São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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BERLIN

Meu percurso intelectual

Isso é uma "philosophia perennis". Trata-se da crença fundamental em que se apoiou o pensamento humano durante dois milênios. Porque, se não existem respostas verdadeiras às questões, como é que se atinge o conhecimento em qualquer dimensão? Eis o que foi o cerne do pensamento racional e, de fato, espiritual durante várias épocas. Não importa que as pessoas se distingam umas das outras de maneira tão acentuada, que as culturas sejam diferentes, que as visões morais e políticas sejam diversas. Não importa que haja uma vastidão de doutrinas, religiões, moralidades, idéias: independentemente disso, tem de haver em algum lugar uma resposta verdadeira às questões mais profundas que preocupam o homem.

Giambattista Vico - O que primeiro me abalou foi a descoberta que fiz dos trabalhos do pensador italiano setecentista Giambattista Vico (1668-1744). Na minha opinião, ele foi o primeiro filósofo que concebeu a idéia de culturas. Vico queria entender a natureza do conhecimento histórico, da própria história: tudo bem que nos apoiemos nas ciências naturais quando tratamos do mundo externo, mas tudo o que elas podem nos fornecer é uma avaliação do comportamento de pedras ou mesas ou estrelas ou moléculas.
Somos capazes disso porque somos nós mesmos humanos e compreendemos nossa própria vida interna nesses termos. Sabemos como se comportam uma pedra ou uma mesa porque as observamos, fazemos conjecturas a respeito disso e as verificamos; mas nós não sabemos por que a pedra deseja ser como é -de fato, acreditamos que ela seja incapaz de desejar, ou de qualquer outro tipo de sentimento. Mas sabemos por que somos o que somos, o que procuramos, o que nos frustra, o que expressa os nossos sentimentos e crenças mais íntimos; sabemos mais sobre nós mesmos do que jamais saberíamos sobre pedras ou correntes fluviais.
Conhecimento verdadeiro é saber por que as coisas são como são, e não meramente o que são. E quanto mais nós investigamos isso, mais percebemos que as questões formuladas pelos gregos homéricos são diferentes das questões colocadas pelos romanos, que as questões dos romanos se distinguem daquelas formuladas na Idade Média cristã ou na cultura científica seiscentista ou mesmo nos dias de Vico, no século 18. As questões são diferentes. O uso da linguagem, dos símbolos, é distinto; e as respostas a um conjunto de questões não respondem às questões de outras culturas, sendo-lhes, aliás, relativamente irrelevantes.
É lógico que Vico era um fiel católico apostólico; ele acreditava que somente a igreja conseguia prover as respostas. Mas, seja como for, isso não o impediu de formular a idéia original de que as culturas diferem umas das outras, de que o que importa para um grego do século 5º é bem diferente daquilo que importa para um índio vermelho, para um chinês ou um cientista num laboratório do século 18. Por isso as aparências de todos esses homens são distintas, não existindo respostas universais a todas as questões que eles formulam. É lógico que há uma natureza humana comum, caso contrário homens de uma era não poderiam entender a literatura ou a arte de outra, bem como suas leis -sendo essas últimas a dimensão que Vico, como jurista que era, mais conhecia.

Herder - E então eu li um pensador ainda mais relevante, notadamente o filósofo e poeta alemão Johann Gottfried Herder (1744-1803). Herder acreditava que culturas diferentes dessem respostas diferentes a suas questões centrais. Estava mais interessado nas humanidades, na vida do espírito, do que no mundo exterior, concebendo que aquilo que era verdade para um português não valia necessariamente para um persa. Montesquieu tinha começado a formular esse tipo de coisa, mas até ele, que acreditava que os homens fossem moldados pelo ambiente que os envolvia, por aquilo que ele chamava de "clima", era por fim um universalista -acreditava que as verdades centrais fossem eternas, mesmo se as respostas a questões locais e efêmeras pudessem ser diferentes.
Herder declarava que cada cultura possuía o seu próprio "centro de gravidade": cada cultura tinha os seus próprios pontos de referência. Não havia, pois, razão por que essas culturas devessem lutar umas contra as outras -a tolerância universal teria de ser possível, mas a unificação era sinônimo de destruição. Nada era pior que o imperialismo. O mundo era um grande jardim no qual cresciam flores e plantas diferentes, cada uma à sua própria maneira, cada uma com as suas próprias reivindicações e direitos e passado e futuro. Disso seguia que, independentemente do que os homens tivessem em comum -e, de novo, é lógico que havia uma natureza até certo grau comum-, não havia respostas universalmente verdadeiras, tão válidas para uma cultura quanto para outra.
Herder é o pai do nacionalismo cultural. Não é um nacionalista político (este tipo de nacionalismo ainda não tinha sido desenvolvido em seu tempo), mas acreditava que o desejo de pertencer a uma cultura, algo que unificava um grupo ou uma província ou uma nação, era uma necessidade humana básica, tão profunda quanto o desejo de comida, de bebida ou de liberdade. Herder não era um relativista, apesar de ser frequentemente descrito como tal. Ele acreditava que havia objetivos humanos básicos e regras de comportamento, mas que eles assumissem formas diferentes em diferentes culturas e que, consequentemente, conquanto possam ter existido analogias, similaridades que tornaram uma cultura inteligível a outra, as culturas não podiam ser confundidas umas com as outras.

