São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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SEARLE
A mente redescoberta


Leia prefácio de Bento Prado Jr. ao livro de John Searle "O Mistério da Consciência", que está saindo pela Paz e Terra


BENTO PRADO JR.

Muitos são os méritos deste pequeno livro de John Searle e o menor não será, certamente, o de sua forma ou estilo. Aprendemos, com ele, que a filosofia pode ser apresentada, discutida e -mais importante- produzida numa linguagem clara, acessível ao vasto público dos não-especialistas, sem em nada sacrificar sua essência. Este livro reativa, assim, um pouco à contracorrente, o espírito da "Aufklärung" ou, para usar a linguagem de Kant, a dimensão cosmológica (ou "mundana") da filosofia, para além de sua estreita dimensão escolástica. Mais precisamente, demonstra (talvez sem a intenção consciente de fazê-lo) que a tecnicidade indispensável à filosofia não constitui todavia seu coração mais profundo.
Este livro é o resultado de uma série de ensaios ou de resenhas encomendados pelo "The New York Review of Books" sobre a "filosofia da mente" ou sobre os diversos programas de pesquisa da filosofia universitária de língua inglesa, que visam a resolver a questão clássica da subjetividade, da ipseidade ou da consciência, com os instrumentos fornecidos pelas ciências e tecnologias contemporâneas: essencialmente a biologia, as neurociências e as "ciências cognitivas" baseadas em modelos computacionais (clássicos ou conexionistas).
O autor mapeia as diferentes linhas esboçadas -da extrema direita ou da linha-dura do SAI (Strong Artificial Intelligence) à vaga esquerda de uma concepção biológica da mente, passando pelo centro da WAI (Weak Artificial Intelligence). Mais do que isso, inclui em seu livro réplicas de dois expoentes das linhas que critica (Daniel Dennet e David Chalmers), que haviam sido acolhidas, originalmente, no "NYRB", e as tréplicas que lhes ofereceu -não faltará aqui, portanto, a polêmica viva a propósito de questões que são ao mesmo tempo clássicas e atuais.
Com esse mapeamento crítico das diversas tentativas contemporâneas (em língua inglesa) de esclarecer o "mistério da consciência", o que ganhamos é uma formulação original do "problema da consciência" e a apresentação de um programa de pesquisa e de métodos racionais suscetíveis de resolvê-lo finalmente.
Mas, se efetivamente tenho razão e um dos méritos do livro é, como o leitor notará desde o início, sua grande clareza, por que esta apresentação? Não cabe, é evidente, pretender ajudar o leitor trocando em miúdos o seu conteúdo -ninguém, muito menos eu, poderia competir com o autor em sua capacidade de divulgar a filosofia, sem prejuízo para a complexidade do pensamento.
Talvez o mais interessante fosse apontar (diferencial e comparativamente) para a originalidade de sua iniciativa filosófica, situando o livro no mapa da filosofia contemporânea, sobretudo porque o leitor brasileiro pode não estar ainda perfeitamente familiarizado com as últimas peripécias da filosofia de língua inglesa (...).
Comecemos por situar nosso autor. Nascido em 1932, John Searle publica seus primeiros textos na década de 60, um pouco na trilha de Austin (ou do segundo Wittgenstein), acompanhando a vaga emergente da Virada Linguística, consagrando-se à análise dos "speech acts". Dentro do horizonte da filosofia norte-americana, tratava-se de redirecionar os estudos de filosofia da linguagem, deslocando-os da exclusiva preocupação com a sintaxe lógica e com a epistemologia, e enfatizando a dimensão pragmática da linguagem: a linguagem pensada menos como uma forma de representar objetos do que como uma maneira de fazer coisas.
Algo como o projeto de uma Pragmática Geral, que seria exposta mais tarde, por exemplo, numa "Taxonomia dos Atos Ilocucionários" (1976). Decisão precoce ("What Is a Speech Act?", por exemplo, é de 1965) que talvez possa ser vista como uma espécie de convite a retornar ao pragmatismo original dos "fouding fathers" do pragmatismo norte-americano, que não estavam tão presentes nas mentes dos professores das universidades americanas até aquela data (isto é, particularmente nas décadas de 40 e 50).
