São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Uma outra sociabilidade

José Arthur Giannotti

Costumo andar numa praça que, por ser plana, convém a caminhadas de cardíacos. Noutro dia, perto de uma prancha para exercícios abdominais, testemunho de minha inapetência por movimentos violentos, uma jovem senhora perguntou-me se iria usar o dito aparelho. Depois de minha negativa, elegantemente se deita nela para ler seu livro. Não cabe dizer que seu comportamento não seja social, que só levou em conta seus próprios interesses, mas também seria inapropriado qualificá-lo de legítimo ou legal. Que tipo de sociabilidade representa? Para ela, o outro lhe importa somente enquanto estiver no âmbito de sua ação direta, acessível a relações face a face. Não creio que lhe passasse pela cabeça estar prejudicando alguém, aquela pessoa que desejasse fazer ginástica e se visse impedida de usar um aparelho público, já que não possuía a devida a coragem de lhe pedir delicadamente que fosse ler em lugar mais adequado. Não abria mão, contudo, de decidir sobre a aplicação das regras de boa convivência. Ao passear pela praça, as aceitava tacitamente sem que, por isso, as seguisse como se desejasse a regra pela regra, instituída em nome da necessidade de preservar o espaço público. Agiu tendo em vista o bem das pessoas com as quais pudesse negociar o sentido social de seu comportamento.

Válido para todos
Não há dúvida de que, quando se segue uma norma social, como nos lembra bem Aristóteles, algum tipo de ser humano aparece no horizonte, pois não se pode dizer que essa norma venha a ser boa ou má, a não ser estipulando para quem ela vale. Mas a jovem senhora reduziu esse universo àqueles com os quais poderia negociar se era o caso ou não de aplicar a regra. Ora, quem freqüenta uma praça pública não está pressupondo que as normas ali vigentes tenham validade apenas para aqueles com quem possa entrar em acordo. A norma vem a ser social na medida em que vale para todos os membros de uma comunidade, de sorte que sua legalidade depende também de um acordo prévio, relativo ao próprio sentido do sistema normativo. Se um banco está na praça é para que todos possam se sentar nele sem pedir permissão a nenhuma outra pessoa. E, se além de sentar, me deito nele é porque, estando a praça vazia, imagino não estar prejudicando a ninguém. Um banco numa praça pública serve para as pessoas se sentarem ou se deitarem, se isso não incomodar seres humanos em geral. Em resumo, na moralidade objetiva as pessoas querem a norma na qualidade de condição de suas existências sociais; se isso não retira delas o direito de avaliar a conveniência de tomar certas liberdades -sentar-se ou deitar-se no banco-, não é por isso que lhes é permitido a cada momento avaliar a legalidade, por conseguinte a aplicabilidade, de uma norma pública. Por isso é que o Estado, sendo de Direito, decide em vez dela. Aposto que, se perguntássemos à jovem leitora se acreditava ser válido ler num aparelho público de ginástica, ela nos daria resposta negativa. Mas não repõe e reafirma a universalidade da norma no plano do próprio comportamento? Não opera como se ela estivesse tão distante que precisava formular seu sentido, passar de um nós abstrato para um nós ao alcance da mão? Noutras palavras, a norma pública continua mantendo sua validade, mas tão-só no nível do discurso, sendo que na prática seu sentido é reformulado de acordo com outras circunstâncias. Note-se que é precisamente essa reformulação que retira a aplicação da norma do espaço determinante tradicional, onde ela é válida ou não válida e nada mais. Desse ponto de vista, qualquer pessoa há de convir que, em praça pública, deitar-se num aparelho de ginástica nem é legal nem legítimo. No entanto, diante da pergunta a respeito de como seu ato se determinaria diante dessa dualidade, é quase certo que a moça responderia que não agiu legalmente, mas em vista de uma legitimidade que, invocada, não se apoiaria numa lei moral universal, mas numa universalização e validação de uma situação particular. Note-se que não reivindicaria para si uma exceção, que vem a ser, nos ensina Kant, fonte de imoralidade. Suponhamos, apenas para fins de argumentação, que as normas sociais advenham de um contrato. Desse ponto de vista, ela não deve se deitar na prancha, mas se sente legitimada a fazer o contrário porque reafirma o contrato no nível dos relacionamentos diretos. Se acreditasse que seu ato fosse exceção, não precisaria negociar com seus vizinhos. Desse modo, aquele contrato mais universal, civil, responsável pela instalação de um poder jurídico, em vez de simplesmente se arvorar em matriz normativa de qualquer sociabilidade, depende agora daquele outro que a pessoa tece no nível de sua própria sociabilidade. Contrato civil e contrato social passam a se determinar reciprocamente, um dependendo do outro para se efetivar.

