São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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POLÊMICA
A moral corroída


Vítima do Unabomber, professor de Yale critica a "inversão de valores' nos EUA e defende a pena de morte


DAVID GELERNTER
especial para a "Commentary"

Nenhuma nação civilizada jamais toma como pressuposto a pena de morte; dois casos recentes nos forçam a reconsiderar o assunto. Uma mulher texana, Karla Faye Tucker, assassinou duas pessoas com uma picareta; dizem que ela se arrependeu na prisão, mas mesmo assim recebeu a pena máxima. Um homem de Montana, Theodore Kaczynski, assassinou três pessoas com cartas-bomba, não se arrependeu e fechou um acordo com a promotoria: confessou-se culpado e não será executado. Ele ainda havia tentado matar outras pessoas e conseguiu ferir algumas delas, inclusive eu. Por que executamos o penitente e poupamos o impenitente? Seja qual for a resposta, temos o dever de formular a pergunta.
E nós perguntamos -eu pergunto, pelo menos- com pesar por que na América moderna a inversão de valores é a especialidade da casa. Para eliminar o preconceito racial, discriminamos por raça. Para promover a assimilação cultural das crianças imigrantes, negamos-lhes o estudo em inglês. Jogamos cidadãos honestos nas cadeias por abuso de menores, baseados em testemunhos tão pífios que qualquer criança notaria. Permite-se lecionar o que é orgasmo em escolas públicas, mas não os Dez Mandamentos. Admiramos mulheres masculinizadas e homens efeminados. Nada disso tem relação direta com a pena de morte, embora nos obrigue a abordar toda a questão sobre a moralidade no contexto mais amplo dessa confusão alucinada sobre distinções elementares no país.
Para que executar os assassinos? Para dissuadir? Para vingar? Em geral, os partidários da pena de morte dão a primeira resposta; os oponentes, a segunda. Mas nenhuma delas contém toda a verdade. Se nosso principal objetivo fosse desencorajar os crimes, faríamos questão de execuções públicas, que não se acham na agenda política nem são um item que os americanos se interessam em promover. Se nosso principal objetivo fosse a vingança, deixaríamos que as partes lesadas decidissem o destino do assassino; se a vítima não tivesse família por quem vingar-se, cancelaríamos o evento.
De fato, executamos assassinos a fim de proclamar publicamente que o assassinato é intolerável. Um assassino com sangue-frio encarna um mal tão terrível que desafia a comunidade. Dizia o filósofo Robert Nisbet: "Até uma catarse desencadear-se pelo julgamento, pela descoberta do culpado e pela punição, a comunidade permanece ansiosa, receosa, apreensiva e, sobretudo, contaminada".
Os cidadãos têm o direito e, por vezes, o dever de falar. Também a comunidade tem esse direito e, por vezes, esse dever. A comunidade certifica nascimentos e óbitos, celebra matrimônios, educa crianças. Nas leis, nos feitos e nas cerimônias, ela traça as linhas da vida civilizada -linhas que são constantemente borradas e precisam ser reforçadas. Quando ocorre um assassinato, a comunidade é obrigada, quer queira ou não, a limpar o pigarro e falar ao microfone. Todo assassinato exige uma resposta comunitária. Entre as possíveis respostas, a pena de morte é a única confiável, visto que é permanente e não pode ser revogada ou subvertida.
