São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Nova tradução do "Livro das Mil e Uma Noites" preenche uma lacuna nas letras brasileiras e ajuda a derrubar preconceitos sobre a cultura árabe

Vitória da fidelidade

MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com imensa alegria saúdo a tradução do "Livro das Mil e Uma Noites", levada a cabo pelo corajoso e erudito professor Mamede Mustafa Jarouche, a cujo primeiro volume outros quatro serão acrescentados. Com imensa alegria e entusiasmo. E não será preciso insistir sobre esse fato. Basta percorrer-lhe o livro para compreender o que essa edição significa para o Brasil. Uma prova cabal do quanto crescemos no campo do mundo textual.
E ainda mais que, em se tratando da cultura árabe, durante uma eternidade foi considerada como sendo a província de um mundo bárbaro, que teria inventado, quando muito, alguns nomes bizarros às estrelas, certas contribuições pontuais no campo da matemática e algumas versões da filosofia antiga!
A tradução de Jarouche é um triunfo sobre um terreno devastado por preconceitos que se repetem "ad nauseam" em não sei quantos manuais de história da literatura e da filosofia. Não preciso nem sequer evidenciar como e quanto são oportunas as notas dessa edição, que formam quase que um livro à parte ou um livro dentro do livro, sendo possível ler apenas o que vai apenso ao texto, para situar as vias percorridas pelo tradutor.

Vitória ideológica
Mas, para além desse fato, o mais importante consiste numa vitória ideológica: o "Livro das Mil e Uma Noites" foi recebido no Ocidente com inúmeros e mais que arbitrários recortes, sob uma espécie de métrica do gosto ocidental, a fim de evitar excessos e extravagâncias, que não poderiam ser levadas a sério pela civilização, como ocorreu desde a bela e complexa tradução de Antoine Galland.
Eram esperadas formas redondas, ideologicamente redondas, cuja tradução devia ser feita à base de cola e tesoura, com possíveis acréscimos, que não pertenciam ao original.
Tudo isso -em perspectiva- é fascinante, pelo uso tão amplo e variado de intervenções, que bem demonstram uma breve história da ideologia e da recepção daquela obra. O fato de estabelecer as fontes e a conseqüente crítica textual, tudo isso é de raríssima qualidade. E ainda mais necessário em virtude do quadro que acabamos de apontar.
Ir às fontes, neste caso, não seria apenas um luxo, mas uma absoluta necessidade. Ademais, a discussão de Jarouche no prefácio me parece igualmente importante quanto à demonstração de como um corpus tão largo e plural quanto esse mar de histórias se afirma em sua própria originalidade.
Para a cultura árabe, a palavra originalidade é talvez das mais fatídicas, relegada como foi a mera repetidora de elementos interculturais, desprovida de uma inteligência própria, que não ultrapassava o campo da transmissão de saberes do Leste para o Oeste. Por isso a defesa de Jarouche me parece, neste caso, essencial na formação de um núcleo duro.
E não só. O tradutor houve-se bem nos acréscimos que introduziu em itálico para marcar diálogos, mudanças de planos e variação de personagens. Quero ressaltar ainda o modo pelo qual trabalhou com o aspecto da ação e das formas verbais do árabe para o português. Isso mereceria uma tese. Sua tradução não ficou presa por certo imobilismo que as formas verbais poderiam causar (como vemos em diversas traduções dentro e fora do Brasil, que eu consideraria como traduções imobilistas, parmenídeas, das "Mil e Uma Noites").
Outra dificuldade desse corpus pode ser evidenciada na gama amplíssima de vocábulos, expressões e coloridos, além dos empréstimos de outras línguas e das formas arabizadas que se encontram no original. E isso muito se discutiu no âmbito da literatura persa e turca.

Riqueza oceânica
Quando se defendia, por exemplo, para cada uma dessas línguas a retomada de uma presumida matriz, como no caso do turco ("öz türkçe"), que desejava separar elementos da língua pretensamente autóctone das palavras de outras fronteiras. Mas se a riqueza dessas línguas consiste justamente em sua riqueza oceânica!
O árabe, bem entendido, se apresenta de modo mais conservador, em virtude das raízes que o organizam, nas quais as palavras estrangeiras ou se arabizam de todo ou não tomam parte no concerto da língua. As "Mil e Uma Noites" produzem (como podemos ver) outras 1.001 possibilidades de registro em horizontes que se revelam infindáveis.
O tradutor realizou essa pluralidade em português, lançando mão de formas eruditas e coloquiais, das vozes e construtos mais altos aos mais populares. Soube dar graça e colorido a sua recriação. Um grande feito.
Consagrou, afinal, em nosso país, não apenas uma atitude estética e erudita, que seria mais que suficiente, mas também uma atitude cultural que ultrapassa a tradução de um clássico de todos os tempos e que leva a pensar no papel do intelectual em nosso país.


Marco Lucchesi é poeta e escritor, autor de "Saudades do Paraíso" (Lacerda).

Livro das Mil e Uma Noites - volume 1
424 págs., R$ 55 Tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/3457-1545).



Texto Anterior: O experimento Nietzsche
Próximo Texto: "Todo tipo de apropriação é possível"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.