São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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AS MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE FELLINI

INSPIRANDO-SE EM UM CONTO DE DINO BUZZATI, O DIRETOR ITALIANO PRETENDIA FAZER "UM FILME SOBRE COISAS MORTAS", MAS FOI PROCESSADO PELO PRODUTOR DINO DE LAURENTIIS POR NÃO TER CONCLUÍDO O TRABALHO, INICIADO EM 1966

CARLOTTA MISMETTI CAPUA

A Viagem de Giuseppe Mastorna", o filme que Fellini planejou fazer e nunca fez -embora tenha tentado rodá-lo várias vezes, desistindo em seguida-, narraria a vida de um violoncelista após a morte.
No assim chamado mundo do além, Mastorna desembarcava numa cidade que parecia um gigantesco cartão-postal de todas as cidades do mundo, habitado por gente de todas as partes do planeta. Encontrava os pais serenamente leves, livres enfim do papel que lhes cabia. Reencontrava os brinquedos da infância, que ele costumava destruir; as mulheres amadas, todas mal amadas.
Ou seja, depois da morte, era a própria vida que se reapresentava, com desejos e conflitos, remorsos e dúvidas. "Não se trata de um filme sobre a transcendência", disse Fellini, "mas de um filme sobre coisas mortas, que estão numa zona estagnada. Aquelas que precisam de uma morte verdadeira".
Que "A Viagem de Giuseppe Mastorna", inspirado em um conto juvenil do escritor Dino Buzzati [1906-1972, autor também de "O Deserto dos Tártaros"], fosse uma história sobre a morte real ou sobre a morte interior, que Fellini não o tenha feito por superstição -como disse Dino de Laurentiis ao levá-lo ao tribunal por perdas e danos- ou porque fosse um filme que não conseguiu fazer -como afirmará o próprio Fellini-, hoje tudo isso pouco importa. Fellini queria um filme sem brilho, essa era a sua intenção. E sem cores. Mandou desenhar e executar milhares de figurinos, todos de cor cinza: diversos matizes de gris, tom sobre tom, do branco ao preto.
Imaginou Totó no papel de coveiro, Mina como "hostess" do avião que caía, Franco Franchi e Ciccio Ingrassia como aduaneiros. Encomendara a Giuseppe Rotunno o mapeamento da feira de Milão, de Berlim Oriental e de Florença, para onde Mastorna regressa ao final do filme, voando numa geringonça pilotada por uma menina chinesa, como se fosse uma vassoura voadora.
Mas um filme que não foi feito não existe, e o que hoje resta são poucas e preciosas relíquias. A única cena rodada: o desembarque de Mastorna perdido em meio a uma forte nevasca, muito cinza e barulhenta como um furacão, diante de uma catedral gótica tão alta quanto um arranha-céu. Cena conservada por Fellini do documentário "Block Notes di un Regista" [Anotações de um Diretor], produzido pelos EUA em 1969.
O que fica é o fascínio dessa história maldita, recontada em um recente documentário de Maite Carpio (exibido em dezembro último na Casa do Cinema de Roma, quando também foi lançado o livro de Alessandro Casanova sobre todos os filmes incompletos de Fellini ["Scritti e Immaginati", Escrito e Imaginado, ed. Guaraldi Universitaria]).
Resta também o roteiro, definido por Tonino Guerra como "a história de uma melancolia oblíqua, como a perda de um perfume". Restam os pensamentos do cineasta recolhidos ao longo dos anos por Dario em "Cose Dette da F.F. a proposito del "Viaggio di G. Mastorna'" [Coisa Ditas por F.F. sobre "A Viagem de G. Mastorna"].

Ressurreição
No entanto, mais tangíveis e vivas, restaram as fotos de Tazio Secchiaroli, que foram expostas, em Roma, na Cinecittàdue, na galeria de arte do centro comercial vizinho, perto dos estúdios do Istituto Luce [Instituto Luz], onde foram feitos os testes com Mastroianni no papel principal. Testes que Secchiaroli foi discretamente convidado a documentar.
Havia poucas pessoas naquele dia; dez ao todo, entre os colaboradores mais próximos: a histórica secretária de edição Norma Giacchero, a discreta Liliana Betti, o figurinista Piero Tosi, que escolhera para Mastroianni um riscado triste com uma longa echarpe e um chapéu. E Giuseppe Rotunno, que circulava com a filmadora ao redor da cena em que o ator era vestido, enquanto Fellini murmurava com o seu vozeirão suave: "Marcellino, Marcellino, mas o que é que você tem hoje...".
Tazio era um espectador silencioso: sabia que Fellini não gostava de ser perturbado, e ele não perturbava. Por ser discreto, Fellini sempre o chamava para os sets, quase todos fotografados por ele, desde os anos 60 até os últimos filmes. Tazio sempre usava a mesma película utilizada por Fellini, revelando as fotos no mesmo estabelecimento em que o filme era revelado, para manter integralmente a granulação da luz.
Essas fotos foram feitas com sua Leica 35 milímetros e, como de costume, fez apenas os contatos -e somente para Fellini. Mas conservou por toda a vida, numa gaveta, as 48 fotografias que foram expostas em Roma. Estavam todas no estúdio de Centocelle, repleto de caixas meticulosamente organizadas, nas quais escrevia em vermelho: Tazio 1, Tazio 2, Tazio cem.
Penduradas em seu estúdio, apenas três fotografias: um retrato de Mastroianni fumando, iluminado pela luz de um fósforo que se apaga; aquela famosíssima de Fellini, em que ele pula, de chicote na mão, no set de "Oito e Meio"; e a do Altar da Pátria, ainda hoje a mais solicitada ao filho de Tazio, que cuida do acervo do pai (mais de 100 mil imagens).
Quanto às fotos do teste de "Mastorna", Tazio Secchiaroli fez ampliações em grande formato, 50 por 70, em papel especial, e as pôs à parte. Nunca havia feito grandes ampliações de fotos que não iria usar. Quando o filho David as encontrou, conservadas como algo único, pensou que tivessem sido preparadas para uma mostra ou um livro. O fato é que Secchiaroli não quis publicá-las em vida, assim como Fellini não chegou a exibir o seu grande "fantasma" "G. Mastorna".


A íntegra deste texto foi publicada no jornal "La Repubblica".


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