São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice SEARLE Entrevista da Redação
Leia a seguir entrevista concedida
pelo filósofo John Searle à Folha
em seu escritório na Universidade
da Califórnia, em Berkeley (EUA),
onde leciona.
Folha - Como você resumiria sua
trajetória desde "Speech Acts"
(Atos de Fala)?
Folha - Serei mais específico. No último livro de Richard Rorty, "Verdade e Progresso" ("Truth and Progress", Cambridge University Press), há um capítulo que discute um artigo seu de 92, em que, em nome do realismo, você criticava Rorty, Kuhn e Derrida. Para ser mais direto: não acredito que Derrida caiba neste grupo, mas é verdade que, por alguma razão, Rorty acredita que Derrida jogue no seu campo. De qualquer forma, o debate é entre concepção pragmatista e concepção realista da verdade. Para você o realismo não é pouca coisa; a segunda parte de "A Construção Social da Realidade", por exemplo, é consagrada ao realismo. Você defende contra todos a idéia de que a verdade seja, possa e deva ser medida pela adequação à realidade. É surpreendente, pois você certamente seria o primeiro a dizer que a linguagem é a instituição fundamental, sem a qual nenhuma outra instituição seria possível. Como entender a noção de que qualquer coisa que a gente diga possa ser adequada à realidade enquanto tal? Se estamos sempre lidando com descrições, e as descrições, sendo linguísticas, são convencionais, como apreendemos a realidade em si? Searle - A resposta é muito simples. Algumas descrições são verdadeiras porque correspondem aos fatos. Digo: há uma árvore lá fora, e há uma árvore lá fora. Folha - Há uma árvore porque você pode bater nela, cortá-la... Searle - Não, há uma árvore porque há uma árvore. Como é que eu acabo sabendo que há uma árvore é uma outra questão. Não devemos confundir a epistemologia de como descobrimos que há uma árvore com a ontologia, aquilo que existe. As descrições do mundo são articuladas por meio de frases em um vocabulário convencional, mas os fatos que correspondem a estas descrições não são convencionais. Há água salgada no oceano Atlântico, ela estava lá anos antes que qualquer ser humano declarasse que havia água salgada no oceano Atlântico. Tínhamos que inventar um vocabulário para dizê-lo, mas o fato mesmo não depende de nosso vocabulário. O vocabulário é convencional, mas, uma vez que você tenha um vocabulário convencional, que haja ou não um fato no mundo que corresponda à sua declaração não é convencional. Folha - Estamos acostumados a dizer que a realidade é composta de partículas. Isto é verdadeiro porque este é o tipo de descrição do mundo que é científica para nós. Duzentos anos atrás, teríamos falado de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, em lugar de vermos a verdade em partículas mínimas, poderíamos pensar que ela está na ordem holística do universo. Qual é o fato que está por trás desta mudança? Naturalmente, há algum fato, não estamos discutindo que haja realidade. Searle - O ponto é que, avançando na ciência, mudamos nossa descrição, mas isso não coloca em causa a existência de uma realidade independente. Folha - Concordo até aqui. Searle - Que a gente modifique, melhore nossas descrições, isto só faz sentido porque tentamos nos aproximar da verdade. E a verdade é uma questão de como nossas descrições correspondem a um fato. Pergunta - Aqui já concordo menos. Há uma teleologia em sua posição, a idéia de um progresso de nossas descrições. Searle - Mas é assim. Sabemos muito mais do que nossos avós. Havia um tempo em que ninguém sabia das doenças produzidas por bactérias, e agora sabemos. E, por consequência, somos decididamente mais capazes de curar doenças do que no passado. Folha - Justamente, este é um argumento pragmático. Aí concordaríamos. Searle - Ok, mas a utilidade pragmática deriva da correspondência aos fatos. Identificamos a bactéria da TB e por isso fomos capazes de agir utilmente. A utilidade depende da correspondência (e não vice-versa). É porque temos uma representação adequada de uma coisa que podemos agir do modo certo. Folha - O pragmatismo diria apenas o inverso. Searle - Pior. Richard (Rorty) não quer falar da verdade. Segundo ele, não podemos dizer que a ciência nos permite fazer melhores predições porque o que ela diz é verdadeiro. Tampouco se pode dizer que é verdadeira porque permite melhores predições. Deveríamos simplesmente dizer que ela nos permite fazer melhores predições -ponto. O que "melhores" significa aqui, a não ser "correspondente aos fatos", não tenho a menor idéia. Folha - Acho que, se Rorty não quer falar sobre a verdade, é porque receia que a verdade tenha dono. A idéia de deter a descrição verdadeira do mundo às vezes inspira pretensões delirantes. Veja o caso de Edward Wilson, o biólogo, que acredita ser possível deduzir até normas éticas a partir da descrição científica da realidade. Searle - Eu contestei Ed Wilson. Ele disse, por exemplo: estabelecemos em sociobiologia que o incesto é um mal. Eu mostrei que, mesmo em seus próprios termos, ele não estabeleceu nada disso. No melhor dos casos ele estabeleceu que o incesto que leva à gravidez é um mal, mas o pai que estupra sua filha usando métodos contraceptivos