São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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HOMENAGEM
Um amigo discreto


O arquiteto Oscar Niemeyer relembra o amigo Lúcio Costa, morto no último dia 13


OSCAR NIEMEYER
especial para a Folha

No meu texto publicado na imprensa, por ocasião da morte de Lúcio, redigido às pressas, com os jornalistas aguardando, não disse tudo o que gostaria de ter dito daquele velho companheiro.
E, com a idade pesando, cansado das inúmeras entrevistas que a seu respeito dei para as emissoras de televisão, não me senti com ânimo de acompanhar o enterro e, como teria de ser, segui-lo até o túmulo.
Pedi a minha neta Ana Lúcia que me representasse e fiquei a lembrar os longos contatos que tivemos nesse curto passeio que, muitas vezes de mãos dadas, realizamos.
Não comentei, por exemplo, os favores que dele recebi, nem o período que passei no escritório que tinha com Carlos Leão. A forma gentil como me atendeu, contente de conhecê-los, de sentir como eram competentes e corretos, como sabiam lidar com a arquitetura. E ali ficava a olhar os desenhos primorosos que fazia, as residências esplêndidas que projetava, colorindo-os com o guache, alegre pela solução encontrada.
Lúcio, discreto, de pouca fala, educado e idealista. Leão, mais desinibido, a nos levar para o bar onde, sobre a mesa, desenhava suas belas mulheres. Com eles aprendi muita coisa. A importância da nossa velha arquitetura colonial e a maneira como deveria caminhar na minha profissão.
E não contei tampouco, naquela ocasião, o convite que Lúcio me fez para acompanhá-lo a Nova York, onde, juntos, cuidaríamos do pavilhão do Brasil, a ser construído na Feira Internacional daquele país. Gesto fraternal, difícil de acontecer. Fora vencedor do concurso e, simplesmente, gostaria do meu projeto.
Nada disse da solidariedade que sempre me dispensou, levando-me ao Barão de Saavedra para que eu projetasse a sede do Banco Boavista, ou influindo no Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no sentido de que o meu projeto para o hotel de Ouro Preto fosse aprovado. Quando Max Bill, de passagem pelo Rio, andou falando de minha arquitetura com uma autoridade que nunca existiu, muitos o criticaram; até de longe Alvar Aalto me escreveu: "Estou lançando a última pá de cal em cima de Max Bill". E Lúcio, como era de esperar, manifestou-se da maneira mais solidária e radical.
O mesmo apoio dele recebi quando determinou que fossem paralisados os desenhos referentes ao segundo projeto de Le Corbusier para o MES (Ministério da Educação e Saúde) que estavam sendo preparados por sua equipe, substituindo-os pelos croquis que elaborei, localizando o primeiro projeto daquele arquiteto -que eu preferia no centro do terreno, com a praça a atravessá-lo de lado a lado.
Sempre me incentivou. Lembro-me de que, terminados os desenhos do projeto que fez para a cidade universitária de Mangueira, na presença de Jorge Moreira, integrante de sua equipe, de mim e de José Reis, naquela época apenas colaboradores, declarou: "Jorge, você não pode ganhar mais que Oscar. Seus salários devem ser somados e divididos por dois". Ao que eu logo repliquei propondo: "É preferível somar os três e dividir por três". O Reis ganhava o mesmo que eu.
Não foi fácil realizar o concurso para o plano piloto de Brasília. Primeiro, por causa de JK, que, preocupado com os problemas de prazo, insistia em que eu o elaborasse. Sempre recusei. Não queria que o Reidy, a meu ver o mais qualificado para aquela tarefa, perdesse a oportunidade de realizá-lo. Depois, foi o presidente do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), a mim enviado pelo Israel Pinheiro para tratar da possível anulação do concurso, instituindo-se para a elaboração do plano piloto um grupo de arquitetos escolhidos por aquela entidade; eu, diante do meu colega João Cavalcanti, logo manifestei a minha reprovação irrevogável.
E Lúcio apareceu como uma surpresa para todos. Em poucas folhas de papel o nosso amigo inventou essa cidade magnífica que é hoje a capital do nosso país. Aprazível nas áreas habitacionais, ligadas às escolas e ao comércio local, mas monumental, criando beleza nos espaços governamentais, como uma capital exige.
Mas os anos correram e, um dia, o regime militar nos separou. Procurei esquecer aqueles tempos de solidão e entusiasmos que Brasília nos proporcionou. O velho barracão coberto de zinco onde projetamos todos os palácios da nova capital. Sem outra alternativa, segui para o exterior. Lúcio prosseguiu a cuidar dos problemas urbanísticos dessa cidade que, com tanto carinho, imaginou.
Certa vez, nos tempos em que o meu amigo José Aparecido de Oliveira era governador de Brasília, sugeri criar na Praça dos Três Poderes o Espaço Lúcio Costa. O que eu mesmo desenhei com o maior empenho: era a justa homenagem que lhe fazíamos.
Com a idade, muitos dos meus melhores companheiros foram desaparecendo e alguma coisa de mim mesmo parecia ir embora com eles. Alguma coisa feita de alegria e tristeza, mas também da terna amizade que muitas vezes nos uniu. E isso aconteceu comigo no dia em que partiu aquele velho mestre. Era um homem bom e sensível, que as maldades do mundo só faziam sofrer.


Oscar Niemeyer é arquiteto. Projetou, com Lúcio Costa, o plano piloto de Brasília (DF).



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