Uma execução obriga a comunidade a assumir para sempre o fardo da certeza moral; ela é uma forma de discurso absoluto, que não permite conversa fiada ou equívocos. Assassinato premeditado, anuncia a comunidade, é um mal absoluto e absolutamente intolerável, ponto final. É claro que, se quiséssemos, poderíamos alcançar o mesmo objetivo com menos ênfase -por exemplo, ao encarcerar os assassinos pelo resto da vida (como por vezes fazemos). A questão, assim, passa a ser esta: a pena de morte é um exagero? Será que deveríamos nos ater a uma saída menos drástica?
Seria possível dizer "sim" se estivéssemos numa comunidade em que o assassinato fosse uma anomalia gritante e, pois, um problema efetivamente resolvido. Mas não estamos. Nossas metrópoles estão cheias de assassinos à solta.
Remontamos ao estado da natureza pré-civilizada. Nossa tendência natural, quando se trata de assassinatos, não é vingar o crime, mas dar de ombros, exceto nos raros casos relacionados a pessoas que nos são caras e próximas -e, mesmo assim, com ressalvas.
Essa é uma história antiga. Caim matou Abel e se traiu ao ser interrogado sobre onde estava seu irmão. A resposta do suspeito: "Como vou saber? Acaso sou guarda de meu irmão?". Essa é uma das primeiras declarações atribuídas à humanidade na Bíblia; proferida por uma parte interessada, ela não obstante expressa uma inclinação universal. Por que se meter nos problemas de outrem? E o assassinato, no sentido mais imediato, é sempre problema de outrem, porque a parte lesada está morta.
Nas sociedades arcaicas, o assassinato exigia um acerto privado de contas. A comunidade como um todo punha-se de lado. O assassinato percebido como um crime não somente contra uma pessoa, mas contra toda a comunidade e contra Deus -eis o triunfo moral que ainda é essencial à nossa integridade e que nunca deverá ser tomado como pressuposto. Ao executar os assassinos, a comunidade reafirma esse princípio moral e lembra a verdade de que o mal absoluto existe e deve ser punido. Mesmo que a pena de morte seja uma proclamação comunitária, nem por isso ela deixa de ser incoerente. Se o nosso objetivo é afirmar que a vida humana é mais preciosa do que tudo o mais, como podemos fazer tal declaração ao destruir a vida?
Ora, declarar que a vida humana é mais preciosa do que tudo o mais não é o nosso objetivo no momento em que se impõe a pena de morte. Nem a proposição é verdadeira. Os patriarcas da liberdade consagraram suas vidas à causa da liberdade; por tradição, os americanos crêem que há coisas mais preciosas do que a vida. "Vivendo numa época sanitária, acabamos por depositar um valor demasiado na vida humana -que, legitimamente, deveria vir depois das idéias humanas", afirma E.B. White em 1938, sobre o Pacto de Munique, que ensejou a "paz" entre as forças do Ocidente e Hitler.
Defender a pena de morte não é referir-se à vida em geral, mas ao crime de assassinato. O que não significa que a inviolabilidade da vida humana não entre em questão. Destruir uma vida, diz o Talmude ao discorrer sobre Caim e Abel, equivale a aniquilar um mundo inteiro. Mas acreditar na inviolabilidade da vida humana não significa -e o Talmude não diz isso- que a pena de morte esteja fora de cogitação.
