São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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Expressões da história, a preservação ou destruição de marcos visuais de líderes ou regimes, como bustos e estátuas de Franco ou de Stálin, dizem muito sobre a sucessão e a transferência do poder em cada país

Batalhas de símbolos

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

A compreensão do passado, a permanência ou não de seus traços no presente, ganha uma luz sugestiva quando nos detemos em expressões simbólicas, ligadas ou desligadas de acontecimentos. Como exemplo de fato simbólico material, o complexo processo de desmantelamento do comunismo acabou simbolizado pela queda do Muro de Berlim, em 1989.
Um dos indicadores da força expressiva do simbolismo diz respeito ao culto ou execração de personagens, corporificados em estátuas representativas não só deles como do regime político de que constituem a representação. A tal ponto que tem muito interesse não só a implantação como a permanência, o conteúdo estético e o destino da estatuária ao longo do tempo.


Stálin usou a preservação do corpo de Lênin para propósitos políticos, contrariando os desejos deste


Com muita freqüência, as estátuas se ligam ao culto da personalidade de ditadores de diversas estirpes. Convém lembrar, porém, que essa forma expressiva tem algo de arcaico e foi pouco utilizada por um regime de "horror revolucionário" como o nazismo. Este preferiu cultuar o Führer e o Reich nacional-socialista, cuja duração seria de mil anos, por meio de grandes cerimônias rituais. As mais espetaculares ocorreram nos congressos do Partido Nacional Socialista, em Nuremberg, filmados com grande qualidade por Leni Riefenstahl, uma das musas do regime.
Feita a ressalva, quando vemos imagens da Coréia do Norte -um país de ficção-verdade-, salta aos olhos a imensa estátua de Kim Il Sung, o líder infalível sucedido por seu filho Kim Jong Il, venerada por milhões de coreanos. Certamente, a permanência retumbante dessa estátua, num extremo, ou a sua transformação em sucata, no outro, vai depender dos rumos históricos do país. Mas a hipótese da destruição, ao que tudo indica, se desenha num futuro ainda distante.

Ruptura e transição
As estátuas de figuras que personificam regimes desaparecidos têm uma história bem diversa do culto do símbolo de um regime ainda vigente. Podemos distinguir aí, basicamente, duas situações, em razão do processo de liquidação do regime, pela via da ruptura ou da transição. No primeiro caso, a derrubada das estátuas simboliza cruamente a destruição o regime. Assim, quando Bagdá foi ocupada pelas tropas da chamada coalizão, a estátua de Saddam Hussein veio espetacularmente abaixo, abatida pelos militares e por civis xiitas, antes que o ditador viesse a ser preso, tempos depois.
Os casos da transição são mais interessantes porque neles se introduz uma "batalha de símbolos", expressando a revisão de um passado antes glorificado ou os traços de sua renitente sobrevivência. Um exemplo dos mais interessantes é o da Espanha, na fase que se seguiu ao fim do regime franquista, inaugurada pelo consenso básico entre diferentes forças políticas, estabelecido pelo Pacto da Moncloa, em 1977. Impressiona a persistência da memória do ditador Franco, talhada em pedra, com várias distinções.

Permanência de Lênin
As prefeituras controladas pela esquerda eliminaram os monumentos rapidamente. Entretanto idêntica providência só ocorreu no ano passado em cidades como Guadalajara e Madri, neste último caso, na calada da noite; em Santander, cidade de tradição conservadora, a retirada é apenas um projeto. Por certo, o franquismo espanhol constitui hoje um fenômeno minoritário, mas a dificuldade ou a recusa em suprimir marcos da ditadura revela pelo menos nuanças no que diz respeito a sua total condenação.
Por outro lado, ressalvado o quadro asiático, o fim dos regimes comunistas provocou uma derrubada em grande escala do estatuário de Lênin e de outros líderes, nos países da periferia soviética, aí se incluindo o caso da Alemanha Oriental, tão bem retratado no filme alemão "Adeus Lênin". Na União Soviética, ocorreu um processo diverso, pois, se bem ou mal muitos vestígios de Stálin desapareceram, o mesmo não aconteceu com Lênin, cujas estátuas permanecem intactas, como se o país não tivesse sofrido uma transição de regime, que deu origem à implantação de um capitalismo de feições selvagens.
Para os dirigentes da nova ordem, quase todos provenientes da época stalinista, apesar da existência nada desprezível de admiradores dos velhos tempos, manter as representações de Stálin seria embaraçoso, mesmo porque, desde Kruschev, se iniciou um processo de gradativa demolição de sua figura.
Lênin, pelo contrário, parece representar um grande símbolo revolucionário, um Pedro, o Grande, do século 20, desvinculado dos grandes expurgos, dos campos de concentração, o que não deixa de ser verdade, se considerarmos que ele morreu precocemente, em 1922.
O caso de Lênin vai além, pois não só a estatuária permanece como seu corpo embalsamado se conserva, na tumba da praça Vermelha, visitada por milhares de pessoas. A "imortalidade" de Lênin se liga a um capítulo da história do stalinismo porque o líder soviético, por maior que fosse sua disposição autoritária de implantar um sistema igualitário a ferro e fogo, jamais desejou que fosse objeto, após a morte, de um culto da personalidade.
Mas Stálin usou a preservação do corpo para seus propósitos políticos, contrariando os desejos de Lênin e de sua família para que, após a morte, fosse enterrado ao lado da mãe, em um cemitério de Petrogrado. Não era outra coisa que propunham Trótski, Bukharin e Kamenev, todos, aliás, assassinados de diferentes formas pelo "genial guia dos povos".
Como relata o historiador inglês Orlando Figes, na monumental obra "A Tragédia de um Povo" (Record), Trótski ficou particularmente horrorizado com a medida, que comparou à veneração das relíquias, uma prática utilizada pela Igreja Ortodoxa russa.
Nos dias que correm, vale a pena acompanhar de perto as pressões para que o corpo de Lênin venha por fim a ser enterrado, como desejava. Mas, nestes tempos utilitários, pode ser que a visita ao morto embalsamado, por milhares de pessoas, seja valorizada também como atração turística. É pelo menos o que acontece com a tumba de Franco, no Vale dos Caídos, visitada anualmente por mais de 400 mil pessoas.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras).


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