São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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AUTORES
A performance da arte

France Presse - 10.jun.97
Membros da tribo sirunki dançam em festa ritualística na Papua-Nova Guiné



Antropólogo inglês investiga como objetos estéticos são trabalhados em diversas culturas


PETER BURKE
especial para a Folha

Qual a relação entre arte e sociedade? Quais as funções ou os usos dos diversos objetos que chamamos obras de arte? São iguais em todos os lugares ou se modificam ao longo do tempo, diferindo de sociedade para sociedade? Questões como essas preocuparam longamente sociólogos e historiadores sociais da arte: o húngaro Arnold Hauser, por exemplo, um discípulo de Georg Lukács que viveu a maior parte da sua vida na Inglaterra e lá publicou, em 1951, a sua "História Social da Arte".
Hauser argumentava que -independentemente de os artistas estarem ou não conscientes disso- a arte expressava as atitudes, valores ou visões de mundo de diferentes períodos e -não menos relevante- de diferentes classes sociais. Num certo sentido, seu livro era bastante amplo, uma vez que começava com pinturas rupestres e finalizava com as vanguardas do século 20. Num outro sentido, entretanto, era restrito, já que o seu estudo se resumia ao Ocidente e se limitava virtualmente à chamada "alta" arte e aos artistas famosos, apesar de Hauser reivindicar estar escrevendo a história social da arte.
Quer Hauser soubesse, quer não, o fato é que, no momento em que escrevia, uma abordagem bem diferente sobre a relação entre arte e sociedade estava sendo desenvolvida no interior de uma outra disciplina, a antropologia, preocupada com os objetos presentes na vida cotidiana das pessoas comuns. Em 1927, Franz Boas publicava seu clássico estudo "Primitive Art" (Arte Primitiva). Em 1944, Claude Lévi-Strauss, que ainda não era famoso, fornecia uma nova interpretação a um fenômeno para o qual Boas tinha chamado a atenção: a "representação desdobrada" ("split representation" ou "dédoublement").
Em outras palavras: imagens que podem ser desdobradas, a fim de revelarem oposições complementares (como os mitos que Lévi-Strauss mais tarde analisaria de forma tão brilhante). Segundo Lévi-Strauss, a representação desdobrada ocorria em culturas cuja forma binária de organização social se expressava por meio de imagens.
No início da década de 1950, dois importantes antropólogos britânicos, Raymond Firth e Edmund Leach, voltaram suas atenções para aquilo que Firth chamava de "estrutura social da arte primitiva", ou seja, as condições nas quais os objetos eram produzidos, usados e trocados. A partir daquele momento, surgiram centenas de outros estudos antropológicos sobre o tipo de arte produzida pelas sociedades comumente chamadas de "primitivas" -e que, mais tarde, passaram a ser designadas como sociedades "tribais", até que também este termo fosse abandonado como sendo politicamente incorreto.
A maioria dos trabalhos enfatiza os vínculos entre arte e vida cotidiana. Assim, por exemplo, o artista aparece não como um especialista, mesmo que ele ou ela possuam habilidades especiais. O objeto produzido pode ser tanto uma ferramenta quanto uma arma, uma panela, um cobertor ou um objeto utilizado em rituais religiosos. Já que não há "campo estético", nos termos de Pierre Bourdieu (apesar de o prazer estético ser aparentemente universal), é enganador utilizar uma noção como "obra de arte", que evoca o sistema ocidental moderno de profissionais, mercados e galerias. Por essa razão, pode ser mais prudente recorrer a um termo neutro, como "artefato", "objeto" ou "cultura material".
Num certo sentido, então, a "antropologia da arte" parece um empreendimento contraditório em seus próprios termos, a não ser que o antropólogo esteja eventualmente realizando o seu "trabalho de campo" em sociedades industriais, urbanas, modernas. E, no entanto, os problemas relativos à compreensão das formas, significados e funções dos artefatos nas diferentes culturas permanecem intrincados e fascinantes. Há poucos anos, uma contribuição bastante original para o estudo desses problemas foi produzida por um antropólogo britânico, Alfred Gell, que morreu em 1997. Seu último livro, "Art and Agency" (Arte e Operacionalização, Oxford University Press, 15,99 libras), acaba de ser publicado.
Talvez a maneira mais fácil de descrever a abordagem de Gell seja mostrar o que ela não é. O autor começa por rejeitar duas das principais abordagens referentes à antropologia da arte: a estética e a semiótica. Recusa a primeira essencialmente pelas razões já mencionadas, porque "a "atitude estética' é um produto histórico específico, advindo da crise religiosa do Iluminismo e do surgimento da ciência ocidental, e que não se aplica a civilizações que não internalizaram o Iluminismo como nós o fizemos" (na minha opinião, a atitude estética pode ser encontrada em determinados círculos na Itália no início do século 16 -isso para não mencionar a Roma antiga, a China e o Japão tradicionais-, mas este comentário não afeta o argumento).