Romantismo e os seus frutos - Essa idéia foi mais aprofundada pelos românticos, que diziam algo completamente novo e inquietante: que os ideais não eram verdades objetivas escritas nos céus, os quais devessem ser entendidos, copiados, praticados pelos homens, mas que eram criados pelos próprios homens. Os valores não eram achados, mas produzidos; não descobertos, mas gerados -eis o que alguns dos românticos alemães certamente acreditavam, em contraposição à tendência objetivista, universalizante do superficial povo francês.
O que importava era a unicidade. Um poeta alemão escreve poesia em alemão, uma linguagem que ele, à medida que escreve, de certa forma vai criando: não é um simples escritor que escreve em alemão. A criação é tudo.
Essa foi a raiz de onde brotaram todos os diversos tipos de movimento -anarquismo, romantismo, nacionalismo, fascismo, adoração pelos heróis. Eu crio os meus próprios valores, talvez não conscientemente.
E, aliás, quem é "eu"? Para os românticos byronianos, "eu" é de fato um indivíduo, o estrangeiro, o aventureiro, o fora-da-lei, aquele que desafia a sociedade e os valores convencionais, seguindo os seus próprios -por mais que isso possa significar a sua perdição, é melhor do que a conformidade, o confinamento na mediocridade.
Mas, para outros pensadores, "eu" se transforma em algo muito mais metafísico. É um coletivo -uma nação, uma igreja, um partido, uma classe, um edifício do qual não sou mais que uma pedra, um organismo do qual sou somente um minúsculo fragmento vivente. Ele é o criador; eu próprio só importo na medida em que pertenço ao movimento, à raça, à nação, à classe, à igreja. Não significo como indivíduo verdadeiro no meio dessa superpessoa à qual a minha vida está organicamente ligada.
Vem daí o nacionalismo alemão: faço isso não porque é bom ou certo ou porque gosto disso -faço isso porque sou um alemão, e esse é o jeito alemão de viver. Assim também o existencialismo moderno -faço isso porque me associo a essa forma de existência. Nada me faz; não faço algo por se tratar de uma ordem objetiva à qual obedeço ou por causa de regras universais às quais devo aderir. Essa negação de valores universais, essa ênfase de ser sobretudo um elemento em -e leal a- um "super-eu", é um momento perigoso na história européia, e levou-nos a um grande pacto que tem sido destrutivo e sinistro nos tempos modernos.
Slogans como "Nada a não ser o partido", "Nada a não ser a igreja", "Meu país, certo ou errado, mas meu país" cravaram uma tal ferida na crença central do pensamento humano tal como esboçado acima -de que a verdade é universal, eterna, para todos os homens e em todos os tempos-, que este até hoje não se recuperou.
A humanidade não como objeto, mas como sujeito, um espírito em moto perpétuo, autocriador e "auto-móvel", um drama autocomposto em vários atos que, de acordo com Marx, acabarão em algum tipo de perfeição: tudo isso deriva da revolução romântica. Mesmo rejeitando essa enorme interpretação metafísica da vida humana como um todo -permaneço um empirista e só conheço aquilo que consigo experimentar ou pensar poder experimentar, não acreditando em entidades supra-individuais-, reconheço que ela causou um certo impacto sobre mim, e da seguinte forma.

