São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice BERLIN Meu percurso intelectual
Isso é uma "philosophia perennis". Trata-se da crença fundamental em que se apoiou o pensamento humano durante dois milênios. Porque, se não existem respostas verdadeiras às questões, como é que se atinge o conhecimento em qualquer dimensão? Eis o que foi o cerne do pensamento racional e, de fato, espiritual durante várias épocas. Não importa que as pessoas se distingam umas das outras de maneira tão acentuada, que as culturas sejam diferentes, que as visões morais e políticas sejam diversas. Não importa que haja uma vastidão de doutrinas, religiões, moralidades, idéias: independentemente disso, tem de haver em algum lugar uma resposta verdadeira às questões mais profundas que preocupam o homem.
Esses são os dois sentidos centrais de "liberdade" que eu me pus a investigar. Percebi que eles se diferenciavam entre si, que eles eram respostas a duas questões diferentes. Mas, apesar de cognatos, eles, aos meus olhos, não entravam em choque. Ambas as liberdades são fins humanos últimos, ambas são necessariamente limitadas e ambos os conceitos podem ser pervertidos no decurso da história humana. A liberdade negativa poderia ser interpretada como "laissez-faire" econômico, por meio do qual, em nome da liberdade, se permite a proprietários destruir as vidas de crianças em minas, ou, a proprietários de fábricas, destruir a saúde e o caráter de trabalhadores na indústria. Mas, na minha opinião, isso é uma perversão; não é o que o conceito basicamente significa para os seres humanos. Do mesmo modo, seria possível dizer que é ludíbrio informar a um homem pobre que ele é perfeitamente livre para ocupar um quarto num hotel caro, apesar de ele talvez não poder pagar por isto. Mas isso também é uma confusão. De fato, o homem é livre para alugar um quarto naquele hotel, mas não possui meios para utilizar-se de sua liberdade. Ele não possui os meios, talvez porque um sistema econômico feito por homens o tenha impedido de ganhar mais do que ganha. Mas isso é uma privação da liberdade de ganhar dinheiro, e não da liberdade de alugar um quarto. A noção de liberdade positiva conduziu historicamente a perversões ainda mais aterrorizantes. Quem ordena a minha vida? Eu. Eu? Ignorante, confuso, estraçalhado por paixões e forças descontroladas -isso é tudo o que resta para mim? Não há dentro de mim um eu mais elevado, mais racional, mais livre, capaz de compreender e de dominar paixões, a ignorância e outros defeitos que posso contornar somente por meio de um processo de educação ou de compreensão, um processo que pode ser administrado somente por aqueles que são mais sábios do que eu, que me conscientizam do meu eu mais verdadeiro, "real", profundo, daquilo que sou de melhor? Esta é uma concepção metafísica bem conhecida, segundo a qual só posso ser verdadeiramente livre e autocontrolado se verdadeiramente racional -uma crença que remete a Platão. E, já que talvez eu próprio não seja suficientemente racional, tenho de obedecer àqueles que são de fato racionais, e que portanto sabem o que é melhor não só para eles mesmos, mas também para mim, conseguindo me guiar ao longo dos trilhos que por fim irão despertar o meu eu racional verdadeiro, fazendo-o agir onde ele deve fazê-lo de fato. Em resumo, eles estão agindo para o meu bem, em nome dos interesses do meu eu mais elevado, controlando o meu eu mais baixo, de forma que a verdadeira liberdade para o eu mais baixo consiste na total obediência a eles, a elite dos sábios. Ou talvez a minha obediência deva se destinar àqueles que compreendem como o destino humano é feito -já que, se Marx está correto, é um partido (que com exclusividade supre as demandas dos objetivos racionais da história) que tem de me moldar e guiar, qualquer que seja o caminho que o meu pobre eu empírico deseje seguir. E o próprio partido tem de ser guiado pelos seus líderes visionários e, por fim, pelo maior e mais sábio líder de todos. Não há déspota no mundo que não saiba usar esse método de argumentação para a opressão mais vil, em nome de um eu ideal que ele busca conduzir à fruição pelos seus próprios meios; meios esses possivelmente brutais e moralmente odiosos. Eis a grande perversão a que conduz a noção positiva de liberdade: quer a tirania advenha de um líder marxista, quer de um rei, de um ditador fascista, dos mestres de uma igreja autoritária, uma classe ou um Estado, o fato é que ela busca o eu aprisionado, "real", no interior do homem, e o "libera", de forma que esse eu possa chegar ao nível daqueles que dão as ordens. Isso justifica algumas das mais aterrorizantes formas de opressão e escravização da história humana. Assim, essa noção de dois tipos de liberdade e suas distorções tornou-se o cerne de muita discussão e contenda em universidades do Ocidente e de outros lugares, permenecendo até hoje em debate. Determinismo - O determinismo tem sido uma doutrina amplamente aceita por filósofos durante várias centenas de anos. O determinismo declara que todo evento tem uma causa, da qual ele inevitavelmente deriva. Isso é o fundamento das ciências naturais: as leis da natureza e todas as suas aplicações -todo