São Paulo, domingo, 4 de outubro de 1998

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MADE IN USA
O poder do grupo

Divulgação
Cena do filme "Kids", de Larry Clark


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

O livro-sensação desta volta às aulas nos EUA é "The Nurture Assumption", de Judith Rich Harris, publicado pela Free Press (480 págs., US$ 26). Uma tradução literal -e um pouco brincalhona- do título seria: "A Assunção das Influências Criadoras" -a versão brasileira precisará achar algo melhor. De qualquer forma, cabe lembrar que uma assunção é uma idéia que todo o mundo parece aceitar, embora sua verdade não seja comprovada. E as ditas "influências criadoras" são os efeitos que particularmente os pais teriam no desenvolvimento da personalidade, do caráter e do destino de suas crianças. O subtítulo do livro (de tradução mais fácil) acrescenta e explica: "Por Que as Crianças Dão no Que Dão - Os Pais Contam Menos do Que Vocês Pensam e os Colegas (das Crianças) Contam Mais".
O livro ganhou a capa da "Newsweek" (7 de setembro), mereceu um excelente artigo de M. Gladwell na "New Yorker" (17 de agosto), invadiu os talk-shows da televisão e suscitou naturalmente uma série de respostas e debates que ainda continuam na imprensa cotidiana.
A polêmica foi tanto mais viva porque a autora, Judith Rich Harris, é, como disse a "New Yorker", "uma avó da periferia de New Jersey", ou seja, uma psicóloga sem doutorado, sem cátedra e sem pesquisa própria, forçada por sua saúde precária a ganhar a vida redigindo livros de texto para o ensino superior. Em um belo dia de 1994, Judith Rich Harris cansou do que estava lendo para redigir seus textos de encomenda. Tratava-se de um artigo de Terrie Moffitt (um psicólogo do desenvolvimento) que explicava a delinquência dos adolescentes como um comportamento social transgressor pelo qual eles tentariam conquistar o estatuto de adultos.
Ora, Rich teve uma espécie de iluminação: "Os adolescentes", ela exclamou, "não querem se parecer com os adultos, eles querem, ao contrário, se diferenciar dos adultos!". Segundo ela conta, foi a partir desta constatação que Rich chegou a sua idéia principal, segundo a qual o que é decisivo e formador no desenvolvimento infantil não é a educação imposta pelos pais, não é a identificação com eles, mas muito mais o projeto de fazer grupo com seus pares e coetâneos. E isso, para Rich, não é verdade só para os adolescentes, mas também para as crianças desde bem pequenas.
A tese de Rich (e sobretudo o sucesso de seu livro) produziu a indignação da maioria dos psicólogos do desenvolvimento (e dos psicanalistas). O venerável Jerome Kagan, da Universidade Harvard, lhe consagrou um artigo cáustico ("Boston Globe" de 13 de setembro), no qual acabou invocando os perigos da tese de Rich, segundo a qual todos os pais seriam de antemão perdoados: façam o que quiserem. De qualquer forma, tapas, abusos ou beijos dão na mesma, pois o que importaria no desenvolvimento de seus filhos seriam os grupos de amigos e camaradas. Poderíamos, aliás, responder a Kagan no mesmo nível, notando que, reciprocamente, a "assunção da influência criadora" entretém nos pais o fantasma de uma culpa infindável e assim alimenta há décadas um mercado terapêutico diretamente proporcional a esta culpa.
O livro de Rich intervém no debate -que estava ficando mortalmente aborrecido- entre "nature and nurture" (natureza e criação), ou seja, entre os que acreditam que nossa vida é efeito da natureza (dos genes que herdamos) e os que acreditam que tudo depende da cultura que nos foi transmitida (principalmente) pelos pais. Esta discussão, já podre, se resolveu por uma trégua segundo a qual natureza e cultura decidem cada uma por 50% de nossos destinos. O que é uma maneira elegante de dizer que ninguém conseguiu produzir argumentos decisivos. Até porque na maioria dos casos a interpretação dos dados depende mesmo de uma assunção.
Por exemplo, quem leu Margaret Mead lembra que, na Nova Guiné, há duas tribos, os Arapesh da montanha e os Mundugumor do rio. Os primeiros são pacíficos, os segundos são belicosos, canibais e caçadores de cabeças. E por que são assim tão diferentes? O fato é que os Arapesh são carinhosos com suas crianças, e os Mundugumor gritam e batem nelas. Assim, desde no mínimo os anos 30, podemos pensar que pais que batem produzem crianças (e subsequentes adultos) violentas. E pais carinhosos produzem crianças e adultos cheios de graça.