Pluralismo - Cheguei à conclusão de que há uma pluralidade de ideais, assim como há uma pluralidade de culturas e de temperamentos. Não sou um relativista, dos que dizem que cada um de nós tem seus próprios valores, impossíveis de serem superados ou integrados. Acredito que isso seja falso.
Mas creio que haja uma pluralidade de valores que os homens podem procurar e procuram de fato, e que esses valores se distinguem entre si. Não há uma infinidade deles. E a diferença que isso faz é que, se um homem assume um desses valores, eu, que não o faço, sou capaz de compreender por que ele o assume e como seria para mim, na circunstância desse homem, ser induzido a assumi-lo. Vem daí a possibilidade da compreensão humana.
Se sou um homem ou uma mulher com imaginação suficiente (e disso preciso de fato), posso adentrar o sistema de valores que não é o meu próprio, mas que é entretanto algo que consigo conceber noutros homens, enquanto humanos que são, enquanto permanecem criaturas com as quais posso me comunicar, com as quais compartilho alguns valores comuns.
Eis por que pluralismo não é relativismo -os valores múltiplos são objetivos, parte da essência da humanidade mais do que criações arbitrárias das fantasias subjetivas dos homens. Entretanto, é lógico: se assumo um conjunto de valores posso detestar outros, e posso pensar que sejam prejudiciais à única forma de vida com a qual sou capaz de viver e que consigo tolerar, para mim mesmo e para os outros. Neste caso, posso atacá-la, posso até -em casos extremos- ter que ir para a guerra contra ela. Acho os valores nazistas detestáveis, mas consigo entender como, partindo da desinformação e da crença falsa em relação à realidade, alguém possa chegar a acreditar que eles sejam a única salvação. É lógico que esses valores têm de ser combatidos -por meio da guerra, se necessário for-, mas não enxergo nos nazistas, como algumas pessoas fazem, homens literalmente patológicos ou insanos.
Se o pluralismo é uma visão válida, e é possível o respeito entre os sistemas de valores que não sejam necessariamente hostis um ao outro, então o que segue são tolerância e consequências liberais, o que não ocorre no caso do monismo (somente um conjunto de valores é verdadeiro, todos os outros são falsos) ou do relativismo (os meus valores são meus, os seus são seus, e, se nós entrarmos em conflito, nenhum de nós pode reivindicar estar certo). Meu pluralismo político é um produto da leitura de Vico e Herder, e da compreensão das raízes do romantismo, que, na sua forma violenta, patológica, foi longe demais para a tolerância humana.
O mesmo vale para o nacionalismo: o sentido de pertencer a uma nação parece-me bastante natural e, em si, nada tem a ser condenado ou mesmo criticado. Mas, na sua forma inflamada -minha nação é melhor que a sua, eu sei como o mundo deveria estar configurado e você deve ceder porque você não sabe, porque você é inferior a mim, porque a minha nação está acima e a sua, bastante abaixo da minha, devendo oferecer-se como instrumento material para a minha, que é a única nação habilitada a criar o melhor mundo possível-, o nacionalismo é uma forma de extremismo patológico.

O inimigo do pluralismo é o monismo -a crença antiga de que há uma única harmonia de verdades à qual tudo, se for genuíno, tem de se ajustar. A consequência dessa crença é que aqueles que conhecem deveriam comandar aqueles que desconhecem. Aqueles que conhecem as respostas para alguns dos grandes problemas da humanidade devem ser obedecidos, já que somente eles sabem como a sociedade deverá ser organizada, como as vidas individuais deverão ser vividas, como a cultura deverá ser desenvolvida.
Sempre houve pensadores a sustentarem que o mundo seria mais desenvolvido se só cientistas ou pessoas cientificamente treinadas fossem responsáveis pelas coisas. Em relação a isso, devo dizer que jamais se propôs uma desculpa ou mesmo uma razão melhor para justificar o despotismo ilimitado por parte de uma elite que rouba da maioria as suas liberdades essenciais. Uma vez alguém observou que antigamente homens e mulheres eram sacrificados em nome de uma variedade de deuses. Em vez destes, a era moderna traz consigo novos ídolos: os "ismos". Causar dor, matar, torturar são, no geral, devidamente condenados. Entretanto, se esses atos não são praticados em nome do meu próprio benefício pessoal, e sim em nome de algum "ismo" -socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, crença religiosa fanaticamente sustentada, progresso ou a realização de leis da história-, então está tudo bem.

