São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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Ponto de fuga

O traço do nu

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Conjunto Cultural da Caixa, na praça da Sé (tel. 0/xx/11/3107-0498), em São Paulo, apresenta uma exposição de Vincenzo Scarpellini, centrada em desenhos de nu. Diz o artista: "Me parece que nos meus desenhos é como se o espaço branco comprimisse um espaço preto até reduzi-lo a um fio, mas a linha tem alto peso específico, de alta intensidade. Quase que é o branco que faz esses desenhos, não o preto". Isso sublinha a interação crucial entre traço e papel, ou seja, entre, de um lado, o sinal, o que dá sentido, o que divide ou ajunta, e, de outro, a luz, o branco, que é ao mesmo tempo que não é, que se expõe em promessa de vir-a-ser. Trata-se de existências concomitantes.
Se a "linha tem alto peso específico, de alta intensidade", o branco não tem matéria, não tem peso. Sua intensidade é paradoxalmente difusa, sem a concentração que existe no traço. Mas o entendimento entre a marca e o não-marcado, que oferece tanta força a esses desenhos, não os esgota. Diante deles, nada pode ser tomado como generalidade abstrata. Porque a tensão harmoniosa irrompe em formas de forte poder significante que brotam da obsessão pelo nu feminino.
É melhor dizer no plural: os nus. Porque, apesar do caráter sintético dessas obras, elas não são pretexto para formas, para ondulações genéricas, que se dissolvem num vago erotismo alusivo.
Ao contrário, esses nus guardam, se não a personalidade das retratadas, uma indiscutível individualidade. Scarpellini obriga seus modelos a posições que se centram no sexo. Mesmo quando está escondida, a vagina é o centro ponderável de onde emana toda a energia do traço.

Expansões
As folhas expostas por Scarpellini na Caixa, em São Paulo, mostram manchas escuras que sugerem sombras e pelos. Moldam o vazio branco para lhes conferir uma carnalidade imaginária e silenciosa. Tudo parte do desenho cheio de caráter, voluntário, que revela uma sensibilidade amorosa, fascinada diante do modelo. A forma se submete à qualidade expressiva da linha, a uma singular volúpia que se purifica pelo despojamento.

Liberdades
"Salvator Rosa", de Carlos Gomes, talvez tenha sido a última ópera do "Risorgimento". O percurso das composições patrióticas, desde as últimas óperas de Rossini, nos anos de 1820, desde a "Norma" de Bellini, em 1831, desde o jovem Verdi, se terminava com o músico brasileiro, em 1874, logo depois que a unidade italiana se completara.
A música, que exulta de febre patriótica, fazia vibrar a fibra libertária dos italianos. O belo libreto de Antonio Ghislanzoni, o mesmo que redigira "Aida", revela colorações socialistas, celebrando o povo em revolta. Põe em cena a revolução napolitana liderada por Masaniello, no século 17, da qual participou o grande pintor Salvator Rosa.
Liga assim o combate pela liberdade e as chamas da criação artística. "Salvator Rosa", durante a vida de Gomes, foi, junto de "Il Guarany", seu maior sucesso. Carlos Gomes era então coroado de louros em cena aberta, quando poetas liam sonetos que associavam a "fúria selvagem" de sua arte a um vigor que lhes parecia vindo do Novo Mundo. A canção de Gennariello, "Mia Piccirella", tornou-se um triunfo popular, cantada nos cafés, nos circos, nas ruas. Foi gravada por Caruso e por Claudia Muzio. O monólogo do Duca d'Arcos incorporou-se ao repertório dos baixos: desde o início do século 20 que os mais célebres intérpretes deixaram suas versões em disco.

Gogós
A música de "Salvator Rosa" debruça-se sobre "D. Carlo". Gomes certamente meditou sobre a formidável partitura de Verdi. Como a do mestre maior, trata-se de uma ópera faustuosa (Carlo Ferrario, mítico decorador dos teatros italianos, considerava os cenários que desenhou para a estréia de "Salvator Rosa", em 1874, sua obra-prima). Ela também exige um naipe de prodigiosos cantores. A apresentação recente no teatro São Pedro (SP) fez jus à grandeza da música. Sob a regência do maestro Fábio Gomes de Oliveira, diante da Sinfônica de Americana, o elenco, homogêneo, enfrentou belamente e com nobreza todos os percalços da difícil partitura.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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