São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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Alvo de críticas severas quando foi publicado em 1855, "Folhas de Relva", de Walt Whitman, tem seus 12 poemas iniciais em nova tradução

A polifonia do corpo

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A poesia de Walt Whitman [1819-1892] teve seu momentum ao ser contraposta ao elegismo espiritual de Rainer Maria Rilke [1875-1926], já que formalmente se exprimia pelo mesmo tipo de derramamento versicular, só que exaltava não as qualidades angelicais do homem, mas, ao contrário, sua importância corpórea em relação a seu meio.
As "Folhas de Relva" ("Leaves of Grass"), publicadas inicialmente em 1855, só por volta de 1920 começaram a ser criticamente apreciadas em seu país, pois durante as três décadas precedentes o livro foi visto sob as mais severas reservas, principalmente pela ousadia de introduzir na linguagem poética referências sexuais até então consideradas tabus.
A linguagem escancarada de Whitman, sua oratória desabrida, a temática polifônica, a franqueza em falar sem embuços sobre os relacionamentos humanos fizeram de "Folhas de Relva" um dos livros mais originais e poderosos da literatura mundial.
Desde muito se esperava a edição completa desses poemas em português, e agora, no 150º aniversário da publicação de "Folhas de Relva", a editora Iluminuras nos oferece os 12 poemas iniciais (que compunham a primeira edição), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes, trabalho que embora ainda não ponha o leitor brasileiro diante da obra poética conjunta do bardo americano, pelo menos contribui com uma significativa amostragem dela, acrescida de longo estudo crítico sobre sua importância literária e a vida do autor, o que dispensa as habituais navegações pela internet.
O interesse pela obra de Whitman entre nós pode ser assinalado desde 1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou em "A República", de Natal, três artigos que incluíam as traduções dos poemas "I Hear America Singing" [Eu Ouço a América Cantando], "The Base of All Metaphysics" [A Base de Toda a Metafísica] e "For You, o Democracy" [Para Você, Democracia]. Já nessa época, o nosso grande foclorista reconhecia em Whitman "um dos mais difíceis "originais" para tradução. (...) Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível".

Homossexualismo
Seguindo-lhe os passos, Gilberto Freyre, em maio de 1947, referia-se à originalidade e ao pioneirismo daquele "anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de uma negra". Embora a digressão estivesse focada na conceituação de democracia e nas interpretações políticas do vate, Gilberto Freyre não se inibiu de abordar a questão-chave do homossexualismo de Whitman, como neste trecho: "O que teve parece que foi principalmente a coragem de grandes amizades com outros homens (algumas -admita-se- de remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por "mulheres perfeitas". Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão masculino em sua atitude como "A Woman Waits for Me" [Uma Mulher Espera por Mim]. Apenas, a mulher por ele idealizada não era a lânguida, a frágil, a excessivamente delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico do homem sobre a mulher em que esta é antes um subsexo do que o sexo oposto".
Propriamente quanto à tradução dos poemas, as contribuições mais próximas vieram de Oswaldino Marques, Manuel Ferreira Santos, Emílio Carrera Guerra, Pompeu de Souza, Geir Campos, André Cardoso e José Lino Grünewald . A mais significativa até agora, em quantidade e qualidade, é sem dúvida a de Eduardo Francisco Alves, em "Walt Whitman - A Formação do Poeta", de Paul Zweig (Zahar, 1988), em que a poesia de Whitman se mostra em toda a sua ressonância.
A nova tradução de uma obra poética é sempre louvável, pois se espera que seja um avanço em relação às que a antecederam, tanto no sentido de sua completude quanto no de uma abordagem mais acurada em virtude do aparato crítico interpretativo superveniente.
No caso da tradução de Garcia Lopes, se não podemos falar em completude, como esperávamos, já que se restringe aos 12 poemas da edição de 1855, no que respeita à abordagem há algo a ser dito. O tradutor optou por "modernizar" a linguagem do poeta, emprestando-lhe termos coloquiais e mesmo jargões que parecem destinados a orientar a leitura para um público "genérico", sem grandes compromissos vernaculares. Assim, por exemplo, "few embraces" é traduzido por "alguns agarros", "the rush of the streets" por "o agito das ruas", "lack of money" por "falta de grana" e "old maid" por "coroa solteirona". Há construções curiosas como "grassar de", "se colapsa" e "a gente que eu cruzo". É possível que esse tipo de interferência ou reescrita "atualizada" do tradutor possa concorrer para uma melhor aceitação da obra por aquele público-alvo, mas, se acatarmos a lição de Carpeaux de que Whitman é um "poeta para poetas", essa opção de linguagem certamente causará estranheza quando cotejada com as frases coloquiais, mas sempre no âmbito do idioma-padrão, utilizadas por Whitman.
Salvo esse tipo de discordância, Garcia Lopes soube mostrar na quase totalidade dos versos sua tarimba de tradutor, saindo-se bem das armadilhas e tonalidades que Câmara Cascudo dizia intraduzíveis. Sirva a edição comemorativa como incentivo aos nossos editores e tradutores para nos trazerem finalmente um Whitman "complete and unabridged" [completo e sem cortes].


Ivo Barroso é poeta e crítico, autor de "A Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.

Folhas de Relva
320 págs., preço a definir de Walt Whitman. Trad. Rodrigo Garcia Lopes. Iluminuras (r. Inácio Pereira da Rocha, 389, CEP 05432-011, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3031-6161).



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