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+ educação
Reestruturação por que passa a PUC-SP encarna muitos dos dilemas que vivem as universidades de ponta
Os doutores da alegria
GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Recuperar a alegria da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo ainda demorará algum tempo, afirma nesta Folha, na quarta-feira passada, sua reitora, Maura Bicudo Véras. Com o
pesado encargo de enfrentar a grave
crise financeira da universidade a
qual foi eleita para dirigir, compelida
pelas circunstâncias a tomar medidas dolorosas, Maura, veterana militante das melhores causas da sua escola, soube lembrar o essencial.
É, sim, a alegria um dos traços
marcantes da identidade da PUC. É
ela que dá a nota radiosa a essa singular mescla de humanismo cristão
não-dogmático e de radicalismo secular não-sectário que anima os que
nela vivem e desperta a simpatia dos
que a acompanham de fora. Saberá a
PUC recuperar esse seu dom inestimável ou o pragmatismo eclesiástico oferecerá o contraponto adequado à frieza contábil dos credores?
Fará a PUC o papel de contraparte
universitária do PT no plano político, abandonando ambos o seu legado mais original e precioso, justamente o de instilar alegria -a "corrente quente" reclamada por Ernst
Bloch- onde os rabugentos costumeiros só vêem pena e obrigação?
Não faltam razões para uma ponta
de apreensão, apesar de tudo. A
PUC de São Paulo encarna neste
momento muitos dos dilemas que
vivem as melhores universidades,
em especial aquelas situadas na terra
de ninguém (ou de todos, mas dá na
mesma) que separa as instituições
mantidas pelo poder público e as
que fazem do interesse mercantil a
sua razão de ser -esse território das
"públicas não-estatais", para usar
uma expressão ambiciosa que já se
aplicou a elas sem, no entanto, chegar a provê-la de conteúdo firme.
Um dos traços desse complexo de
problemas torna-se nítido na declaração da reitora de que, na busca de
tornar viável a instituição, estão previstos novos cursos de graduação
(nada menos que 15, sem falar da expansão prevista na área dos cursos
de especialização e MBA). Sinal de
vitalidade?
De certa forma, sim; mas também
sintoma de um mal que dificilmente
será de uma única universidade nem
de uma conjuntura isolada.
Há bons motivos para pensar que
a multiplicação de serviços acadêmicos, normal em entidades lucrativas
que funcionam no estilo do balcão
de oferta, vai se impondo por todos
os lados segundo critérios que não
são de ordem acadêmica, não se subordinam às exigências estritas do
conhecimento, mas respondem a
condições às quais a universidade é
chamada a simplesmente reagir.
Se essa segmentação (para usar o
jargão estilo Jack, o Estripador) já
preocupa, o quadro ainda se agrava
se considerarmos a combinação que
resulta quando a expansão da oferta
vem junto com a contração do corpo
docente.
Não será por acaso que, com referência à reestruturação que a direção da PUC vinha procurando conduzir de modo criterioso, surge explicitamente no debate o recurso às
terceirizações. Termo elástico esse,
que se aplica a muita coisa, incluindo a venda de serviços docentes por
profissionais convertidos em microempresas, na constituição plena
(pois o embrião já existe) de uma
nova categoria de trabalhadores autônomos, os mercenários do conhecimento, condenados, por carência
de vínculos mais firmes, a oferecer
serviços ocasionais aqui e ali a quem
pagar melhor, sem compromisso de
parte a parte.
O dilema encontra boa expressão
no contraste entre as palavras da reitora e do representante da alta direção da entidade mantenedora da
PUC, quando uma manifesta preocupação com o padrão de qualidade
acadêmica e o outro fala em terceirização. São compatíveis? Em termos
estritos de gestão, nada impede: tomada em si, a competência profissional dispensa maiores vínculos. Se
a questão for de identidade institucional, contudo, de um perfil e um
modo de conduzir o trabalho universitário, a coisa muda de figura.
Nesse horizonte desenha-se a possibilidade (numa visão ainda otimista) de termos uma PUC de São Paulo
eficiente, com bom nível de trabalho, mas sem ser a PUC, sem recuperar sua alegria. Coisa triste, contra a
qual vale a pena lutar.
Gabriel Cohn é professor no departamento
de ciência política da USP e presidente da
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Sociais (Anpocs).
Leia mais sobre os problemas nas instituições de
ensino superior brasileiras, tanto públicas quanto
privadas, na edição do Mais! de 22/1, na Folha
Online (www.folha.com.br/060611).
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