São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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O experimento Nietzsche

A partir de perspectivas distintas, dois lançamentos discutem a cultura e a linguagem na obra do filósofo alemão

PETER PÁL PELBART
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois livros recentes acrescentam-se à já respeitável lista dos estudos introdutórios a Nietzsche escritos por autores brasileiros. São, por isso mesmo, uma ocasião salutar de retomar seu pensamento a partir de diferentes perspectivas.
"Nietzsche - Civilização e Cultura", de Carlos A.R. de Moura, acompanha passo a passo a crítica nietzschiana a nossa civilização gregária, dando a ver, em contrapartida, a mais alta exigência posta por Nietzsche, a de uma cultura agonística e criadora. "Nietzsche e a Grande Política da Linguagem", de Vivian Mosé, ataca o problema da linguagem, fonte da racionalidade dominante, em favor, desta vez, de uma outra relação da palavra com a vida e o corpo. Embora diferentes no estilo, no método e no propósito, permitem ao leitor reconstituir o pensamento do filósofo na sua dupla face: crítica e afirmativa.


Alguns livros sobre Nietzsche visam a "experi-mentar" o alcance e a vertigem de sua filosofia


Pode acontecer, contudo, que o leitor familiarizado com o assunto, em meio à leitura desses livros, se veja tomado por uma inquietação inusitada. Afinal, perguntará ele, a que vem mais um livro sobre Nietzsche?
Por que percorrer novamente sua crítica demolidora à razão, à linguagem, à moral, à metafísica? Para que repassar pela enésima vez os já conhecidos conceitos de vontade de potência, niilismo, além do homem, eterno retorno? Já não teremos colhido suficientemente os efeitos da filosofia a marteladas na desconstrução pós-moderna? E os vários comentadores não terão nos livrado dos segredos mais recônditos dessa obra tão enigmática? Não estaríamos, pois, fadados a um repisamento infindável?
Claro que cada comentador põe em relevo as questões que lhe parecem pertinentes para a atualidade. E, afinal, o que seria a história do pensamento sem as releituras sucessivas, essa cadeia de ecos e apropriações que mantém vivo o pensamento para o presente de cada geração? Por exemplo, o livro de Moura tem belas passagens sobre o ateísmo: a morte de Deus não significa, como queria Feuerbach [1804-72] e um certo humanismo atual, a substituição de Deus pelo homem, mas a dissolução do próprio homem na sua configuração niilista, seja ela cristã, socialista ou cientificista.
Do mesmo modo, são instigantes as comparações com Marx. Para Nietzsche, a moral não seria um epifenômeno da superestrutura, mas instância formadora, mais até do que a esfera econômica ou política.
Aos olhos de nossos contemporâneos isso pode parecer escandaloso, mas a expansão dos fundamentalismos, mesmo em contextos de modernização acelerada, dá a uma tal hipótese uma estranha verossimilhança. Menos convincente é a conclusão do livro, ao apreciar a tese do eterno retorno e a relação entre o vir-a-ser com a totalidade postulada por Nietzsche: "O universo permanece uma imensa comunidade eclesial de base. E, se Deus morreu, é preciso reconhecer que no fundo, no fundo, ele ganhou a guerra". (!)

Função gregária
O livro de Mosé, que analisa a célebre idéia de que não nos desvencilharemos de Deus enquanto acreditarmos na gramática, detecta em Nietzsche uma função gregária da linguagem, bem conhecida dos estudiosos, mas também ressalta, fiel a Klossowski [1905-2001], a dimensão pulsional e intensiva presente em sua escrita.
Apesar dos aportes histórico-filosóficos em geral valiosos, tem-se a impressão de que alguns livros sobre Nietzsche visam menos a propor alguma leitura original do que "experimentar" por conta própria o alcance e a vertigem de sua filosofia.
Lembra às vezes o que dizia Foucault a respeito das "Meditações" de Descartes. Elas requisitam duas leituras complementares: numa, trata-se de percorrer a verdade das proposições; na outra, cabe experimentar as modificações de que se é afetado quando se as enuncia por sua própria conta. Ora, não é estranho que uma tal recomendação, envolvendo um jogo recíproco entre o sujeito e a verdade, possa igualmente se aplicar ao texto de Nietzsche, o filósofo que mais contestou o estatuto da verdade e do sujeito?
É nisso, contudo, que parecem residir ao mesmo tempo o incômodo e o interesse de várias "reconstituições" de Nietzsche.
O recorrido pelos conceitos principais bem como o esforço em trazer à tona os problemas a que respondem traçam um contorno variegado do pensamento do autor (Deleuze chamava a isso a arte do "retrato mental" em filosofia). Se alguma dose de repetitividade parece um risco inerente a tal empreendimento, uma outra repetição parece tentar o comentador e talvez também o leitor de Nietzsche. Ele se vê impelido a experimentar por conta própria o trajeto do filósofo e constata, sobre si e sua linguagem, a inflexão nietzschiana. Mais: ele entrevê seus possíveis efeitos contra nossa moderna "barbárie civilizada".

Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de, entre outros, "Vida Capital" (Iluminuras).

Nietzsche - Civilização e Cultura
320 págs., R$ 39,80 de Carlos A.R. de Moura. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677).
Nietzsche e a Grande Política da Linguagem
240 págs., R$ 32,90 de Vivian Mosé. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/11/2585-2000).



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