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Nobreza do samba
Ao longo do século 20, a canção se tornou um gênero "elevado" e fez síntese cultural e social decisiva do país
O gênero cumpriu uma função formativa na cultura no Brasil
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LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1820, quando Walter Scott foi agraciado
com o título de baronete, houve algum
embaraço na argumentação que justificou a concessão: o motivo real para conferir a nobilidade estava em
seus romances, como "Waverley" e "Ivanhoé", mas o autor
mesmo não os assinava, porque não via dignidade artística
neles, comunicativos mas sem
prestígio letrado; daí, o título
acabou sendo justificado por livros de poesia que ele publicara na juventude, infinitamente
menos importantes mas tidos
como coisa elevada, condizente
com a exigência aristocrática.
Quem evoca essa história é
Antonio Candido, na abertura
de um ensaio -e a anedota é
preciosa para falar sobre a natureza contingente dos gêneros artísticos.
Scott, inventor do romance
histórico, não viu nobreza no
gênero que o consagrou; apenas uma geração depois, Balzac
(1799-1850) se regozijava de
sua condição de romancista;
depois, pelo menos mais três
gerações levaram os limites do
gênero mais adiante, mantendo-o vivo e prestigiado. Finalmente, na altura da Segunda
Guerra, não faltou quem detectasse o fim do romance.
Morreu? Não; nem ele, nem
qualquer dos outros vários gêneros artísticos, que como toda
criação humana no campo simbólico, nascem, se desenvolvem, encontram significação
exemplar e depois mirram,
mas não deixam de ter cultores
e praticantes. Não está aí até
hoje o soneto, criação renascentista que conheceu o zênite
barroco, mas retornou algumas
vezes ao cartaz, e só em língua
portuguesa foi capaz de encantar talentos como Cláudio Manuel da Costa, Olavo Bilac,
Cruz e Sousa e Vinícius de Moraes? Que dizer então do romance, forma muito mais complexa, capaz de se reinventar
há quase 300 anos?
Com a canção se dá algo parecido. Sintetizada em momentos particulares, numa trajetória cumulativa hoje bastante visível, a canção brasileira
talvez comece por Domingos
Caldas Barbosa, no século 18,
passa pelo encontro do lundu e
da modinha locais com a habanera e a polca européias ao longo do século 19, encontra Sinhô
e seu samba maxixado cem
anos atrás, desdobra-se em
samba, samba-canção, marchinha e algo mais na geração de
Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael
Silva e outros, depura-se e lança-se em diálogo internacional
vigoroso com a Bossa Nova, desenvolve ainda mais suas possibilidades na geração de Chico,
Caetano e Paulinho da Viola e...
Século 21
Bem, aqui estamos, neste começo de século 21, na presença
dessa geração, florescida nos
anos 1960 e agora em seu esplendor, já seguida de algumas
levas de novos e novíssimos,
entre os quais tanta qualidade
expressiva se vê, de Itamar Assumpção e Vitor Ramil a Chico
Science e tantos outros.
Aqui estamos de posse de um
magnífico patrimônio, que já
configura concretamente muito mais do que as gerações antigas suspeitavam -nem Mário
de Andrade, que se ocupou tanto da música brasileira, percebeu que a canção era, já em seu
tempo, uma síntese cultural de
alto nível de elaboração e de
eficácia.
Jorge Luis Borges não imaginava que a canção seria um gênero de autores, mas suspeitava, no começo dos anos 1950,
que as letras de tango, no primeiro meio século de vida,
constituíam já um "inextricável corpus poeticum" coletivo
argentino. Pois a canção brasileira é isso e é bem mais: um gênero artístico, literário e musical em aliança íntima, praticado por artistas complexos, que
já passaram pela dura prova do
tempo, talvez a única realmente relevante em matéria de história estética.
A maturidade do gênero dá o
que pensar, mesmo que pelo
caminho curto do debate sobre
seu presumido fim, que talvez
não seja mais que o auge de
uma geração, certamente a melhor de todas até aqui. Que elementos se pode detectar de algo parecido a um limite, para
além do acúmulo notável de
obras-primas e da proximidade
do aniversário de 70 anos daqueles grandes cancionistas?