Uma nova objeção vem da maneira aparentemente aleatória como aplicamos a pena capital. Em princípio, a pena de morte pode ser uma razoável proclamação comunitária, afirmam alguns críticos, mas ela se tornou tão deturpada na prática que perdeu todo o seu significado, devendo ser descartada. DiIulio diz que "a proporção de pessoas assassinadas em relação a pessoas executadas por assassinatos, entre 1977 e 1996, ficou na casa de 1.000 para 1"; a pena de morte tornou-se, a seu ver, "arbitrária e caprichosa", uma "loteria" que é "injusta tanto no que se refere à ética judaica e cristã quanto à cidadania americana".
Admito que, em geral, a administração da pena de morte deixa muito a desejar. Afinal de contas, todos estamos divididos e confusos sobre o assunto. A comunidade em geral é fortemente a favor da pena de morte, a elite cultural é francamente contra. As nossas tentativas de falar com segurança em nome de uma comunidade soam, pois, como alguém que luta para livrar-se de um garrote no pescoço, enquanto discursa. Contudo, uma comunidade tão altiva em relação ao assassinato quanto a nossa não tem o direito de se esquivar. O fato de sermos remendões não nos autoriza a desistir.
Opositores da pena capital tendem a descrevê-la como uma capitulação a nossas emoções -à mágoa, ao ódio, ao medo, à sede de sangue. Para a maioria dos partidários da pena de morte, isso é absolutamente falso. Ainda quando, por princípio, resolvemos seguir adiante, temos que nos empedernir. Muitos de nós achariam difícil matar um cão, o que dizer de uma pessoa. Defender a pena de morte não significa dar livre curso a nossas emoções, mas subjugá-las. O filósofo alemão Kant (1724-1804), o grande defensor da pena de morte com fundamentos morais, usa desse argumento em resposta a Cesare Beccaria, contrário à pena de morte, acusando-o de estar "movido por um sentimentalismo complacente e uma afetação de humanitarismo".
Se somos favoráveis à execução de assassinos, não é porque queremos, mas porque, por mais que não queiramos, nos sentimos obrigados a isso. Inúmeros americanos, é claro, não sentem mais essa obrigação. A pena de morte é penosa para nós, como uma comunidade, sobretudo em razão de nossa atitude moral evasiva. Pelo menos por uma geração, nos apressamos a desligar o comutador de nossas faculdades morais. "Não seja tão criterioso!" -de tanto se repetir, acabamos por acreditar nisso.
A pena de morte é uma proclamação sobre o mal absoluto, mas muitos de nós não estão nem sequer certos de que o mal existe. Definimos o mal a partir da existência, chamando-o "enfermidade" -uma tendência que Aldous Huxley previu em seu romance "Admirável Mundo Novo" (1932) e sobre a qual Robert Nisbet escreveu em 1982: "A América perdeu o vilão, o malvado, que agora tornou-se um dos enfermos, dos perturbados. A América perdeu o valor moral da culpa, perdeu-o para a enfermaria". Nossa recusa a olhar o mal de frente não é casual -é um ímpeto poderoso.
Temos, assim, o terrorista Theodore Kaczynski, que planejou e implementou uma enorme e complexa campanha de violência com um claro objetivo na cabeça -um objetivo que a maioria dos terroristas possui: ficar famoso e não morrer. Ele queria desviar a atenção pública para suas idéias sobre tecnologia; para tanto, resolveu atacar as pessoas com bombas. E ele estava certo. Seu plano vingou. É difícil imaginar prova mais plena da competência mental do que essa implementação de um plano ao longo de décadas, numa estratégia complexa e racional. Perversa, sim; irracional, não -são duas coisas diferentes.