o corpo das ciências naturais- baseiam-se na noção de uma ordem eterna na qual as ciências investiram. Mas, se o resto da natureza está sujeito a essas leis, pode ser que somente o homem não esteja? Quando um homem supõe, como a maioria das pessoas comuns (apesar de não a maioria dos cientistas e filósofos), que, ao levantar da cadeira, não precisaria ter feito isso, que ele fez isso por ter escolhido fazê-lo, mas que não precisava ter escolhido -quando ele supõe isso, lhe dizem que isso é uma ilusão, que, apesar de os psicólogos ainda não terem concluído o trabalho necessário, um dia isso poderá acontecer (ou, de qualquer modo, em princípio poderá ter acontecido). Acredito que essa doutrina seja falsa, mas não procuro neste ensaio demonstrar essa tese ou refutar o determinismo. De fato, não estou certo de que tal demonstração ou refutação sejam possíveis. Minha única intenção é formular para mim mesmo duas questões: por que os filósofos e outros pensam que os seres humanos são completamente determinados? E, se eles o são, isso é compatível com os sentimentos e o comportamento moral comum? Minha tese é a de que existem duas razões principais que levam os homens a sustentarem a doutrina do determinismo humano. A primeira é que, já que as ciências naturais são talvez o discurso de maior sucesso em toda a história do homem, parece absurdo supor que somente o homem não esteja sujeito às leis naturais descobertas pelos cientistas. A única questão é: a sua liberdade está totalmente bloqueada desta maneira? Não há qualquer espaço em que ele possa agir ou escolher, sem ser determinado a optar a partir de causas antecedentes? Pode ser um minúsculo espaço do reino da natureza, mas, se ele não existir, a consciência que o homem possui de ser livre -que indubitavelmente é tudo, menos universal- transforma-se numa enorme ilusão. A segunda razão para a crença no determinismo é que ele embebe de responsabilidade um grande número de coisas que as pessoas fazem em nome de causas impessoais e que as deixam, em certo sentido, imunes a qualquer condenação pelo que fazem. Quando cometo um erro, um equívoco, um crime ou faço qualquer coisa que eu mesmo reconheça, ou que outros reconheçam, como sendo má ou errada, posso dizer: "Como poderia ter evitado isso? Esse foi o modo como fui educado", ou "Essa é a minha natureza, algo pelo qual leis naturais são responsáveis". Em contraposição a isso, a maioria das pessoas acredita que todo o mundo tem ao menos duas alternativas entre as quais pode optar, duas possibilidades a serem percebidas. Quando Eichmann diz: "Eu matei judeus porque fui obrigado a fazê-lo; se não tivesse feito isso, eu próprio teria sido morto", poder-se-ia dizer: "Entendo que é improvável que você tenha optado por ser morto, mas em princípio você poderia ter feito isso se tivesse decidido fazê-lo -não havia qualquer compulsão literal, tal como há na natureza, que levasse você a agir como você agiu". Você pode dizer que é irracional esperar que pessoas se comportem dessa forma quando estão diante de grandes perigos. Assim é, de fato, mas, por mais improvável que seja uma decisão desse tipo, no sentido literal da palavra eles poderiam ter decidido fazer isso. Não se pode esperar o martírio, mas pode-se aceitá-lo, contrariando todas as expectativas. De fato, é isso que faz dele um fenômeno tão enormemente admirado. Eis o que eu queria dizer em relação às razões segundo as quais os homens optam por adotar o determinismo na história. Mas, se o fazem, há uma consequência lógica difícil -para dizer o mínimo. Afinal, aceitar o determinismo implica que não possamos dizer a ninguém "Você tinha de fazer isso?", partindo, portanto, da suposição de que a pessoa poderia ter reprimido os seus impulsos ou feito algo diferente. O todo da nossa moralidade comum, que implica obrigação e dever, certo e errado, louvor e repreensão moral, essa rede de crenças e práticas da qual parece depender toda a moralidade comum, pressupõe a noção de responsabilidade. E responsabilidade requer a habilidade de escolher entre o preto e o branco, o certo e o errado, o prazer e a obrigação. Dessa mesma forma, num sentido mais amplo, é fundamental a opção entre formas de vida, formas de governo e todas as constelações de valores morais segundo os quais vive a maioria das pessoas. Se o determinismo fosse aceito, nosso vocabulário teria de ser modificado de maneira muito, muito radical. Na melhor das hipóteses, a estética teria de substituir a moralidade. Você pode admirar ou elogiar pessoas por sua beleza, generosidade ou musicalidade. Mas isso não é uma a escolha delas, isso é "como elas são feitas". O louvor moral, por sua vez, teria de assumir a mesma forma: se eu exaltasse você por ter salvo minha vida correndo riscos fatais, quero dizer que é maravilhoso que você seja feito de forma a que não possa evitar fazê-lo. Conduta honrada ou desonrada, martírio heróico ou voltado exclusivamente para o próprio prazer, coragem e covardia, fraude e autenticidade, a ação contra a tentação: são coisas que não conseguimos modificar, já que tudo é determinado. Mas, se a própria escolha é determinada, qual é a diferença entre a ação e o mero comportamento? Parece-me