Primeiro: a canção chegou a
seu apogeu em estreita proximidade com os meios massivos
de comunicação, o rádio para a
geração de 30 e a televisão para
a geração de Chico, e com suportes de fácil divulgação, em
particular o disco.
Ocorre que esses elementos
toparam com um destino inamistoso nos anos 90, a internet,
que relativizou o papel do rádio
e da tevê na busca de informação e diversão e afundou o navio das empresas gravadoras de
larga escala. A prática de três
gerações perdeu o sentido, justamente quando o gênero canção chegou a sua capacidade
máxima.
Segundo: a canção nasceu,
em parte, do analfabetismo,
que está acabando. Gente que
nunca soube escrever (letra ou
música) foi imantada pela capacidade estética do gênero, e
também pôde compor maravilhas no gênero: em grande medida, a história da canção brasileira acompanha, como virtude, a mazela da pouca cultura
letrada.
Escolas da música
Mais ainda, a escola, com méritos e com vícios, tem tratado a
canção como uma forma cultural válida, seja estudando Noel,
Chico e Caetano, nas escolas
sofisticadas, seja prestigiando o
rap, nas escolas populares. A
universidade também está
aprendendo a lidar com essa riqueza, seja na área da literatura
(mais favorável aos aspectos literários da canção), seja na área
de Música (em geral mais resistente à canção, pelo peso da tradição erudita européia).
Terceiro: os meios de criação
da canção são amplamente disponíveis hoje em dia, muito
mais do que em qualquer outro
tempo. Se um século atrás os
pobres lidavam apenas com
instrumentos de percussão para cantar e compor, agora o sujeito sem muita dificuldade pode ter em casa um computador
capaz de milagres técnicos com
que nem sonhava o inventivo
produtor dos Beatles.
Tal disseminação altera o patamar da produção, da fruição,
da circulação do gênero, e a médio prazo deve significar alguma outra reviravolta. Juntando
o item anterior com este e forçando um pouco a barra, dá pra
dizer que, ao contrário da frase-tese de Noel Rosa, agora samba
se aprende na escola.
Quarto: vendo a coisa pelo lado estético-histórico exigente,
e tomando a obra do citado
Candido como referência, a
canção cumpriu também uma
função formativa na cultura no
Brasil -cumpriu e está cumprido, para sempre.
Nascida de intensa negociação, formal e conteudística, entre matrizes européias e afroamericanas, entre preocupações
elevadas e sutis ao lado de outras cotidianas e banais, a canção encontrou pontos de síntese irrecusáveis para quem observa o país, os quais além de
tudo carregam a notável marca
de conseguirem estabelecer
pontes de comunicação estética de alto a baixo, entre brancos
e negros, de norte a sul, de tudo
quanto é jeito, num ambiente
social tão desigual. (Estabeleceu pontes sem deixar de falar
das desigualdades, ainda que
muita fantasia conciliatória e
muita trivialidade escapista
circule pelas veias da canção.)
O Brasil se vê, se expressa, se
afirma, se pensa na canção, tendo produzido ao menos dois
momentos altos, a geração de
30 e a de 60, aquela nascendo
junto com o rádio e a gravação
elétrica do bolachão de 78 rpm,
esta junto com a televisão e o
longplay estereofônico de 33,3
rpm. O século 20 brasileiro como um todo não pode ser compreendido sem esses atingimentos.
O ponto do debate agora parece ser fruto de uma combinação singular: na maturidade do
gênero -vistas as coisas tanto
pelo ângulo dos artistas de obra
comprovada, quanto pela ângulo da significação ampla e duradoura obtida por eles e sua
obra-, seria esperável, históricamente, alguma crise, algum
declínio, como sucedeu por
exemplo ao romance brasileiro
depois da geração de Graciliano, Erico, Lins do Rego, Guimarães Rosa, ou como sucedeu à
poesia depois de Drummond e
João Cabral.
Mas essa simples mudança
de turno se potencializou enormemente com as mudanças
tecnológicas, que tornaram
acessíveis meios sofisticados
de produção ao mesmo tempo
que desorganizaram um mercado forte havia pela menos 60
anos. O que virá ninguém sabe
e gera incerteza, até pessimismo; mas sim conhecemos a força do gênero, sua história vitoriosa, o largo patrimônio legado a todos, para sempre.
LUÍS AUGUSTO FISCHER , crítico literário, leciona canção popular brasileira na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
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