A pena de morte nos parece penosa em razão de nossa atitude moral evasiva


Ele próprio declarou várias vezes que é perfeitamente são, sabia o que estava fazendo e se orgulha disso. Dizer que esse homem é louco me parece perversidade deliberada. Mas inúmeras pessoas pensam assim. Algumas delas insistem em que as suas idéias sobre tecnologia constituem "delírios". Alguns declaram que enviar bombas pelo correio é, "ipso facto", prova de insanidade -como se o século 20 não nos houvesse ensinado que não há limite para a bestialidade de pessoas sãs.
De onde vem essa perversidade? Eu disse antes que a comunidade em geral apóia a pena de morte, mas os intelectuais e a elite cultural tendem a se opor a ela. Isso não ocorre (acredito eu) porque deplorem mais a morte do que as outras pessoas, mas porque a pena de morte representa o discurso absoluto de uma posição de certeza moral, e a dúvida é a tuberculose da "intelligentsia" -um risco ocupacional que hoje pesa sobre a cultura como um todo. Os intelectuais americanos há muito se apartaram da comunidade -especialmente no que se refere aos delitos e penas, à religião, à educação, à família, aos sexos, às relações raciais, à história americana, aos impostos e gastos públicos, ao poder e metas do governo, à arte, ao meio ambiente e ao Exército.
Quanto ao resto, acho que eles e seu público estão de perfeito acordo. O resultado é uma comunidade americana acometida da moléstia da dúvida intelectual -ou melhor, da dúvida de si mesmos. O fracasso de nossas escolas é fruto da dúvida sobre nós mesmos, da nossa incapacidade de dizer às crianças que o aprendizado não é diversão e que elas devem dominar certos tópicos, quer queiram ou não. A história tortuosa da moderna relação racial americana é proveniente da dúvida sobre nós mesmos: aprovamos uma lei de direitos civis em 1964 e imediatamente perdemos toda a confiança em nossa capacidade de criar uma sociedade multirracial.
Durante os últimos anos da Guerra Fria, muitos americanos riram da idéia de que o modo de viver americano fosse moralmente superior ou de que a ex-União Soviética fosse o "império do mal"; alguns ainda riem. Dentro de sua comunidade e da comunidade americana em geral, os intelectuais da dúvida se refugiaram na intimidação, a ponto de muitos de nós sentirmos enorme desconforto ao enfrentar o mal, achando melhor mudar de assunto.
Mas voltemos à mulher penitente e ao homem impenitente: o caso de Karla Faye Tucker é o mais difícil dos dois. Dizem que ela se arrependeu dos assassinatos atrozes que cometeu. Se isso for verdadeiro, mesmo assim não teríamos por que perdoá-la ou perdoar qualquer assassino. Como escreveu Dennis Prager sobre esse caso, só a vítima está legitimada a perdoar -e a vítima está calada para sempre. No entanto, mostrar compaixão por penitentes é parte de nossa tradição religiosa, e não posso renunciá-la categoricamente. Por que Caim não foi condenado à morte, mas forçado a vagar eternamente pela Terra?
Na Midrash, uma das respostas dadas pelos rabinos é que ele se arrependeu. A categoria moral do arrependimento é tão importante, dizem eles, que foi criada antes do próprio mundo. Portanto, eu me sentiria moralmente obrigado a refletir com extremo cuidado antes de executar um penitente. Mas um verdadeiro penitente teria renunciado, como fez Karla Faye Tucker, a todos os expedientes legais para reverter o veredicto. Se foi tentada e frustrada a via legal, a janela da penitência estará fechada. É claro que existe também o difícil problema de distinguir entre a penitência dissimulada e a real, mas tudo que envolve pena de morte é difícil.
Quanto a Kaczynski, os promotores que aceitaram o acordo da comutação de pena dizem que conseguiram o melhor resultado possível em tais circunstâncias, e eu não os recrimino. Mas também considero o fracasso em executar um assassino terrorista impenitente uma trágica abdicação da responsabilidade moral. A tragédia consiste naquilo que, em nosso sistema confuso, os promotores públicos se sentiram forçados a fazer. A comunidade foi convocada para falar sem ambiguidades. Ela gaguejou, encolheu os ombros e virou as costas. Isso me traz de volta à nossa condição moral como uma comunidade. Posso descrever nosso compromisso mais em termos artísticos do que filosóficos.
Os exemplos mais vivos que eu conheço da dúvida sobre nós mesmos e de suas consequências são as pinturas e as esculturas de Alberto Giacometti, que morreu em 1966. Giacometti, artista de suma integridade, foi consumido pela dúvida intelectual e moral, que materializou com fidelidade. Suas esculturas mostram seres humanos alongados e enrugados, como que corroídos por ácido, comidos até o osso, machucados e fragilizados até a morte. É penoso contemplá-los: são emblemas naturais da América. Devíamos fincar um deles no topo do Capitólio, a fim de apreciá-lo.
Ao executar os assassinos, dizemos que o assassinato premeditado é um mal absoluto e absolutamente intolerável. Essa é uma declaração difícil de ser feita por uma comunidade que duvida de si mesma, mas não nos atrevemos a parar de tentar. Talvez haja comunidades em que a pena capital não seja mais necessária para responder ao assassinato premeditado. A América de hoje não é uma delas.


Tradução de José Marcos Macedo.



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