Liberdade - A liberdade política é um assunto ao qual dediquei duas conferências na década de 1950. A última delas, intitulada "Dois Conceitos de Liberdade", inaugurou a minha docência em Oxford, e seu cerne era distinguir duas noções de liberdade (ou livre-arbítrio, pois os termos são usados de forma intercambiável): negativa e positiva. Por liberdade negativa eu concebia a ausência de obstáculos que bloqueiam a ação humana.
A extensão de liberdade negativa depende da medida em que tais obstáculos criados pelo homem estejam ausentes -do grau em que sou livre para seguir este ou aquele caminho sem ser impedido de fazê-lo por parte de instituições ou disciplinas criadas pelo homem, ou por atividades de seres humanos específicos.
Não basta dizer que a liberdade negativa simplesmente significa a liberdade de fazer o que eu quero, já que, neste caso, simplesmente seguir os antigos estóicos na supressão do desejo poderia livrar-me dos obstáculos existentes para a realização dos meus desejos. Mas este caminho -a eliminação gradual dos desejos aos quais possam existir obstáculos- conduz, por fim, à existência de seres humanos gradualmente privados de suas atividades de vida. Na verdade, o que eu tinha em mente quando desenvolvi a noção de liberdade negativa era simplesmente o número de caminhos que um homem pode percorrer, quer escolha fazê-lo ou não. É o primeiro dos dois sentidos básicos de liberdade política.
Alguns sustentaram, contra mim, que a liberdade tem de ser uma relação triádica: eu posso superar ou remover ou ser livre de obstáculos somente para fazer algo, para ser livre a fim de realizar um dado ato ou determinados atos. Mas não concordo com isso. A não-liberdade no seu sentido básico é o que se atribui ao homem na prisão, ou ao homem preso a uma árvore. Tudo o que um tal homem procura é romper as suas correntes, escapar da sua cela, sem necessariamente visar uma atividade particular, uma vez liberado.
O outro sentido central de liberdade é "liberdade para": se minha liberdade negativa está especificada pelo fato de eu responder à questão "Em que medida sou controlado?", a questão referente ao segundo sentido de liberdade é "Quem me controla?". Já que estamos falando de obstáculos feitos pelo homem, posso me perguntar: "Quem determina minhas ações, minha vida? Sou eu que faço isso, livremente, da maneira que eu escolher? Ou estou sob as ordens de alguma outra fonte de controle? Minha atividade é determinada por meus pais, diretores de escola, padres, policiais? Estou sujeito à disciplina do sistema legal, da ordem capitalista, do proprietário de escravos, do governo (monárquico, oligárquico, democrático)?".


O universo perfeito é inatingível e inconcebível, e a tentativa de criá-lo tem por base uma falácia intelectual


Esses são os dois sentidos centrais de "liberdade" que eu me pus a investigar. Percebi que eles se diferenciavam entre si, que eles eram respostas a duas questões diferentes. Mas, apesar de cognatos, eles, aos meus olhos, não entravam em choque. Ambas as liberdades são fins humanos últimos, ambas são necessariamente limitadas e ambos os conceitos podem ser pervertidos no decurso da história humana. A liberdade negativa poderia ser interpretada como "laissez-faire" econômico, por meio do qual, em nome da liberdade, se permite a proprietários destruir as vidas de crianças em minas, ou, a proprietários de fábricas, destruir a saúde e o caráter de trabalhadores na indústria.
Mas, na minha opinião, isso é uma perversão; não é o que o conceito basicamente significa para os seres humanos. Do mesmo modo, seria possível dizer que é ludíbrio informar a um homem pobre que ele é perfeitamente livre para ocupar um quarto num hotel caro, apesar de ele talvez não poder pagar por isto. Mas isso também é uma confusão. De fato, o homem é livre para alugar um quarto naquele hotel, mas não possui meios para utilizar-se de sua liberdade. Ele não possui os meios, talvez porque um sistema econômico feito por homens o tenha impedido de ganhar mais do que ganha. Mas isso é uma privação da liberdade de ganhar dinheiro, e não da liberdade de alugar um quarto.

