São Paulo, domingo, 05 de julho de 2009

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Nobreza do samba

Ao longo do século 20, a canção se tornou um gênero "elevado" e fez síntese cultural e social decisiva do país


O gênero cumpriu uma função formativa na cultura no Brasil

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1820, quando Walter Scott foi agraciado com o título de baronete, houve algum embaraço na argumentação que justificou a concessão: o motivo real para conferir a nobilidade estava em seus romances, como "Waverley" e "Ivanhoé", mas o autor mesmo não os assinava, porque não via dignidade artística neles, comunicativos mas sem prestígio letrado; daí, o título acabou sendo justificado por livros de poesia que ele publicara na juventude, infinitamente menos importantes mas tidos como coisa elevada, condizente com a exigência aristocrática.
Quem evoca essa história é Antonio Candido, na abertura de um ensaio -e a anedota é preciosa para falar sobre a natureza contingente dos gêneros artísticos.
Scott, inventor do romance histórico, não viu nobreza no gênero que o consagrou; apenas uma geração depois, Balzac (1799-1850) se regozijava de sua condição de romancista; depois, pelo menos mais três gerações levaram os limites do gênero mais adiante, mantendo-o vivo e prestigiado. Finalmente, na altura da Segunda Guerra, não faltou quem detectasse o fim do romance.
Morreu? Não; nem ele, nem qualquer dos outros vários gêneros artísticos, que como toda criação humana no campo simbólico, nascem, se desenvolvem, encontram significação exemplar e depois mirram, mas não deixam de ter cultores e praticantes. Não está aí até hoje o soneto, criação renascentista que conheceu o zênite barroco, mas retornou algumas vezes ao cartaz, e só em língua portuguesa foi capaz de encantar talentos como Cláudio Manuel da Costa, Olavo Bilac, Cruz e Sousa e Vinícius de Moraes? Que dizer então do romance, forma muito mais complexa, capaz de se reinventar há quase 300 anos?
Com a canção se dá algo parecido. Sintetizada em momentos particulares, numa trajetória cumulativa hoje bastante visível, a canção brasileira talvez comece por Domingos Caldas Barbosa, no século 18, passa pelo encontro do lundu e da modinha locais com a habanera e a polca européias ao longo do século 19, encontra Sinhô e seu samba maxixado cem anos atrás, desdobra-se em samba, samba-canção, marchinha e algo mais na geração de Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva e outros, depura-se e lança-se em diálogo internacional vigoroso com a Bossa Nova, desenvolve ainda mais suas possibilidades na geração de Chico, Caetano e Paulinho da Viola e...

Século 21
Bem, aqui estamos, neste começo de século 21, na presença dessa geração, florescida nos anos 1960 e agora em seu esplendor, já seguida de algumas levas de novos e novíssimos, entre os quais tanta qualidade expressiva se vê, de Itamar Assumpção e Vitor Ramil a Chico Science e tantos outros.
Aqui estamos de posse de um magnífico patrimônio, que já configura concretamente muito mais do que as gerações antigas suspeitavam -nem Mário de Andrade, que se ocupou tanto da música brasileira, percebeu que a canção era, já em seu tempo, uma síntese cultural de alto nível de elaboração e de eficácia.
Jorge Luis Borges não imaginava que a canção seria um gênero de autores, mas suspeitava, no começo dos anos 1950, que as letras de tango, no primeiro meio século de vida, constituíam já um "inextricável corpus poeticum" coletivo argentino. Pois a canção brasileira é isso e é bem mais: um gênero artístico, literário e musical em aliança íntima, praticado por artistas complexos, que já passaram pela dura prova do tempo, talvez a única realmente relevante em matéria de história estética.
A maturidade do gênero dá o que pensar, mesmo que pelo caminho curto do debate sobre seu presumido fim, que talvez não seja mais que o auge de uma geração, certamente a melhor de todas até aqui. Que elementos se pode detectar de algo parecido a um limite, para além do acúmulo notável de obras-primas e da proximidade do aniversário de 70 anos daqueles grandes cancionistas?
Primeiro: a canção chegou a seu apogeu em estreita proximidade com os meios massivos de comunicação, o rádio para a geração de 30 e a televisão para a geração de Chico, e com suportes de fácil divulgação, em particular o disco.
Ocorre que esses elementos toparam com um destino inamistoso nos anos 90, a internet, que relativizou o papel do rádio e da tevê na busca de informação e diversão e afundou o navio das empresas gravadoras de larga escala. A prática de três gerações perdeu o sentido, justamente quando o gênero canção chegou a sua capacidade máxima.
Segundo: a canção nasceu, em parte, do analfabetismo, que está acabando. Gente que nunca soube escrever (letra ou música) foi imantada pela capacidade estética do gênero, e também pôde compor maravilhas no gênero: em grande medida, a história da canção brasileira acompanha, como virtude, a mazela da pouca cultura letrada.

