o centro de um mundo que perdeu a ordem interna, cheio de formas distorcidas e medonhas.
Basta ver a descrição que Gadda faz "do negro pavoroso que as tílias coagularam no paredão" e dos animais noturnos como grilos e morcegos.
Todo o trajeto do personagem Barbetti até a casa, e sua entrada nela, formam episódio baseado no imprevisto e no insólito, características centrais do grotesco.
É de novo o mundo visto pela ótica da loucura, mundo estranho e desconexo, "que traduz a angústia não perante a morte, mas perante a vida".



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