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Ponto de fuga
O traço do nu
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O
Conjunto Cultural da Caixa, na
praça da Sé (tel. 0/xx/11/3107-0498), em São Paulo, apresenta
uma exposição de Vincenzo Scarpellini, centrada em desenhos de nu. Diz o
artista: "Me parece que nos meus desenhos
é como se o espaço branco comprimisse
um espaço preto até reduzi-lo a um fio, mas
a linha tem alto peso específico, de alta intensidade. Quase que é o branco que faz esses desenhos, não o preto". Isso sublinha a
interação crucial entre traço e papel, ou seja, entre, de um lado, o sinal, o que dá sentido, o que divide ou ajunta, e, de outro, a luz,
o branco, que é ao mesmo tempo que não é,
que se expõe em promessa de vir-a-ser.
Trata-se de existências concomitantes.
Se a "linha tem alto peso específico, de alta intensidade", o branco não tem matéria,
não tem peso. Sua intensidade é paradoxalmente difusa, sem a concentração que existe no traço. Mas o entendimento entre a
marca e o não-marcado, que oferece tanta
força a esses desenhos, não os esgota. Diante deles, nada pode ser tomado como generalidade abstrata. Porque a tensão harmoniosa irrompe em formas de forte poder
significante que brotam da obsessão pelo
nu feminino.
É melhor dizer no plural: os nus. Porque,
apesar do caráter sintético dessas obras,
elas não são pretexto para formas, para ondulações genéricas, que se dissolvem num
vago erotismo alusivo.
Ao contrário, esses nus guardam, se não a
personalidade das retratadas, uma indiscutível individualidade. Scarpellini obriga
seus modelos a posições que se centram no
sexo. Mesmo quando está escondida, a vagina é o centro ponderável de onde emana
toda a energia do traço.
Expansões
As folhas expostas por Scarpellini na Caixa, em São Paulo, mostram manchas escuras que sugerem sombras e pelos. Moldam
o vazio branco para lhes conferir uma carnalidade imaginária e silenciosa. Tudo parte do desenho cheio de caráter, voluntário,
que revela uma sensibilidade amorosa, fascinada diante do modelo. A forma se submete à qualidade expressiva da linha, a
uma singular volúpia que se purifica pelo
despojamento.
Liberdades
"Salvator Rosa", de Carlos Gomes, talvez
tenha sido a última ópera do "Risorgimento". O percurso das composições patrióticas, desde as últimas óperas de Rossini, nos
anos de 1820, desde a "Norma" de Bellini,
em 1831, desde o jovem Verdi, se terminava
com o músico brasileiro, em 1874, logo depois que a unidade italiana se completara.
A música, que exulta de febre patriótica,
fazia vibrar a fibra libertária dos italianos. O
belo libreto de Antonio Ghislanzoni, o mesmo que redigira "Aida", revela colorações
socialistas, celebrando o povo em revolta.
Põe em cena a revolução napolitana liderada por Masaniello, no século 17, da qual
participou o grande pintor Salvator Rosa.
Liga assim o combate pela liberdade e as
chamas da criação artística. "Salvator Rosa", durante a vida de Gomes, foi, junto de
"Il Guarany", seu maior sucesso. Carlos
Gomes era então coroado de louros em cena aberta, quando poetas liam sonetos que
associavam a "fúria selvagem" de sua arte a
um vigor que lhes parecia vindo do Novo
Mundo. A canção de Gennariello, "Mia Piccirella", tornou-se um triunfo popular, cantada nos cafés, nos circos, nas ruas. Foi gravada por Caruso e por Claudia Muzio. O
monólogo do Duca d'Arcos incorporou-se
ao repertório dos baixos: desde o início do
século 20 que os mais célebres intérpretes
deixaram suas versões em disco.
Gogós
A música de "Salvator Rosa" debruça-se
sobre "D. Carlo". Gomes certamente meditou sobre a formidável partitura de Verdi.
Como a do mestre maior, trata-se de uma
ópera faustuosa (Carlo Ferrario, mítico decorador dos teatros italianos, considerava
os cenários que desenhou para a estréia de
"Salvator Rosa", em 1874, sua obra-prima).
Ela também exige um naipe de prodigiosos
cantores. A apresentação recente no teatro
São Pedro (SP) fez jus à grandeza da música. Sob a regência do maestro Fábio Gomes
de Oliveira, diante da Sinfônica de Americana, o elenco, homogêneo, enfrentou belamente e com nobreza todos os percalços
da difícil partitura.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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