São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Clássico da sociologia histórica, "A Revolução Burguesa no Brasil" dá início à publicação das obras reunidas de Florestan Fernandes

O preço do passado

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Revolução Burguesa no Brasil" (1974) é um dos livros clássicos da sociologia histórica brasileira, uma linhagem que tem seus momentos altos em "Casa-Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre; "Raízes do Brasil" (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e "Os Donos do Poder" (1958), de Raymundo Faoro.
Florestan emprega o conceito de "revolução burguesa" como "tipo ideal", isto é, como princípio heurístico e fio investigativo da origem, natureza e desdobramentos do capitalismo no Brasil. Não se trata de um estudo empírico ou mesmo de comparar as vicissitudes do processo brasileiro com os modelos de revolução francês, inglês ou norte-americano. A ausência de uma sucessão de acontecimentos de impacto, de uma revolução propriamente dita, não impediu o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, mas lhe ditou um ritmo próprio e uma condição particular.
A idéia de revolução burguesa presta-se assim como uma luva para determinar as etapas do processo e, sobretudo, para compreender a modalidade de capitalismo predominante no país.

Polarização
O livro foi redigido em momentos distintos: as duas partes iniciais ("As Origens da Revolução Burguesa" e "A Formação da Ordem Social Competitiva"), em 1966, e, a terceira parte ("Revolução Burguesa e Capitalismo Dependente"), em 1974. Esse último ensaio complementa os demais blocos, avançando até o presente o acompanhamento histórico anterior, que se detinha na época da abolição da escravatura. Mas traz também algumas alterações relevantes no que tange à atribuição de sentido ao processo histórico.
Os ensaios de 1966 seguem a periodização tradicional. A independência abre caminho para a emergência da sociabilidade burguesa -seja como tipo de personalidade ou como formação social-, bloqueada até então pela conjugação de estatuto colonial, escravismo e grande lavoura exportadora. O simples rompimento com a condição colonial, a autonomia política engendra uma "situação nacional" que desenvolve o comércio e a vida urbana, alicerça o Estado e prepara a modernização.
A manutenção do sistema escravista, no entanto, polariza o país entre uma estrutura heteronômica (cujo protótipo é a grande lavoura de exportação) e uma dinâmica autonomizante (centrada no mercado interno). Socialmente, os agentes burgueses, em simbiose com o quadro vigente, organizam-se antes como "estamento" do que como classe, uma situação que só será rompida com o surgimento do "imigrante" e do "fazendeiro do café" na fronteira agrícola.
A introdução do trabalho assalariado e a consolidação da "ordem econômica competitiva", no final do século 19, não liberaram completamente as potencialidades da racionalidade burguesa. Antes promoveram uma acomodação de formas econômicas opostas, gerando uma sociedade híbrida e uma formação social, o "capitalismo dependente", marcada pela coexistência e interconexão do arcaico e do moderno.
No último ensaio, redigido em 1974, o conceito de "capitalismo dependente" passa a ser determinado pela associação da burguesia com o capital internacional. Com isso, altera-se o peso da dinâmica do sistema capitalista mundial e a própria periodização, marcada pela emergência e expansão de três tipos de capitalismo: o moderno (1808-1860), o competitivo (1860-1950) e o monopolista (1950-...).

Sem ruptura
A revolução burguesa teria conduzido o Brasil, portanto, à "transformação capitalista", mas não à esperada "revolução nacional e democrática". Na ausência de uma ruptura definitiva com o passado, este cobra seu preço a cada momento do processo, em geral na chave de uma "conciliação" que se apresenta como negação ou neutralização da reforma. A monopolização do Estado pela burguesia -tanto econômica, como social e política- estaria na raiz do modelo autocrático, da "democracia restrita" que marca o século 20 brasileiro.
Seria um erro grave, no entanto, atribuir a esse diagnóstico alguma forma de determinismo. O duplo caráter dos conceitos, as contradições que Florestan Fernandes detecta a cada passo, em suma, a dialética como método, deixa o campo livre para a ação histórica dos agentes e das classes sociais.
O livro "A Revolução Burguesa no Brasil" encerra o ciclo de interpretações gerais do país. Mas forneceu, ao mesmo tempo, as balizas para uma série de estudos pontuais posteriores que abordaram tópicos decisivos, como a resistência dos "de baixo" antes e durante a emergência das classes, as alterações do estatuto das nações no sistema-mundo ou as rupturas no padrão de acumulação no capitalismo.


Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.


Texto Anterior: Mostra em SP decifra produção de Lygia Clark
Próximo Texto: "Pensamento e Ação" é o próximo título
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.