Alfred Gell rejeita todos os debates sobre o "significado" da arte


A despeito da rejeição que faz da abordagem estética, Gell continua a falar de "obras de arte" em vez de "artefatos". Essa estratégia corre o risco de confundir o leitor, mas possui a vantagem de assegurar que as visões iconoclastas do autor atraiam a atenção de pessoas interessadas especificamente naquilo que elas mesmas concebem como "arte". Em segundo lugar, e de maneira ainda mais controversa, Gell rejeita a abordagem semiótica aplicada aos artefatos. Descarta o estruturalismo de Lévi-Strauss (apesar de citar com aprovação o seu estudo do "dédoublement"), partindo do pressuposto de que é enganador comparar objetos à linguagem.
Não menciona o famoso ensaio de Clifford Geertz sobre a "arte como um sistema cultural", e a omissão é indubitavelmente deliberada, já que Gell rejeita todas as discussões sobre o "simbolismo" ou mesmo sobre o "significado" dos artefatos. Na sua teoria não há lugar nem para iconografia nem para iconologia -para usar a linguagem do historiador da arte alemão Erwin Panofsky.
Então, o que Alfred Gell pode oferecer aos seus leitores? Uma teoria antropológica na qual, em certos contextos, os objetos ocupam o lugar de pessoas ou de "agentes (operadores) sociais". Eis o porquê do título intrigante do livro "Art and Agency". Preferindo a elegância intelectual, o formalismo e o rigor à exposição suave e simples, o autor apresenta sua teoria por meio de diagramas e de uma série de termos técnicos, e alguns capítulos só se fazem acompanhar com muito esforço.
Entretanto, o principal argumento de Gell é relativamente simples: com frequência, operacionalizações sociais são atribuídas a certos tipos de objeto. Por exemplo, acredita-se que "ídolos" façam coisas acontecerem. Dessa mesma maneira, eles operam imagens que são danificadas a fim de que uma vítima humana sofra o mesmo tipo de dano. Num movimento arrojado, Gell estende o seu argumento a padrões abstratos, argumentando que a decoração cria uma "ligação entre pessoas e coisas", e que -mais especificamente- alguns padrões, tais como o "kolam" ou os desenhos de soleiras de porta comuns no sul da Índia, são concebidos como protetores: crê-se que defendam seus usuários contra demônios.
Esta pequena resenha não consegue fazer justiça à habilidade e à erudição -para não mencionar a graça e a engenhosidade- com as quais Alfred Gell ilustra seus argumentos. As idéias discutidas advêm tanto da antropologia quanto de historiadores da arte como Ernst Gombrich ou filósofos como Richard Wollheim. Os exemplos se referem mais frequentemente à Índia e à Polinésia, as duas regiões nas quais o autor realizou o seu trabalho de campo, incluindo um estudo sobre tatuagem intitulado "Wrapping in Images" (Embrulhado em Imagens, 1993).
Entretanto, artefatos da China, do Japão, da África e das Américas também aparecem de vez em quando, assim como obras famosas da arte ocidental, de Duccio e Michelangelo a Van Gogh e Duchamp. Um dos propósitos das referências ocidentais é minar qualquer tendência de pensar que os povos exóticos atribuam operacionalizações a objetos enquanto "nós" não o fazemos, um argumento que Gell desenvolve descrevendo-se a si mesmo jocosamente como um "idólatra" de algumas pinturas e como um "animista veicular", que atribui humores e intenções ao seu próprio carro.
É difícil a um estranho predizer o efeito que esse livro provocativo e, no entanto, construtivo exercerá sobre os colegas profissionais do autor. Como historiador social de artefatos -incluindo as obras de arte-, devo confessar que continuo não convencido da tentativa de eliminar completamente as abordagens alternativas, sejam elas estéticas, semióticas ou iconográficas. No capítulo sobre estilo e cultura Gell quase readmite essas concepções -ao menos em algumas de suas formas-, mas só se pode lamentar que o autor tenha optado por não ir um pouco mais longe e nos oferecer uma antropologia do mundo da arte pós-renascentista.
Mas, mesmo na sua forma inconclusa, "Art and Agency" é uma realização notável, que deveria instigar e interessar tanto a amantes da arte quanto a antropólogos. Não é muito comum se deparar com novas teorias sobre qualquer coisa, e ainda menos frequente a teoria estar combinada com tantas observações sensíveis sobre objetos materiais e situações sociais. Numa delas, Alfred Gell nota que "uma pintura de Rembrandt é uma performance de Rembrandt, e que deve ser entendida como tal, como se fosse uma performance de dançarinos ou de músicos de hoje em dia". "Art and Agency" é uma outra performance de um virtuoso. Que tragédia que o autor nunca nos dará direito a um bis!


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.



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