Um caminho estava aberto, se não somos vítimas de ilusão retrospectiva, para o cuidado atual com a biologia como paradigma para o pensamento filosófico. Não é verdade, com efeito, que, para Dewey pelo menos, o ponto de vista do pragmatismo é essencialmente biológico?
De qualquer maneira, não são necessárias hipóteses muito arriscadas sobre o itinerário teórico de Searle para imaginar que o simples exame dos atos de fala implicava uma recuperação da idéia de sujeito. Como, com efeito, imaginar um ato sem pressupor um sujeito da ação? Não implica a gramática do conceito de ação necessariamente, em sua própria arquitetura interna, um lugar para um sujeito, qualquer que seja o estatuto que lhe atribuamos? Não implica a gramática dos atos de fala uma teoria do sentido, em que é essencial a primeira pessoa do singular do presente do indicativo?
O empirismo lógico, de origem centro-européia -particularmente na sua implantação norte-americana, espontaneamente cúmplice do behaviorismo, essa criação propriamente nacional-, desqualificara a questão do sujeito ou da consciência como problema autenticamente filosófico, nele vendo talvez o melhor exemplo dos falsos problemas da "metafísica", ou como um mito a ser dissolvido, eliminado ou "reduzido" pelo pensamento objetivo.
Mas, se reconhecemos que a idéia de sentido não é compreensível exclusivamente com o duplo recurso à sintaxe lógica e à empiria, estamos já preparados para visar essa idéia na sua articulação com alguma forma de subjetividade. Compreende-se, assim, que tenha sido com algum frisson ("excitement") que o filósofo da linguagem tenha descoberto, na produção científica dos anos 70 e 80, o renascimento da fascinação pelo "mistério da consciência".
A idéia de "sentido na primeira pessoa do singular do presente do indicativo" podia finalmente ser tratada com instrumentos fornecidos pela ciência. E é justamente a discussão dos instrumentos adequados para esse tratamento que constitui a corrente profunda que atravessa todos os capítulos deste livro.
O ponto de partida é o levantamento das razões que levaram à redescoberta da significatividade do problema da consciência ("The Rediscovery of the Mind" é o título de um livro publicado por Searle em 1992 pela MIT Press) ou, o que é a mesma coisa, dos motivos mais ou menos conscientes que conduziram ao esquecimento ou ao eclipse desse problema entre filósofos e cientistas. Na verdade são confusões conceituais que levaram a esse equívoco: é o temor de incidir num dualismo metafísico que leva a admitir que o acolhimento e a compreensão dos fenômenos mentais implica a afirmação da existência de entidades não-físicas ao lado, por assim dizer, do mundo físico.
A confusão conceitual denunciada consiste em supor que a decisão quanto ao estatuto do sujeito ou da consciência está condenada a oscilar ou escolher entre dois e apenas dois pólos. Como sou obrigado, em situação eleitoral nos Estados Unidos, a escolher entre democratas e republicanos, seria obrigado, em situação filosófica, a escolher entre o materialismo reducionista e o dualismo metafísico que atribui uma forma de ser substancial ao espírito.
Trata-se de reconhecer uma espécie de pluralismo epistêmico que não implica qualquer tese metafísica; um pluralismo de formas de linguagem para a qual é possível falar significativamente, segundo registros conceituais diferentes, do mesmo mundo. Um hiato se abre entre a epistemologia e a ontologia, bem como entre a ontologia e a metafísica, que não põe em perigo a unidade do mundo e que, deixando de lado as proibições positivista-behavioristas, não nos devolve às ilusões piedosas do espiritualismo.
Como também não significa retorno ao passado da metafísica opor argumentos à pretensão do SAI de encontrar, em modelos computacionais, a chave para a construção do mapa exaustivo da vida mental. Já em 1982, em "Minds, Brains and Programs", Searle mobilizava, contra esses modelos, o desde então famoso "Argumento do Quarto Chinês"; não há aqui espaço -nem necessidade haveria- de expor ou resumir tal argumento. Limitemo-nos a comentar alguns de seus aspectos mais salientes, na forma em que é situado e representado neste livro, particularmente no debate com Daniel Dennet (esse verdadeiro fogo cruzado, tiroteio de argumentos e contra-argumentos).