paradoxal que alguns movimentos políticos peçam sacrifícios e, no entanto, sejam deterministas em suas crenças. O marxismo, por exemplo, fundado no determinismo histórico -os estágios inevitáveis pelos quais a sociedade tem de passar antes de atingir a perfeição- prescreve atos dolorosos e perigosos, coerção e morte igualmente dolorosas, às vezes tanto para os perpetradores quanto para as vítimas. Mas, se a história inevitavelmente originará a sociedade perfeita, por que é que se deveria sacrificar a vida -já que, sem qualquer ajuda dos indivíduos, a história inevitavelmente desembocará em seu destino apropriado, glorioso? Mas o fato é que existe um sentimento humano curioso: se as estrelas em suas trajetórias estão lutando por você em nome do triunfo da sua causa, então você deverá se sacrificar a fim de acelerar o processo, acelerar as contrações de um parto que fará nascer a nova ordem, como dizia Marx. Mas é possível que tantas pessoas sejam verdadeiramente persuadidas a encarar esses perigos apenas para encurtar um processo que desembocará na felicidade, independentemente do que possam fazer ou fracassar? Isso sempre me intrigou. E a outros também. Em busca do ideal - Há ainda um outro tópico. Trata-se da própria noção de uma sociedade perfeita, a solução para todos os nossos males. Alguns dos filósofos do século 18 concebiam que a sociedade ideal, em que depositavam suas esperanças, inevitavelmente chegaria. Outros eram mais pessimistas, supondo que os defeitos humanos não deixariam que ela se originasse. Alguns pensavam que o progresso em direção a ela era inexorável; outros, que possivelmente só seria alcançável por meio do esforço humano. Independentemente disso, a própria noção de sociedade ideal pressupõe um mundo perfeito em que todos os grandes valores -à luz dos quais os homens têm vivido por tanto tempo- possam ser, ao menos em princípio, percebidos em conjunto. Liberdade, não importa o sentido que se lhe atribua, é um ideal humano eterno, quer seja individual ou social. O mesmo vale para a igualdade. Mas a liberdade perfeita (tal como tem de ser no mundo perfeito) não é compatível com a igualdade perfeita. Se o homem está livre para fazer o que quer que deseje, então o forte irá oprimir o fraco, os lobos comerão os carneiros, e isso porá fim à igualdade. Se a igualdade perfeita deve ser atingida, então os homens têm que ser impedidos de se distanciar uns dos outros. De outra forma, o resultado será: desigualdade. O anarquista Bakunin (1814-1876), que acreditava na igualdade entre todas as coisas, pensava que as universidades deveriam ser abolidas, pois originavam homens cultos que se comportavam como se fossem superiores aos incultos, e isso aumentava as desigualdades sociais. De maneira similar, um mundo de justiça perfeita -e quem consegue negar que esse é um dos mais nobres valores humanos?- não é compatível com a compaixão perfeita. Não preciso trabalhar esse ponto: ou a lei cobra impostos ou os homens perdoam dívidas, mas os dois valores não podem ser realizados ao mesmo tempo. De novo: conhecimento e felicidade podem ou não ser compatíveis. Pensadores racionalistas supuseram que o conhecimento sempre liberta, que salva os homens de serem vítimas de forças que eles não conseguem entender. Até certo ponto, isso é indubitavelmente verdadeiro. Mas o fato de saber que tenho câncer não me torna mais feliz ou livre -eu tenho de escolher entre saber sempre o máximo que puder saber e aceitar que há situações nas quais a ignorância pode significar felicidade. Liberdade e igualdade, espontaneidade e segurança, alegria e conhecimento, piedade e justiça -todos esses são valores humanos últimos, assumidos somente para os seus próprios fins. Entretanto, quando incompatíveis, eles não podem todos ser atingidos: escolhas têm de ser feitas, frequentemente é necessário aceitar perdas trágicas quando se está em busca de algum fim último preferido. Mas, se isso não só é empírica, mas também conceitualmente verdadeiro, então a própria idéia do mundo perfeito, onde se realizam todas as coisas boas, é incompreensível e, de fato, conceitualmente incoerente. E, se é assim -e eu não consigo imaginar como poderia ser diferente-, então a própria noção de mundo ideal, em nome do qual nenhum sacrifício é suficiente, cai por terra. Enfim, voltemos aos enciclopedistas, aos marxistas e a todos os outros movimentos cujo propósito é a vida perfeita: é como se a doutrina de que todos os tipos de crueldades monstruosas tenham de ser permitidas por serem a única maneira para que se atinja o estado ideal de coisas -todas as justificativas de ovos quebrados em nome da omelete final; todas as brutalidades, os sacrifícios, a lavagem cerebral; todas aquelas revoluções; tudo o que, pelo menos no Ocidente, se fez neste século, talvez o mais horroroso de todos desde o passado remoto-, tudo isso tenha sido feito em nome de nada. Afinal, o universo perfeito não somente é inatingível, mas também inconcebível, e tudo o que se faz para criá-lo tem por base uma enorme falácia intelectual. Tradução de Fraya Frehse. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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