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+ cultura
Heidegger sem disfarces
Cartas entre o filósofo alemão e sua mulher ajudam a entender a gênese de sua obra e a relação com o nazismo
NICOLAS WEILL
A publicação das cartas do filósofo Martin Heidegger
[1889-1976] a sua
mulher, Elfride
-por volta de 15% do total superior a mil- representa um
rude abalo para os que se esforçam por distinguir sua obra,
uma das mais influentes do século 20, e sua vida, sobre a qual
o envolvimento com o nazismo
lança sombra persistente.
O livro [recém-lançado em
francês como "Ma Chère Petite
Âme", Seuil, 528 págs., 25, R$
63] traz escritos íntimos, endereçados a uma mulher que Heidegger conheceu em 1915, como parte de um grupo de estudantes ao qual ensinava Kant.
Elfride o acompanharia até a
morte dele, a despeito das infidelidades incessantes do marido, das quais o caso com Hannah Arendt foi apenas a mais
célebre. Mas ainda assim o vocabulário utilizado é claramente o de Heidegger, repleto dos
conceitos que lhe eram caros, a
serviço de uma retórica erótico-filosófica grandiosa (os dois
compartilhavam do amor por
Hölderlin).
Selecionadas pela neta do filósofo, Gertrud, as cartas constituem um reflexo fiel e honesto quanto ao timbre geral da
correspondência entre os dois.
O livro reproduz na íntegra a
correspondência do casal no
período mais sensível da biografia do filósofo, o do regime
nazista, durante o qual foi por
algum tempo reitor da universidade de Freiburg (em 1933 e
1934), embora o casal aparentemente tenha destruído grande parte das cartas.
Esses arquivos oferecem um
testemunho apaixonado sobre
a vida cotidiana -tantas vezes
difícil- dos alemães do século
passado, em meio a guerras
mundiais (na primeira, Heidegger trabalhava no serviço de
censura do correio), restrições
de toda ordem e, nos anos 20,
inflação recorde.
Elas também demonstram
de maneira inequívoca de que
modo foi preparado o terreno
para que Hitler assumisse o poder e a sedução que ele exercia,
além do círculo dos militantes
nazistas, sobre uma direita
conservadora de mente estreita e interessada em preservar
seus privilégios -e que o casal
Heidegger encarna com perfeição nessa troca de cartas.
Conhecemos os sarcasmos
de Elfriede Jelinek, austríaca
que conquistou o Prêmio Nobel de Literatura em 2004, sobre a exaltação das marchas
nas montanhas, dos chalés com
tetos recobertos de neve, da
paixão pelo "chão" que oculta a
xenofobia e o racismo.
Sabemos, por meio de "A
Doença Alemã", de Johannes
Willms, sobre as aldeias alemãs
do passado, com seu espírito
corporativista, o ódio imenso
pela civilização urbana e o senso inato de exclusão.
E eis que esses traços podem
ser descobertos, em versão original, na pena de um dos maiores pensadores ocidentais!
A íntegra deste artigo saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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