A noção de liberdade positiva conduziu historicamente a perversões ainda mais aterrorizantes. Quem ordena a minha vida? Eu. Eu? Ignorante, confuso, estraçalhado por paixões e forças descontroladas -isso é tudo o que resta para mim? Não há dentro de mim um eu mais elevado, mais racional, mais livre, capaz de compreender e de dominar paixões, a ignorância e outros defeitos que posso contornar somente por meio de um processo de educação ou de compreensão, um processo que pode ser administrado somente por aqueles que são mais sábios do que eu, que me conscientizam do meu eu mais verdadeiro, "real", profundo, daquilo que sou de melhor?
Esta é uma concepção metafísica bem conhecida, segundo a qual só posso ser verdadeiramente livre e autocontrolado se verdadeiramente racional -uma crença que remete a Platão. E, já que talvez eu próprio não seja suficientemente racional, tenho de obedecer àqueles que são de fato racionais, e que portanto sabem o que é melhor não só para eles mesmos, mas também para mim, conseguindo me guiar ao longo dos trilhos que por fim irão despertar o meu eu racional verdadeiro, fazendo-o agir onde ele deve fazê-lo de fato.
Em resumo, eles estão agindo para o meu bem, em nome dos interesses do meu eu mais elevado, controlando o meu eu mais baixo, de forma que a verdadeira liberdade para o eu mais baixo consiste na total obediência a eles, a elite dos sábios. Ou talvez a minha obediência deva se destinar àqueles que compreendem como o destino humano é feito -já que, se Marx está correto, é um partido (que com exclusividade supre as demandas dos objetivos racionais da história) que tem de me moldar e guiar, qualquer que seja o caminho que o meu pobre eu empírico deseje seguir. E o próprio partido tem de ser guiado pelos seus líderes visionários e, por fim, pelo maior e mais sábio líder de todos.
Não há déspota no mundo que não saiba usar esse método de argumentação para a opressão mais vil, em nome de um eu ideal que ele busca conduzir à fruição pelos seus próprios meios; meios esses possivelmente brutais e moralmente odiosos.
Eis a grande perversão a que conduz a noção positiva de liberdade: quer a tirania advenha de um líder marxista, quer de um rei, de um ditador fascista, dos mestres de uma igreja autoritária, uma classe ou um Estado, o fato é que ela busca o eu aprisionado, "real", no interior do homem, e o "libera", de forma que esse eu possa chegar ao nível daqueles que dão as ordens. Isso justifica algumas das mais aterrorizantes formas de opressão e escravização da história humana. Assim, essa noção de dois tipos de liberdade e suas distorções tornou-se o cerne de muita discussão e contenda em universidades do Ocidente e de outros lugares, permenecendo até hoje em debate.

Determinismo - O determinismo tem sido uma doutrina amplamente aceita por filósofos durante várias centenas de anos. O determinismo declara que todo evento tem uma causa, da qual ele inevitavelmente deriva. Isso é o fundamento das ciências naturais: as leis da natureza e todas as suas aplicações -todo o corpo das ciências naturais- baseiam-se na noção de uma ordem eterna na qual as ciências investiram. Mas, se o resto da natureza está sujeito a essas leis, pode ser que somente o homem não esteja?
Quando um homem supõe, como a maioria das pessoas comuns (apesar de não a maioria dos cientistas e filósofos), que, ao levantar da cadeira, não precisaria ter feito isso, que ele fez isso por ter escolhido fazê-lo, mas que não precisava ter escolhido -quando ele supõe isso, lhe dizem que isso é uma ilusão, que, apesar de os psicólogos ainda não terem concluído o trabalho necessário, um dia isso poderá acontecer (ou, de qualquer modo, em princípio poderá ter acontecido).
Acredito que essa doutrina seja falsa, mas não procuro neste ensaio demonstrar essa tese ou refutar o determinismo. De fato, não estou certo de que tal demonstração ou refutação sejam possíveis. Minha única intenção é formular para mim mesmo duas questões: por que os filósofos e outros pensam que os seres humanos são completamente determinados? E, se eles o são, isso é compatível com os sentimentos e o comportamento moral comum?
Minha tese é a de que existem duas razões principais que levam os homens a sustentarem a doutrina do determinismo humano. A primeira é que, já que as ciências naturais são talvez o discurso de maior sucesso em toda a história do homem, parece absurdo supor que somente o homem não esteja sujeito às leis naturais descobertas pelos cientistas. A única questão é: a sua liberdade está totalmente bloqueada desta maneira? Não há qualquer espaço em que ele possa agir ou escolher, sem ser determinado a optar a partir de causas antecedentes? Pode ser um minúsculo espaço do reino da natureza, mas, se ele não existir, a consciência que o homem possui de ser livre -que indubitavelmente é tudo, menos universal- transforma-se numa enorme ilusão.
A segunda razão para a crença no determinismo é que ele embebe de responsabilidade um grande número de coisas que as pessoas fazem em nome de causas impessoais e que as deixam, em certo sentido, imunes a qualquer condenação pelo que fazem. Quando cometo um erro, um equívoco, um crime ou faço qualquer coisa que eu mesmo reconheça, ou que outros reconheçam, como sendo má ou errada, posso dizer: "Como poderia ter evitado isso? Esse foi o modo como fui educado", ou "Essa é a minha natureza, algo pelo qual leis naturais são responsáveis".
Em contraposição a isso, a maioria das pessoas acredita que todo o mundo tem ao menos duas alternativas entre as quais pode optar, duas possibilidades a serem percebidas. Quando Eichmann diz: "Eu matei judeus porque fui obrigado a fazê-lo; se não tivesse feito isso, eu próprio teria sido morto", poder-se-ia dizer: "Entendo que é improvável que você tenha optado por ser morto, mas em princípio você poderia ter feito isso se tivesse decidido fazê-lo -não havia qualquer compulsão literal, tal como há na natureza, que levasse você a agir como você agiu".
Você pode dizer que é irracional esperar que pessoas se comportem dessa forma quando estão diante de grandes perigos. Assim é, de fato, mas, por mais improvável que seja uma decisão desse tipo, no sentido literal da palavra eles poderiam ter decidido fazer isso. Não se pode esperar o martírio, mas pode-se aceitá-lo, contrariando todas as expectativas. De fato, é isso que faz dele um fenômeno tão enormemente admirado.