não vai de nenhuma maneira contra o que a sociobiologia pode estabelecer. A sociobiologia não mostra as coisas que Ed Wilson pretende. Folha - O sonho dele (e de outros) é chegar a algum tipo de regulador ético que não seja convencional ou institucional. Searle - Ele está errado. Folha - Mas não deixa de ser uma tendência forte. Entende-se por que: seria uma maneira de substituir Deus. Se pudéssemos deduzir princípios morais da ciência ou da biologia, seria um alívio. Searle - Mas em filosofia não estamos no negócio de oferecer conforto e alívio para ninguém. Folha - Justamente, no último capítulo de "Atos de Fala", você abordava uma questão filosófica clássica: como deduzir o "dever" do "ser" (o "ought" do "is"). Sua posição era: é possível, mas há que se ter ao menos uma regra convencional, que deve ser acrescentada aos fatos; ou seja, só é possível na linguagem. Uma posição oposta à de Ed Wilson. Searle - Vejamos esta posição. Mostrei que a sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões para agir independentemente de seu desejo. A instituição da promessa é um bom exemplo. Ao prometer que encontraria você aqui em meu escritório, criei uma razão de agir que permanece autônoma do meu desejo. Engajo-me em algo que eu poderia não estar a fim de fazer. Agora, a obrigação de manter uma promessa não deriva da instituição da promessa. A maior parte dos comentadores deste capítulo pensou que eu estava dizendo que as regras constitutivas da linguagem (por exemplo, o engajamento produzido pelo ato de prometer) engendram as obrigações. Não é isso: o agente individual, prometendo, cria intencionalmente uma situação em que vai ter que fazer alguma coisa independentemente do desejo. A obrigação (moral) de respeitar a promessa é outra coisa e não depende da instituição da linguagem. Naquele escrito, o que me importava era que temos instituições linguísticas que permitem aos indivíduos em sociedade conectar sua vontade. Uma sociedade não poderia funcionar sem isso. Porque, sem isso, a única maneira de predizer o comportamento das pessoas seria tentar adivinhar o que desejam, e isso não levaria a lugar nenhum. Deve haver um sistema para que eles possam agir segundo uma razão que não depende do que eles estão a fim em um dado momento. Folha - Então não é possível deduzir normas éticas da instituição da linguagem. Searle - Não há nada na linguagem enquanto tal que garanta uma teoria em lugar de outra. Folha - Talvez as questões propriamente éticas, em sua filosofia, dependam mais do que você chama de background -pano de fundo. Para explicitar este conceito, poderia situá-lo entre o que um antropólogo chamaria cultura e o que, na hermenêutica de Gadamer, seria o horizonte comum entre locutores? São conceitos que se sobrepõem? Searle - De qualquer forma, a ética é um pântano. Não é tão ruim quanto o pós-modernismo, que é um desastre, mas é uma área fraca da filosofia. Quanto ao background, minha concepção é a seguinte: o uso da linguagem depende de pressuposições implícitas, ou seja, depende de capacidades gerais, disposições, maneiras de comportamento, práticas culturais. A significação literal da proposição articulada pode ser interpretada só por meio deste background. O background não é exatamente a mesma coisa que os antropólogos chamam de cultura, porque muitos elementos do background são transculturais. Se você lê em um livro que "comiam carne", sabe que comiam carne pela boca, não pelos ouvidos, e esta não é uma questão de cultura, mas de pressupostos comuns de background -neste caso, biológico. Mas atenção: não devemos pensar o background como um sistema de crenças. É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no trato com o mundo. Folha - De maneira recorrente em sua obra, aliás, você evoca o inconsciente freudiano e contesta a idéia de uma intencionalidade inconsciente. Ora, muitos psicanalistas contemporâneos (eu me incluo entre eles) na verdade situariam o inconsciente, para usar seus termos, no background. Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na consciência quando o ato é produzido. Searle - Isto é interessante. A maneira como sempre interpretei Freud me mostrou que sua concepção do inconsciente era intencionalista, ou seja, concernia a crenças e desejos que as pessoas têm inconscientemente. Por isso, sempre pensei que meu ponto de vista era oposto ao de Freud. Folha - Minha opinião é a de que a aparência de uma intencionalidade inconsciente é produzida a posteriori, pela interpretação. De fato, a intencionalidade é sempre consciente: o que acontece é que um background composto por memórias privadas, histórias de família, convenções sociais etc. intervém, atrapalhando o exercício intencional. Searle - Mas isto não é o que diz o texto de 1915 sobre o inconsciente. Folha - Concordo, mas Freud produziu no mínimo duas metapsicologias. De qualquer forma, me parece que é do lado daquilo que você chama de background que se explica a relevância de qualquer terapia pela palavra. Searle - Certo. Parece-me, aliás, que muitas vezes o comportamento patológico das pessoas tem a ver não com alguma crença ou desejo inconscientes, mas com uma capacidade de background que é contraprodutiva, patológica.