Consequências:
1. A educação pode mudar o mundo. Cada gracinha feita a um bebê pode contribuir para produzir um mundo diferente amanhã.
2. Tudo o que acontece de ruim com nossas crianças é culpa nossa. Tudo o que há de ruim ao redor de nós e em nós mesmos deve ser efeito dos horrores que nossos pais nos fizeram.
Mas estas idéias não constituem nenhuma implicação do trabalho de campo. Não está demonstrado um laço causal entre o comportamento dos pais e o devir das crianças. Poderia ser, por exemplo, que Arapesh e Mundugumor simplesmente transmitam para seus rebentos (respectivamente) o gene canibal ou o gene do sorriso e que seu comportamento não tenha importância formadora nenhuma. Se acreditamos na potência formadora de tapas ou carinho dos pais, é, nos lembra Rich, devido a um pressuposto cultural -um corolário do jeito moderno de amar as crianças, colocando nelas todas as nossas esperanças. Por elas serem portadoras de nossos sonhos, achamos normal que seu êxito ou não na vida dependa de nós.
A esta assunção Rich responde propondo uma terceira interpretação: os pequenos Arapesh e Mundugumor talvez se tornem gentis ou cruéis -membros adequados de sua cultura- não pelo que aprendem de seus pais, nem por necessidade genética, mas por conformidade com os costumes de seus coetâneos e pares. Pouco importa tentar decidir abstratamente quem tem razão. Entre estas três hipóteses (tudo vem dos genes, a cultura vem dos pais ou então a cultura vem dos pares) na verdade é difícil cortar.
Com efeito, a leitura do livro de Rich é também engraçada por isso: porque mostra (sem querer) com quanta facilidade é possível utilizar os dados das mesmas pesquisas para chegar a interpretações opostas. Além do mais, na grande maioria das pesquisas citadas e nas próprias elucubrações pessoais de Rich a falta de inteligência clínica é dolorosa. Por exemplo, Rich pretende mostrar a importância dos fatores genéticos contra a assunção criadora lembrando como, na mesma família, uma filha adotiva acaba sendo diferente de sua irmã não adotiva -apesar de elas terem os mesmos pais.
A cegueira é total sobre o fato de que ter os mesmos pais não significa nunca tecer com eles os mesmos laços. Portanto a diferença entre irmãos e irmãs demonstra a complexidade dos amores parentais e filiais, não sua irrelevância. Por isso, quando Rich parece propor sua hipótese explicativa do desenvolvimento (são os pares e não os pais que mais influenciam a criança) como se fosse uma regra universal, ditada por imperativos da própria evolução da espécie, o livro se torna fraco e chato. Ao contrário, o interesse aparece quando Rich reconhece que sua hipótese vale sobretudo para nossa modernidade. De repente, sua interpretação parece singularmente convincente em um mundo no qual a personalidade e o caráter parecem se constituir não pela via da obediência (aos requisitos paternos ou comunitários), mas pela necessidade de ser aceito pelos grupos entre os quais se divide nossa subjetividade.
Deste ponto de vista, o inesperado sucesso do livro de Rich sugere uma espécie de mudança ideológica: a passagem de uma fé automática no poder educativo da atitude e do comportamento dos pais (justamente, a assunção que Rich contesta) à idéia de que o essencial da personalidade moderna se constrói por conformidade.
Nos anos 30 o casal Kelloggs (nada a ver com os sucrilhos) decidiu criar juntos seu filho Donald, de 10 meses, e um chimpanzé, Gua, de 7 meses. Queriam investigar os limites entre natureza humana e aprendizado, ou seja, esperavam descobrir quanta humanidade podia ser transmitida a um chimpanzé por cuidados parentais humanos. A experiência foi interrompida antes do previsto, quando os Kelloggs se deram conta de que seu filho Donald se transformava cada vez mais em um macaco.



Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail:ccalligari@aol.com

Onde encomendar
"The Nurture Assumption", de Judith Rich Harris, pode ser adquirido na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, SP, tel. 011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books (http://www.amazon.com).



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