Eis o que eu queria dizer em relação às razões segundo as quais os homens optam por adotar o determinismo na história. Mas, se o fazem, há uma consequência lógica difícil -para dizer o mínimo. Afinal, aceitar o determinismo implica que não possamos dizer a ninguém "Você tinha de fazer isso?", partindo, portanto, da suposição de que a pessoa poderia ter reprimido os seus impulsos ou feito algo diferente. O todo da nossa moralidade comum, que implica obrigação e dever, certo e errado, louvor e repreensão moral, essa rede de crenças e práticas da qual parece depender toda a moralidade comum, pressupõe a noção de responsabilidade.
E responsabilidade requer a habilidade de escolher entre o preto e o branco, o certo e o errado, o prazer e a obrigação. Dessa mesma forma, num sentido mais amplo, é fundamental a opção entre formas de vida, formas de governo e todas as constelações de valores morais segundo os quais vive a maioria das pessoas.
Se o determinismo fosse aceito, nosso vocabulário teria de ser modificado de maneira muito, muito radical. Na melhor das hipóteses, a estética teria de substituir a moralidade. Você pode admirar ou elogiar pessoas por sua beleza, generosidade ou musicalidade. Mas isso não é uma a escolha delas, isso é "como elas são feitas". O louvor moral, por sua vez, teria de assumir a mesma forma: se eu exaltasse você por ter salvo minha vida correndo riscos fatais, quero dizer que é maravilhoso que você seja feito de forma a que não possa evitar fazê-lo. Conduta honrada ou desonrada, martírio heróico ou voltado exclusivamente para o próprio prazer, coragem e covardia, fraude e autenticidade, a ação contra a tentação: são coisas que não conseguimos modificar, já que tudo é determinado. Mas, se a própria escolha é determinada, qual é a diferença entre a ação e o mero comportamento?
Parece-me paradoxal que alguns movimentos políticos peçam sacrifícios e, no entanto, sejam deterministas em suas crenças. O marxismo, por exemplo, fundado no determinismo histórico -os estágios inevitáveis pelos quais a sociedade tem de passar antes de atingir a perfeição- prescreve atos dolorosos e perigosos, coerção e morte igualmente dolorosas, às vezes tanto para os perpetradores quanto para as vítimas. Mas, se a história inevitavelmente originará a sociedade perfeita, por que é que se deveria sacrificar a vida -já que, sem qualquer ajuda dos indivíduos, a história inevitavelmente desembocará em seu destino apropriado, glorioso?
Mas o fato é que existe um sentimento humano curioso: se as estrelas em suas trajetórias estão lutando por você em nome do triunfo da sua causa, então você deverá se sacrificar a fim de acelerar o processo, acelerar as contrações de um parto que fará nascer a nova ordem, como dizia Marx. Mas é possível que tantas pessoas sejam verdadeiramente persuadidas a encarar esses perigos apenas para encurtar um processo que desembocará na felicidade, independentemente do que possam fazer ou fracassar? Isso sempre me intrigou. E a outros também.