Universal para um grupo
Esse comportamento de pastorear a aplicação da regra não seria mais freqüente do que aparece? Não é o que ocorre, "mutatis mutandis", no mercado informal de trabalho, no exercício de uma liderança empresarial e até mesmo na pirataria dos produtos culturais? Não domina instituições não-governamentais como o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e o Greenpeace? Tudo indica que essa forma de agir escapa das oposições clássicas entre o legal o ilegal, o público e o privado, introduzindo nessa bipolaridade clássica uma multiplicidade possível de relacionamentos diretos. No fundo, aquilo que seria um contrato originário se efetiva numa negociação particular posta para ser universal para um determinado grupo de pessoas. Quando o empregador e o empregado realizam um contrato informal de trabalho, a despeito de reconhecerem as leis trabalhistas, simplesmente não se vêem como exceção à regra, como se ela não devesse lhes ser aplicada. É por uma necessidade social que agem desse modo, pois, de outro, não poderiam sobreviver socialmente. Por isso seu contrato informal deveria ter validade universal para aqueles que se encontrassem na mesma situação. Estes não se submeteriam à lei jurídica se não pudessem reformular sua universalidade abstrata na universalidade concreta de seu tecido social. Quando firmam um contrato de trabalho sem o amparo da lei trabalhista, não a renegam, mas, igualmente, não retornam ao nível da insociabilidade completa, da luta de um contra todos ou ainda do trabalho escravo. Note-se que cada um não age como indivíduo qualquer disposto a alienar sua liberdade ou parte dela para continuar convivendo ou sobrevivendo talvez sem medo. Não se determina como ser racional escolhendo a forma de sociedade mais adequada para viver uns com os outros nas circunstâncias mais diversas. Reconhece a validade da norma moral e jurídica, mas a aplica reformulada para que valha num universo particularizado, no contexto de pessoas sempre negociando entre si. Não afirmaria, por exemplo, que a lei diz isso, que lhe devo obediência, mas, como muitos fazem o contrário, não vejo porque não posso fazer o mesmo. Move-se noutro plano afirmando que, se a lei disser isso, lhe devo obediência, mas ela seria muito melhor e mais eficaz se meu modo de operar fosse tomado como lei universal, sendo reformulada segundo as necessidades de grupos particulares.

Zona de violência difusa
A sociedade não seria mais justa e livre se cada grupo pudesse negociar caso a caso a aplicabilidade das normas mais gerais? Já que a universalidade abstrata não é possível, cada um trata de encontrar outra mais próxima da vida cotidiana.
Obviamente, esse tipo de raciocinar e de agir aumenta a incerteza, faz com que o medo e a violência espreitem nas zonas de interferência de cada esfera particular. A jovem leitora estava correndo o risco de se ver confrontada ou mesmo insultada por um cidadão mais corajoso e atrevido. Percebe-se que esse tipo de sociabilidade tende a ver a lei oriunda do contrato originário como necessidade vindo de fora, imposição, dever ser que não me diz imediatamente. Mas nessa contestação da validade da lei estatal abstrata cria-se uma zona de violência difusa, que não sabemos ainda controlar. Não é por isso que toda essa rede tecida pela sociedade civil, se de um lado promete mais justiça, liberdade e eficácia no tratamento nos sistemas normativos, também é responsável pela interiorização da violência?
Nos últimos tempos essa oposição kantiana entre contrato civil e contrato social vem perdendo progressivamente suas diferenças; de um lado, os ordenamentos jurídicos e suas aplicação se tornam mais sensíveis às necessidades sociais, de outro, os movimentos sociais se globalizam e encontram leis cada vez mais universais.
Até que ponto esse processo não abre espaço para o medo e para nova violência do terror?


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras). Escreve na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.


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