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Nova tradução do "Livro das Mil e Uma Noites" preenche uma lacuna nas
letras brasileiras e ajuda a derrubar preconceitos sobre a cultura árabe
Vitória da fidelidade
MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com imensa alegria saúdo a
tradução do "Livro das Mil e
Uma Noites", levada a cabo
pelo corajoso e erudito professor Mamede Mustafa Jarouche, a
cujo primeiro volume outros quatro
serão acrescentados. Com imensa
alegria e entusiasmo. E não será preciso insistir sobre esse fato. Basta
percorrer-lhe o livro para compreender o que essa edição significa
para o Brasil. Uma prova cabal do
quanto crescemos no campo do
mundo textual.
E ainda mais que, em se tratando
da cultura árabe, durante uma eternidade foi considerada como sendo
a província de um mundo bárbaro,
que teria inventado, quando muito,
alguns nomes bizarros às estrelas,
certas contribuições pontuais no
campo da matemática e algumas
versões da filosofia antiga!
A tradução de Jarouche é um
triunfo sobre um terreno devastado
por preconceitos que se repetem "ad
nauseam" em não sei quantos manuais de história da literatura e da filosofia. Não preciso nem sequer evidenciar como e quanto são oportunas as notas dessa edição, que formam quase que um livro à parte ou
um livro dentro do livro, sendo possível ler apenas o que vai apenso ao
texto, para situar as vias percorridas
pelo tradutor.
Vitória ideológica
Mas, para além desse fato, o mais
importante consiste numa vitória
ideológica: o "Livro das Mil e Uma
Noites" foi recebido no Ocidente
com inúmeros e mais que arbitrários recortes, sob uma espécie de
métrica do gosto ocidental, a fim de
evitar excessos e extravagâncias, que
não poderiam ser levadas a sério pela civilização, como ocorreu desde a
bela e complexa tradução de Antoine Galland.
Eram esperadas formas redondas,
ideologicamente redondas, cuja tradução devia ser feita à base de cola e
tesoura, com possíveis acréscimos,
que não pertenciam ao original.
Tudo isso -em perspectiva- é
fascinante, pelo uso tão amplo e variado de intervenções, que bem demonstram uma breve história da
ideologia e da recepção daquela
obra. O fato de estabelecer as fontes
e a conseqüente crítica textual, tudo
isso é de raríssima qualidade. E ainda mais necessário em virtude do
quadro que acabamos de apontar.
Ir às fontes, neste caso, não seria
apenas um luxo, mas uma absoluta
necessidade. Ademais, a discussão
de Jarouche no prefácio me parece
igualmente importante quanto à demonstração de como um corpus tão
largo e plural quanto esse mar de
histórias se afirma em sua própria
originalidade.
Para a cultura árabe, a palavra originalidade é talvez das mais fatídicas, relegada como foi a mera repetidora de elementos interculturais,
desprovida de uma inteligência própria, que não ultrapassava o campo
da transmissão de saberes do Leste
para o Oeste. Por isso a defesa de Jarouche me parece, neste caso, essencial na formação de um núcleo duro.
E não só. O tradutor houve-se bem
nos acréscimos que introduziu em
itálico para marcar diálogos, mudanças de planos e variação de personagens. Quero ressaltar ainda o
modo pelo qual trabalhou com o aspecto da ação e das formas verbais
do árabe para o português. Isso mereceria uma tese. Sua tradução não
ficou presa por certo imobilismo
que as formas verbais poderiam
causar (como vemos em diversas
traduções dentro e fora do Brasil,
que eu consideraria como traduções
imobilistas, parmenídeas, das "Mil e
Uma Noites").
Outra dificuldade desse corpus
pode ser evidenciada na gama amplíssima de vocábulos, expressões e
coloridos, além dos empréstimos de
outras línguas e das formas arabizadas que se encontram no original. E
isso muito se discutiu no âmbito da
literatura persa e turca.
Riqueza oceânica
Quando se defendia, por exemplo,
para cada uma dessas línguas a retomada de uma presumida matriz, como no caso do turco ("öz türkçe"),
que desejava separar elementos da
língua pretensamente autóctone das
palavras de outras fronteiras. Mas se
a riqueza dessas línguas consiste justamente em sua riqueza oceânica!
O árabe, bem entendido, se apresenta de modo mais conservador,
em virtude das raízes que o organizam, nas quais as palavras estrangeiras ou se arabizam de todo ou não
tomam parte no concerto da língua.
As "Mil e Uma Noites" produzem
(como podemos ver) outras 1.001
possibilidades de registro em horizontes que se revelam infindáveis.
O tradutor realizou essa pluralidade em português, lançando mão de
formas eruditas e coloquiais, das vozes e construtos mais altos aos mais
populares. Soube dar graça e colorido a sua recriação. Um grande feito.
Consagrou, afinal, em nosso país,
não apenas uma atitude estética e
erudita, que seria mais que suficiente, mas também uma atitude cultural que ultrapassa a tradução de um
clássico de todos os tempos e que leva a pensar no papel do intelectual
em nosso país.
Marco Lucchesi é poeta e escritor, autor de
"Saudades do Paraíso" (Lacerda).
Livro das Mil e Uma Noites -
volume 1
424 págs., R$ 55
Tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Ed.
Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902,
São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/3457-1545).
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