Folha - Você dizia que a linguagem como tal não carrega todas as complexidades de uma cultura (por exemplo, não implica as obrigações éticas), mas uma linguagem não deixa de representar uma cultura, pois as palavras valem como convenções sociais que são às vezes específicas da cultura que fala esta língua. Quais as consequências políticas disso, por exemplo, no que diz respeito ao debate entre integração ou preservação das diferenças culturais? Searle - Duvido que a gente consiga obter uma derivação estrita de minha filosofia para questões de política. No entanto há implicações gerais, embora não de natureza estritamente lógica. Se estou com razão a propósito da construção da realidade social, que é uma questão de aceitação ou reconhecimento (coletivos) de uma sequência de funções simbólicas, então parece que uma sociedade vai funcionar melhor se não for centrífuga. Ou seja, em uma nação como os EUA, se o foco primário de lealdade de grupo estiver relacionado com a nação, e não com grupos subsidiários. Estamos hoje em um momento em que tem sucesso uma coisa chamada multiculturalismo, isto é, a idéia de que é necessário haver lealdade entre grupos étnicos específicos, mais do que com a mais larga unidade nacional. Eu acho que isso é uma péssima notícia. Duvido que -especialmente em tempos de crise, como em caso de guerra- um país como os Estados Unidos possa funcionar com focos de lealdade primária diferentes daqueles do Estado nacional. Naturalmente, há uma outra questão: talvez a idéia de nação esteja acabando. Durante quase 700 anos as nações eram um foco primário da identificação de grupo. Talvez, com a unidade européia e com a concepção multiculturalista nos EUA, a nação-Estado esteja no fim. O problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado, nem organizações supranacionais (certamente, não as Nações Unidas), nem subsidiárias. Outra implicação de minha filosofia para a política. Na "Construção da Realidade Social", mostrei que há realidades que são construídas socialmente, como dinheiro, governo, matrimônio etc. Nos EUA há um caso muito interessante que não discuto no livro. A raça é largamente (embora não inteiramente) uma construção social. Não é uma questão de biologia. É evidente que, por não sabermos lidar com diferenças étnicas e raciais, fazemos de conta que são entidades biológicas, naturais, conquanto sejam construções sociais. Folha - Qual é a sua visão da comunidade intelectual americana hoje? Searle - Houve um desastre: o advento de uma facção de filosofia anti-racionalista conhecida como pós-modernismo: é uma espécie de favela intelectual. Se tivesse cem anos pela frente, entraria para fazer a limpeza. Folha - Quais são os nomes? Searle - Ok. Derrida, De Man. Não incluiria Foucault. Foucault era sobretudo um intelectual europeu tradicional que obedecia a um certo estilo francês. Mas incluiria o elemento radical do movimento feminista, as pessoas de filosofia da ciência que dizem que a ciência cria os fatos... Pergunta - Kuhn faria parte disso? Searle - Ele deu conforto e tranquilidade para essas pessoas, mas não faz parte disso. Folha - Diria a mesma coisa sobre Rorty? Searle - Um pouco mais. Rorty é um aliado deles, deu mais do que conforto. Acho que Richard não se sente muito bem na companhia de lésbicas radicais e desconstrucionistas, mas ele deve pensar que é uma maneira de atacar as coisas que ele quer atacar. Para ele, é uma aliança interessante. Diria que ele é um pós-moderno ambíguo, mas é definitivamente um aliado. Os pós-modernos são essencialmente uma coleção de anti-racionalistas e antiiluministas. Invadiram os departamentos de inglês, nos quais se passou a ler Derrida, Geoffrey Hartman, De Man... e nada de literatura. Folha - Kuhn e Rorty certamente não compartilham sua posição realista em matéria de verdade. Mas não me parece que seja este o desastre. O desastre é que seus aliados desconstrucionistas se aproveitam disso para produzir uma descrição do mundo em termos exclusivamente ideológicos. Searle - Certo, é o que acontece. Quando me criticam, não criticam meus pensamentos, dizem: "Searle usa metáforas masculinas". "Searle encontra uma aporia burguesa que o leva ao falo-fono-logo-centrismo...". Não se interessam pelo conhecimento, em como conseguimos dar conta do mundo e em como ele funciona. E, para mim, este é o sentido de uma vida intelectual. (CONTARDO CALLIGARIS) Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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