São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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+ cultura

Heidegger sem disfarces

Cartas entre o filósofo alemão e sua mulher ajudam a entender a gênese de sua obra e a relação com o nazismo

NICOLAS WEILL

A publicação das cartas do filósofo Martin Heidegger [1889-1976] a sua mulher, Elfride -por volta de 15% do total superior a mil- representa um rude abalo para os que se esforçam por distinguir sua obra, uma das mais influentes do século 20, e sua vida, sobre a qual o envolvimento com o nazismo lança sombra persistente.
O livro [recém-lançado em francês como "Ma Chère Petite Âme", Seuil, 528 págs., 25, R$ 63] traz escritos íntimos, endereçados a uma mulher que Heidegger conheceu em 1915, como parte de um grupo de estudantes ao qual ensinava Kant.
Elfride o acompanharia até a morte dele, a despeito das infidelidades incessantes do marido, das quais o caso com Hannah Arendt foi apenas a mais célebre. Mas ainda assim o vocabulário utilizado é claramente o de Heidegger, repleto dos conceitos que lhe eram caros, a serviço de uma retórica erótico-filosófica grandiosa (os dois compartilhavam do amor por Hölderlin).
Selecionadas pela neta do filósofo, Gertrud, as cartas constituem um reflexo fiel e honesto quanto ao timbre geral da correspondência entre os dois.
O livro reproduz na íntegra a correspondência do casal no período mais sensível da biografia do filósofo, o do regime nazista, durante o qual foi por algum tempo reitor da universidade de Freiburg (em 1933 e 1934), embora o casal aparentemente tenha destruído grande parte das cartas.
Esses arquivos oferecem um testemunho apaixonado sobre a vida cotidiana -tantas vezes difícil- dos alemães do século passado, em meio a guerras mundiais (na primeira, Heidegger trabalhava no serviço de censura do correio), restrições de toda ordem e, nos anos 20, inflação recorde.
Elas também demonstram de maneira inequívoca de que modo foi preparado o terreno para que Hitler assumisse o poder e a sedução que ele exercia, além do círculo dos militantes nazistas, sobre uma direita conservadora de mente estreita e interessada em preservar seus privilégios -e que o casal Heidegger encarna com perfeição nessa troca de cartas.
Conhecemos os sarcasmos de Elfriede Jelinek, austríaca que conquistou o Prêmio Nobel de Literatura em 2004, sobre a exaltação das marchas nas montanhas, dos chalés com tetos recobertos de neve, da paixão pelo "chão" que oculta a xenofobia e o racismo.
Sabemos, por meio de "A Doença Alemã", de Johannes Willms, sobre as aldeias alemãs do passado, com seu espírito corporativista, o ódio imenso pela civilização urbana e o senso inato de exclusão.
E eis que esses traços podem ser descobertos, em versão original, na pena de um dos maiores pensadores ocidentais!


A íntegra deste artigo saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.

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