Em busca do ideal - Há ainda um outro tópico. Trata-se da própria noção de uma sociedade perfeita, a solução para todos os nossos males. Alguns dos filósofos do século 18 concebiam que a sociedade ideal, em que depositavam suas esperanças, inevitavelmente chegaria. Outros eram mais pessimistas, supondo que os defeitos humanos não deixariam que ela se originasse. Alguns pensavam que o progresso em direção a ela era inexorável; outros, que possivelmente só seria alcançável por meio do esforço humano. Independentemente disso, a própria noção de sociedade ideal pressupõe um mundo perfeito em que todos os grandes valores -à luz dos quais os homens têm vivido por tanto tempo- possam ser, ao menos em princípio, percebidos em conjunto.
Liberdade, não importa o sentido que se lhe atribua, é um ideal humano eterno, quer seja individual ou social. O mesmo vale para a igualdade. Mas a liberdade perfeita (tal como tem de ser no mundo perfeito) não é compatível com a igualdade perfeita. Se o homem está livre para fazer o que quer que deseje, então o forte irá oprimir o fraco, os lobos comerão os carneiros, e isso porá fim à igualdade. Se a igualdade perfeita deve ser atingida, então os homens têm que ser impedidos de se distanciar uns dos outros. De outra forma, o resultado será: desigualdade.
O anarquista Bakunin (1814-1876), que acreditava na igualdade entre todas as coisas, pensava que as universidades deveriam ser abolidas, pois originavam homens cultos que se comportavam como se fossem superiores aos incultos, e isso aumentava as desigualdades sociais. De maneira similar, um mundo de justiça perfeita -e quem consegue negar que esse é um dos mais nobres valores humanos?- não é compatível com a compaixão perfeita. Não preciso trabalhar esse ponto: ou a lei cobra impostos ou os homens perdoam dívidas, mas os dois valores não podem ser realizados ao mesmo tempo.
De novo: conhecimento e felicidade podem ou não ser compatíveis. Pensadores racionalistas supuseram que o conhecimento sempre liberta, que salva os homens de serem vítimas de forças que eles não conseguem entender. Até certo ponto, isso é indubitavelmente verdadeiro. Mas o fato de saber que tenho câncer não me torna mais feliz ou livre -eu tenho de escolher entre saber sempre o máximo que puder saber e aceitar que há situações nas quais a ignorância pode significar felicidade.
Liberdade e igualdade, espontaneidade e segurança, alegria e conhecimento, piedade e justiça -todos esses são valores humanos últimos, assumidos somente para os seus próprios fins. Entretanto, quando incompatíveis, eles não podem todos ser atingidos: escolhas têm de ser feitas, frequentemente é necessário aceitar perdas trágicas quando se está em busca de algum fim último preferido.
Mas, se isso não só é empírica, mas também conceitualmente verdadeiro, então a própria idéia do mundo perfeito, onde se realizam todas as coisas boas, é incompreensível e, de fato, conceitualmente incoerente. E, se é assim -e eu não consigo imaginar como poderia ser diferente-, então a própria noção de mundo ideal, em nome do qual nenhum sacrifício é suficiente, cai por terra.
Enfim, voltemos aos enciclopedistas, aos marxistas e a todos os outros movimentos cujo propósito é a vida perfeita: é como se a doutrina de que todos os tipos de crueldades monstruosas tenham de ser permitidas por serem a única maneira para que se atinja o estado ideal de coisas -todas as justificativas de ovos quebrados em nome da omelete final; todas as brutalidades, os sacrifícios, a lavagem cerebral; todas aquelas revoluções; tudo o que, pelo menos no Ocidente, se fez neste século, talvez o mais horroroso de todos desde o passado remoto-, tudo isso tenha sido feito em nome de nada. Afinal, o universo perfeito não somente é inatingível, mas também inconcebível, e tudo o que se faz para criá-lo tem por base uma enorme falácia intelectual.


Tradução de Fraya Frehse.



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