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Alvo de críticas severas quando foi publicado em 1855, "Folhas de Relva",
de Walt Whitman, tem seus 12 poemas iniciais em nova tradução
A polifonia do corpo
IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
poesia de Walt Whitman
[1819-1892] teve seu momentum ao ser contraposta
ao elegismo espiritual de
Rainer Maria Rilke [1875-1926], já
que formalmente se exprimia pelo
mesmo tipo de derramamento versicular, só que exaltava não as qualidades angelicais do homem, mas, ao
contrário, sua importância corpórea
em relação a seu meio.
As "Folhas de Relva" ("Leaves of
Grass"), publicadas inicialmente em
1855, só por volta de 1920 começaram a ser criticamente apreciadas
em seu país, pois durante as três décadas precedentes o livro foi visto
sob as mais severas reservas, principalmente pela ousadia de introduzir
na linguagem poética referências sexuais até então consideradas tabus.
A linguagem escancarada de
Whitman, sua oratória desabrida, a
temática polifônica, a franqueza em
falar sem embuços sobre os relacionamentos humanos fizeram de "Folhas de Relva" um dos livros mais
originais e poderosos da literatura
mundial.
Desde muito se esperava a edição
completa desses poemas em português, e agora, no 150º aniversário da
publicação de "Folhas de Relva", a
editora Iluminuras nos oferece os 12
poemas iniciais (que compunham a
primeira edição), traduzidos por
Rodrigo Garcia Lopes, trabalho que
embora ainda não ponha o leitor
brasileiro diante da obra poética
conjunta do bardo americano, pelo
menos contribui com uma significativa amostragem dela, acrescida de
longo estudo crítico sobre sua importância literária e a vida do autor,
o que dispensa as habituais navegações pela internet.
O interesse pela obra de Whitman
entre nós pode ser assinalado desde
1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou em "A República", de
Natal, três artigos que incluíam as
traduções dos poemas "I Hear America Singing" [Eu Ouço a América
Cantando], "The Base of All Metaphysics" [A Base de Toda a Metafísica] e "For You, o Democracy" [Para Você, Democracia]. Já nessa época, o nosso grande foclorista reconhecia em Whitman "um dos mais
difíceis "originais" para tradução. (...)
Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível".
Homossexualismo
Seguindo-lhe os passos, Gilberto
Freyre, em maio de 1947, referia-se à
originalidade e ao pioneirismo daquele "anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de
uma negra". Embora a digressão estivesse focada na conceituação de
democracia e nas interpretações políticas do vate, Gilberto Freyre não se
inibiu de abordar a questão-chave
do homossexualismo de Whitman,
como neste trecho: "O que teve parece que foi principalmente a coragem
de grandes amizades com outros homens (algumas -admita-se- de
remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por
"mulheres perfeitas". Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do
sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão
masculino em sua atitude como "A
Woman Waits for Me" [Uma Mulher Espera por Mim]. Apenas, a
mulher por ele idealizada não era a
lânguida, a frágil, a excessivamente
delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico
do homem sobre a mulher em que
esta é antes um subsexo do que o sexo oposto".
Propriamente quanto à tradução
dos poemas, as contribuições mais
próximas vieram de Oswaldino
Marques, Manuel Ferreira Santos,
Emílio Carrera Guerra, Pompeu de
Souza, Geir Campos, André Cardoso e José Lino Grünewald . A mais
significativa até agora, em quantidade e qualidade, é sem dúvida a de
Eduardo Francisco Alves, em "Walt Whitman - A
Formação do Poeta", de Paul Zweig
(Zahar, 1988), em que a poesia de
Whitman se mostra em toda a sua
ressonância.
A nova tradução de uma obra poética é sempre louvável, pois se espera
que seja um avanço em relação às
que a antecederam, tanto no sentido
de sua completude quanto no de
uma abordagem mais acurada em
virtude do aparato crítico interpretativo superveniente.
No caso da tradução de Garcia Lopes, se não podemos falar em completude, como esperávamos, já que
se restringe aos 12 poemas da edição
de 1855, no que respeita à abordagem há algo a ser dito. O tradutor
optou por "modernizar" a linguagem do poeta, emprestando-lhe termos coloquiais e mesmo jargões que
parecem destinados a orientar a leitura para um público "genérico",
sem grandes compromissos vernaculares. Assim, por exemplo, "few
embraces" é traduzido por "alguns
agarros", "the rush of the streets"
por "o agito das ruas", "lack of money" por "falta de grana" e "old
maid" por "coroa solteirona". Há
construções curiosas como "grassar
de", "se colapsa" e "a gente que eu
cruzo". É possível que esse tipo de
interferência ou reescrita "atualizada" do tradutor possa concorrer para uma melhor aceitação da obra por
aquele público-alvo, mas, se acatarmos a lição de Carpeaux de que
Whitman é um "poeta para poetas",
essa opção de linguagem certamente
causará estranheza quando cotejada
com as frases coloquiais, mas sempre no âmbito do idioma-padrão,
utilizadas por Whitman.
Salvo esse tipo de discordância,
Garcia Lopes soube mostrar na quase totalidade dos versos sua tarimba
de tradutor, saindo-se bem das armadilhas e tonalidades que Câmara
Cascudo dizia intraduzíveis. Sirva a
edição comemorativa como incentivo aos nossos editores e tradutores
para nos trazerem finalmente um
Whitman "complete and unabridged" [completo e sem cortes].
Ivo Barroso é poeta e crítico, autor de "A
Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.
Folhas de Relva
320 págs., preço a definir
de Walt Whitman. Trad. Rodrigo Garcia Lopes. Iluminuras (r. Inácio Pereira da Rocha,
389, CEP 05432-011, São Paulo, SP, tel. 0/
xx/11/ 3031-6161).
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