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A linguagem 'macarrônica'
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Na literatura italiana contemporânea, Carlo Emilio Gadda
(1893-1973) ocupa lugar de destaque entre os renovadores da prosa
narrativa, ao lado de escritores como Italo Svevo, Alberto Moravia e
Italo Calvino.
Menos conhecido no Brasil do
que os outros -entre seus títulos
publicados aqui estão "O Conhecimento da Dor" e "Aquela Confusão Louca da Via Merula"-,
Gadda nem por isso é menos importante. Sua obra notabilizou-se
pela pesquisa formal, e ele é considerado uma espécie de James Joyce italiano.
Suas escolhas estéticas lembram
mesmo as de nosso Guimarães
Rosa: engenheiro elétrico de formação, Gadda viajou muito pelo
interior da Itália nos anos 20, pelas
pequenas cidades e aldeias do norte e do centro do país, em busca do
que se tornaria o material básico
de sua carpintaria ficcional: os diversos dialetos italianos, os arcaísmos da língua, as expressões de
humor populares.
O experimentalismo linguístico
de Gadda, sua pluralidade linguística estão no âmbito da reapropriação que o escritor fez da chamada linguagem "macarrônica",
de caracterização expressionista.
Essas as suas ferramentas de contestação, de desvio da norma e
busca de ordem interna de uma
obra estruturada como pastiche,
paródia dos clássicos, por meio do
cômico e do grotesco.
A coletânea "Casamentos Bem
Arranjados" (Nova Alexandria,
232 págs., R$ 23,00) reúne contos
escritos entre 1924 e 1958. São histórias que retratam o caos do cotidiano das camadas mais baixas da
sociedade italiana do período situado entre as duas grandes guerras mundiais.
Os personagens de Gadda são
sujeitos perdidos no conflito entre
a idealização e a realização, num
mundo que parece ruir diante deles. O conto que dá título à coletânea expressa bem as considerações éticas e estéticas do escritor.
Beniamino Venarvaghi, velho
doente, viúvo e sem filhos, tem como objetivo assegurar que sua herança vá para o único parente que
lhe resta, um sobrinho neto perdulário, com a condição de que ele
se case com uma mulher que, na
visão do velho, vai preservá-la.
Por trás desse "casamento arranjado", um pouco do ambiente
da Itália fascista, que impunha a
supremacia do Estado ao indivíduo e seu interesse privado. O velho Beniamino vive desesperado
em busca de caminhos e idéias de
como preservar seu patrimônio,
que o narrador chama de "Essência", sua "p.p.p.p.p." ("própria
e pessoal propriedade particular
privadíssima").
O conto é também bom exemplo
da linguística densa e complexa de
Gadda, que constrói um retrato
cômico por meio de arcaísmos e
citações de clássicos: "Beniamino
também pensara num filho eventual de ambos, sobre o qual concentrar, como Arquimedes na
trirreme de Marcelo, a totalidade
dos raios ustórios de sua munificência testante (...). O descensus
do patrimônio familiar ia cair assim, de repente, no funil ou embude de um vácuo sucessório."
No entanto, o tom geral dessas
histórias de Gadda é de um humor
melancólico, expressão do universo doloroso e confuso em que seus
personagens transitam.
O conto "Um Rapapé Respeitoso", que o Mais! publica nesta página, é um caso bem-acabado do
gênero grotesco. A misteriosa casa
de persianas verdes da misteriosa
dona Esther é o centro de um
mundo que perdeu a ordem interna, cheio de formas distorcidas e
medonhas.
Basta ver a descrição que Gadda
faz "do negro pavoroso que as tílias coagularam no paredão" e
dos animais noturnos como grilos
e morcegos.
Todo o trajeto do personagem
Barbetti até a casa, e sua entrada
nela, formam episódio baseado no
imprevisto e no insólito, características centrais do grotesco.
É de novo o mundo visto pela
ótica da loucura, mundo estranho
e desconexo, "que traduz a angústia não perante a morte, mas
perante a vida".
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