São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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+ educação

Reestruturação por que passa a PUC-SP encarna muitos dos dilemas que vivem as universidades de ponta

Os doutores da alegria

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Recuperar a alegria da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ainda demorará algum tempo, afirma nesta Folha, na quarta-feira passada, sua reitora, Maura Bicudo Véras. Com o pesado encargo de enfrentar a grave crise financeira da universidade a qual foi eleita para dirigir, compelida pelas circunstâncias a tomar medidas dolorosas, Maura, veterana militante das melhores causas da sua escola, soube lembrar o essencial.
É, sim, a alegria um dos traços marcantes da identidade da PUC. É ela que dá a nota radiosa a essa singular mescla de humanismo cristão não-dogmático e de radicalismo secular não-sectário que anima os que nela vivem e desperta a simpatia dos que a acompanham de fora. Saberá a PUC recuperar esse seu dom inestimável ou o pragmatismo eclesiástico oferecerá o contraponto adequado à frieza contábil dos credores?
Fará a PUC o papel de contraparte universitária do PT no plano político, abandonando ambos o seu legado mais original e precioso, justamente o de instilar alegria -a "corrente quente" reclamada por Ernst Bloch- onde os rabugentos costumeiros só vêem pena e obrigação?
Não faltam razões para uma ponta de apreensão, apesar de tudo. A PUC de São Paulo encarna neste momento muitos dos dilemas que vivem as melhores universidades, em especial aquelas situadas na terra de ninguém (ou de todos, mas dá na mesma) que separa as instituições mantidas pelo poder público e as que fazem do interesse mercantil a sua razão de ser -esse território das "públicas não-estatais", para usar uma expressão ambiciosa que já se aplicou a elas sem, no entanto, chegar a provê-la de conteúdo firme.
Um dos traços desse complexo de problemas torna-se nítido na declaração da reitora de que, na busca de tornar viável a instituição, estão previstos novos cursos de graduação (nada menos que 15, sem falar da expansão prevista na área dos cursos de especialização e MBA). Sinal de vitalidade?
De certa forma, sim; mas também sintoma de um mal que dificilmente será de uma única universidade nem de uma conjuntura isolada.
Há bons motivos para pensar que a multiplicação de serviços acadêmicos, normal em entidades lucrativas que funcionam no estilo do balcão de oferta, vai se impondo por todos os lados segundo critérios que não são de ordem acadêmica, não se subordinam às exigências estritas do conhecimento, mas respondem a condições às quais a universidade é chamada a simplesmente reagir.
Se essa segmentação (para usar o jargão estilo Jack, o Estripador) já preocupa, o quadro ainda se agrava se considerarmos a combinação que resulta quando a expansão da oferta vem junto com a contração do corpo docente.
Não será por acaso que, com referência à reestruturação que a direção da PUC vinha procurando conduzir de modo criterioso, surge explicitamente no debate o recurso às terceirizações. Termo elástico esse, que se aplica a muita coisa, incluindo a venda de serviços docentes por profissionais convertidos em microempresas, na constituição plena (pois o embrião já existe) de uma nova categoria de trabalhadores autônomos, os mercenários do conhecimento, condenados, por carência de vínculos mais firmes, a oferecer serviços ocasionais aqui e ali a quem pagar melhor, sem compromisso de parte a parte.
O dilema encontra boa expressão no contraste entre as palavras da reitora e do representante da alta direção da entidade mantenedora da PUC, quando uma manifesta preocupação com o padrão de qualidade acadêmica e o outro fala em terceirização. São compatíveis? Em termos estritos de gestão, nada impede: tomada em si, a competência profissional dispensa maiores vínculos. Se a questão for de identidade institucional, contudo, de um perfil e um modo de conduzir o trabalho universitário, a coisa muda de figura.
Nesse horizonte desenha-se a possibilidade (numa visão ainda otimista) de termos uma PUC de São Paulo eficiente, com bom nível de trabalho, mas sem ser a PUC, sem recuperar sua alegria. Coisa triste, contra a qual vale a pena lutar.


Gabriel Cohn é professor no departamento de ciência política da USP e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Sociais (Anpocs).

Leia mais sobre os problemas nas instituições de ensino superior brasileiras, tanto públicas quanto privadas, na edição do Mais! de 22/1, na Folha Online (www.folha.com.br/060611).


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