Escolas da música
Mais ainda, a escola, com méritos e com vícios, tem tratado a canção como uma forma cultural válida, seja estudando Noel, Chico e Caetano, nas escolas sofisticadas, seja prestigiando o rap, nas escolas populares. A universidade também está aprendendo a lidar com essa riqueza, seja na área da literatura (mais favorável aos aspectos literários da canção), seja na área de Música (em geral mais resistente à canção, pelo peso da tradição erudita européia).
Terceiro: os meios de criação da canção são amplamente disponíveis hoje em dia, muito mais do que em qualquer outro tempo. Se um século atrás os pobres lidavam apenas com instrumentos de percussão para cantar e compor, agora o sujeito sem muita dificuldade pode ter em casa um computador capaz de milagres técnicos com que nem sonhava o inventivo produtor dos Beatles.
Tal disseminação altera o patamar da produção, da fruição, da circulação do gênero, e a médio prazo deve significar alguma outra reviravolta. Juntando o item anterior com este e forçando um pouco a barra, dá pra dizer que, ao contrário da frase-tese de Noel Rosa, agora samba se aprende na escola.
Quarto: vendo a coisa pelo lado estético-histórico exigente, e tomando a obra do citado Candido como referência, a canção cumpriu também uma função formativa na cultura no Brasil -cumpriu e está cumprido, para sempre.
Nascida de intensa negociação, formal e conteudística, entre matrizes européias e afroamericanas, entre preocupações elevadas e sutis ao lado de outras cotidianas e banais, a canção encontrou pontos de síntese irrecusáveis para quem observa o país, os quais além de tudo carregam a notável marca de conseguirem estabelecer pontes de comunicação estética de alto a baixo, entre brancos e negros, de norte a sul, de tudo quanto é jeito, num ambiente social tão desigual. (Estabeleceu pontes sem deixar de falar das desigualdades, ainda que muita fantasia conciliatória e muita trivialidade escapista circule pelas veias da canção.)
O Brasil se vê, se expressa, se afirma, se pensa na canção, tendo produzido ao menos dois momentos altos, a geração de 30 e a de 60, aquela nascendo junto com o rádio e a gravação elétrica do bolachão de 78 rpm, esta junto com a televisão e o longplay estereofônico de 33,3 rpm. O século 20 brasileiro como um todo não pode ser compreendido sem esses atingimentos.
O ponto do debate agora parece ser fruto de uma combinação singular: na maturidade do gênero -vistas as coisas tanto pelo ângulo dos artistas de obra comprovada, quanto pela ângulo da significação ampla e duradoura obtida por eles e sua obra-, seria esperável, históricamente, alguma crise, algum declínio, como sucedeu por exemplo ao romance brasileiro depois da geração de Graciliano, Erico, Lins do Rego, Guimarães Rosa, ou como sucedeu à poesia depois de Drummond e João Cabral.
Mas essa simples mudança de turno se potencializou enormemente com as mudanças tecnológicas, que tornaram acessíveis meios sofisticados de produção ao mesmo tempo que desorganizaram um mercado forte havia pela menos 60 anos. O que virá ninguém sabe e gera incerteza, até pessimismo; mas sim conhecemos a força do gênero, sua história vitoriosa, o largo patrimônio legado a todos, para sempre.


LUÍS AUGUSTO FISCHER , crítico literário, leciona canção popular brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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