Searle ataca em seu livro o modelo computacional da mente


Digamos que o argumento exprime o essencial da cruzada empreendida por nosso filósofo contra o modelo computacional da mente, passando por três denúncias essenciais. O que se critica, nesse modelo, é: 1) o pressuposto fisicalista (alegremente assumido por Dennet), que é imediatamente interpretado como uma falácia epistemológica, que consiste em reduzir toda forma de fenômeno ao ser-objeto ou ao ser-coisa (o "objetivismo" e o "coisismo", tradicionalmente denunciados pela tradição da fenomenologia) e toda linguagem na "terceira pessoa"; 2) a cegueira para a irredutibilidade da semântica à sintaxe, da significação ao seu horizonte meramente calculatório (crítica que, com o evidente "intuicionismo" que implica, não deixa de lembrar o tom da fenomenologia); 3) o viés antibiológico que está na origem das falácias (1) e (2) ou a indiferença pela estrutura e pela função causal do cérebro (agora, portanto, numa linha francamente antifenomenológica) no advento da consciência.
Numa palavra, abstração, maquinismo, pura sintaxe alinham-se como pontos de referência insuficientes para dar o horizonte do que importa, ou seja, a compreensão e a expressão da experiência vivida, sem as quais a idéia de subjetividade ou de consciência perde todo sentido.
São dois os pontos essenciais do programa de pesquisa do campo da consciência proposto por Searle: o reconhecimento do papel causal do cérebro na constituição da consciência (ignorado pela SAI, último bastião do dualismo, que estabelece uma relação de exterioridade ou de indiferença entre hardware e software) e o reconhecimento de que a explicação causal da consciência não é nem redutiva nem eliminativa.
O fenômeno da consciência não desaparecerá (como se desfazem uma ilusão ou um mito quando se lhes opõe o conhecimento objetivo) se um dia viermos determinar sua exata função biológica: continuaremos a sentir dor, a sonhar e a resolver problemas matemáticos (de resto, a radiografia do dente e o diagnóstico perfeito do dentista jamais suprimiram dor alguma).
É talvez aqui que encontramos o ponto mais forte ou mais original do livro, exatamente na conclusão de sua crítica a Dennet. Contrapondo-se ao "verificacionismo" ou ao "objetivismo" deste último, Searle mostra a necessidade de distinguir dois sentidos na oposição feita entre as perspectivas da primeira e da terceira pessoa: um sentido epistêmico e um sentido ontológico.
Na dimensão epistêmica, o que se opõe são simplesmente enunciados objetivos e enunciados subjetivos; aqueles que descrevem estados de coisa, e independem dos sujeitos que os enunciam, e aqueles que exprimem estados subjetivos, por exemplo, preferências.
"Algumas entidades -diz Searle-, montanhas, por exemplo, têm uma existência que é objetiva no sentido de que não dependem de ser sentidas por um sujeito. Outras, a dor por exemplo, são subjetivas no sentido em que sua existência depende de ser sentida por um sujeito. Têm uma ontologia subjetiva ou na primeira pessoa." Numa palavra, na ontologia em primeira pessoa vale o princípio berkeleyano do "esse est percipi" ou a definição sartriana da consciência como ser-para-si, sem que por isso estejamos condenados ao idealismo ou a um espiritualismo substancialistas.
Sobretudo porque essa ontologia não compromete a "objetividade do conhecimento da subjetividade", pois, como diz Searle, "a objetividade epistêmica do "método' não requer objetividade ontológica do "subject matter'".
A redescoberta da consciência é, portanto, a descoberta desse modo ontológico especial -o ser-para-si, num estilo que lembra o da versão francesa e existencial da fenomenologia. Aproximação que se tornaria mais impressionante se a ligássemos ao curto texto que consagra, neste livro, às pesquisas de Israel Rosenfield.
Essa pequena nota sobre a ligação entre as idéias de "imagem corporal e ipseidade (self)" é particularmente significativa: o que interessa é que a radicação biológica da consciência é feita por meio da idéia de imagem corporal. Noutras palavras, se temos uma concepção biológica da consciência, temos também uma concepção por assim dizer "subjetivada" do corpo. Tudo se passa como se a perspectiva da "primeira pessoa" se infiltrasse no campo da própria biologia. Searle diz:
"Mesmo se estou fazendo algo tão abstrato como pensar sobre um problema matemático, sou ainda "eu' quem produz esse pensamento; isto é, meu corpo, este objeto no espaço e no tempo que está pensando sobre este problema". Notemos a equivalência lógica ou o vaivém estabelecido entre dois termos: "eu... isto é, meu corpo". Trata-se de duas operações simultâneas, de subjetivação do corpo (o corpo como meu corpo ou como corpo-próprio) e de "encarnação" ou de corporificação da consciência e da subjetividade.
Mas fiquemos por aqui. Nada mais fizemos que indicar alguns pontos "externos" à obra de Searle para auxiliar o leitor pouco familiarizado com a tradição da filosofia de língua inglesa, indicando momentos de aproximação e de distanciamento com outras filosofias que se empenharam em deslindar o enigma da consciência. Os leitores familiarizados com a filosofia americana, é claro, não carecem de apresentação alguma.
Uma justificativa, pelo menos, poderá ter esta apresentação: tentar mostrar, sem muita ginástica intelectual, a universalidade do interesse filosófico da obra de John Searle, concordemos ou não com as teses que ele desenvolve.


Bento Prado Jr. é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Filosofia, Literatura e Psicanálise" (Max Limonad).



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