São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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NOVOS AUTORES - FICÇÃO
Um conto em dispersão

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Conceber, desenvolver e sustentar o mesmo fio dramático ao longo de vários episódios, embora de aparência simples e óbvia: talvez seja esse o maior desafio para um ficcionista. A questão salta aos olhos à leitura de "Sanzio", primeiro romance do carioca Milton Coutinho.
O autor estreou com um livro de contos, "X, Y, Z.", em 95, no qual se evidencia uma rara capacidade de narração e descrição de detalhes, num universo cujo aspecto trágico nem por isso encobre a busca, pelos personagens, de um destino menos pessimista.
Seu conto "O Criado", publicado na recém-lançada revista "Ficções", explora o mesmo universo e possui a mesma carga narrativa.
Agora, em "Sanzio", esses mesmos elementos, acrescidos ainda de uma elegância mais trabalhada no estilo, estão presentes. São, contudo, insuficientes para resolver a questão exposta acima.
O enredo é a busca que Giancarlo Sanzio empreende no sentido de delinear a sua própria individualidade. A começar pelo nome: nascido Roberto, filho temporão, com um ano de idade terá o nome modificado pelos pais, herdando a fusão dos nomes de seus dois irmãos mais velhos, Gianni e Carlo, gêmeos mortos em pleno gozo da juventude exatamente no mesmo dia.
Gianni fora um ladrão profissional. Carlo, um místico. Um nada tinha a ver com o outro. E é nessa incompatibilidade que se perde a identidade de Giancarlo.
Ao longo de sua vida, este vira pintor, passa pela guerrilha urbana, transforma-se num "serial killer", experimenta uma clínica psiquiátrica, opta pelo suicídio -tudo isso, sem falar do incesto que compartilhou, pequeno, com uma irmã.
Mais do que na vida de Giancarlo, porém -e aí talvez esteja uma chave para se compreender a fragilidade do texto como algo único, orgânico, solidificado-, as melhores partes do livro de Coutinho estão no início, quando o autor conta a história dos irmãos mais velhos.
O episódio em que Gianni tenta furtar uma tela de dentro de uma igreja -tudo se passa na Itália toscana-, por exemplo, é delicioso. Assim como as empreitadas de Carlo, que, bem-intencionado, utiliza supostos poderes especiais para controlar a vida de seus parentes.
Uma ironia refinada do autor perpassa o longo discurso de um diretor de escola em defesa da pedagogia da violência, ou seja, de um ensino cujo êxito depende, em última instância, do sofrimento do aluno.
Com efeito, ao devolver Giancarlo para os pais, o tal mestre afirma, entre outras coisas: "No momento em que privamos a criança da atividade ou do amigo ao qual se afeiçoou, podemos comprovar, com maior clareza, a eficácia da maldade forjada como instrumento didático".
O que debilita o livro, porém, é o fato de tratar-se, mais, de um somatório de episódios bem narrados, articulados com textos de caráter semi-ensaístico e outros com uso de recursos diversos (há um capítulo escrito sob a forma de peça teatral, poemas etc.).
Parece faltar algo que lhe amarre o conjunto. E dessa ausência resulta uma espécie de dispersão, um estilhaçamento, não da personalidade do personagem, mas sim do personagem propriamente dito, enquanto tal.
Giancarlo não está verdadeiramente no centro como deveria estar. Como leitores, é muito à distância que o acompanhamos. Ele é mais produto do que evolução.
Apesar disso, pelas qualidades apontadas mais acima, vale a pena conhecer o trabalho de Coutinho. Mesmo que, certamente senhor de seu ofício no domínio do conto, da narrativa curta, ele ainda fique a dever no texto mais extenso, como romancista.




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