São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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CLÁSSICO DA HISTORIOGRAFIA LATINO-AMERICANA, "AS CIDADES E AS IDÉIAS", DE JOSÉ LUIS ROMERO, DEFENDE QUE AS FORMAÇÕES URBANAS HISPÂNICAS FORAM PLANEJADAS NÃO PARA IMPEDIR REVOLTAS, MAS PARA COIBIR A MESTIÇAGEM

MISTURA FINA

Francisco Alambert
especial para a Folha

José Luis Romero é um historiador argentino que o Brasil não pode se negar a conhecer. E "América Latina - As Cidades e as Idéias" é certamente o mais significativo de seus trabalhos para iniciar essa aproximação necessária. Nascido em Buenos Aires em 1909, lutador de boxe na juventude, carpinteiro e "paisagista" a vida toda, Romero fez parte de uma geração intelectual decisiva do modernismo intelectual argentino. Apaixonado no início pelas artes, editou em 1929 uma revista cultural chamada "Clave de Sol", juntamente com o grande fotógrafo Horacio Coppola e com Jorge Romero Brest, o mais importante crítico de arte da Argentina.
Radical e socialista, teve freqüentes conflitos com a direita e a esquerda peronistas, o que lhe dificultou a carreira universitária, que exerceu tanto na Argentina quanto no Uruguai. Romero foi parte de um importante momento em que a modernização desenvolvimentista e o radicalismo político e cultural andaram de mãos dadas. Tanto uma coisa como outra marcam decisivamente este livro.
"América Latina - As Cidades e as Idéias" foi seu último trabalho. Imenso ensaio historiográfico (gênero que entre nós é desprezado pelo tecnicismo universitário), escrito sem notas de rodapé, pode ser lido como seu derradeiro (senão maior) esforço de compreensão da América Latina como exceção e regra do mundo moderno, a partir da constituição da vida urbana e de seu contingente ideológico.
A trajetória do livro é tão espetacular quanto suas pretensões. A primeira edição surgiu em 1976, apenas dois meses depois do terrível golpe militar que vitimou também sua editora, a Siglo Veintiuno, que foi fechada. Em setembro do mesmo ano, aparece uma segundo edição, agora no México, mas em março de 1977 Romero morre subitamente, aos 68 anos, em Tóquio. Foi preciso o apoio de historiadores do porte de Richard Morse, Tulio Halperin Donghi, Angel Rama ou Leopoldo Zea para que a obra saísse do ostracismo, fosse editada na Colômbia, na Itália, nos EUA para agora chegar ao Brasil com uma ótima introdução do saudoso historiador carioca Afonso Marques dos Santos, uma outra do filho de José Luis, o também grande historiador Luis Alberto Romero, e uma bela tradução de Bella Josef. É de lamentar apenas que num livro tão grande, sem notas ou bibliografia, não conste um índice onomástico ou de assuntos. Para Romero "cidade" significava sociedades urbanas em processo de criação. Este livro procura demonstrar que, por meio da história comparada dos processos urbanos latino-americanos, se pode deduzir e esclarecer a história não apenas local, mas da "sociedade global", tanto em sua imagem central quanto na construção de sua imagem periférica. Na cidade, formas de vida e de mentalidade são elaboradas, criando uma verdadeira "ideologia urbana" que será decisiva para a construção de formas sociais e culturais, lugar onde o cotidiano e o universal se reinventam.

Cinco tipos
Romero classifica os modelos históricos das cidades latino-americanas em cinco tipos que se sucedem: as cidades fidalgas; as cidades "criollas"; as cidades patrícias; as cidades burguesas e, finalmente, as cidades massificadas típicas do século 20. Essas estruturas se organizam sucessivamente em razão da classe social dominante: primeiro, os fidalgos (os donos de terras) tentam, na cidade, imitar ao máximo a vida da corte do colonizador. Sobretudo na América hispânica, a cidade se desenvolve em razão do comércio que gera as elites governantes da época dos processos de independência e, depois, a partir da segunda metade do século 19, das novas burguesias integradas e dependentes do capital internacional da época da industrialização. As bases teóricas do historiador argentino são sobretudo alemãs. Seus autores diletos, antes de Marx e Weber, foram Windelband, Rickert, Croce e Dilthey. Creio que essa base "culturalista" e historicista permite que o aproximemos de Sérgio Buarque de Holanda, formado na mesma tradição e com quem Romero guarda estimulantes similaridades. Como se sabe, Sérgio Buarque, em passagem famosa de "Raízes do Brasil", faz uma tipologia das cidades latino-americanas, contrapondo o racionalismo das cidades hispânicas ao caos "barroco" das cidades luso-brasileiras. A cidade hispânica era fundada sobre um conjunto ferrenho de prescrições que tinham como fundamento a crença na previsibilidade e na defesa. Para Romero, isso era uma herança que os colonizadores espanhóis traziam da experiência de choque com os muçulmanos na península ibérica. Do ponto de vista cultural, isso se traduziu em medo. Um medo terrível da possibilidade da mestiçagem e da aculturação.

Cidade racional
Assim, e essa é a reviravolta do argumento de Romero, a cidade hispânica "racional", no dizer de Sérgio Buarque, era militarizada e disciplinada mais para evitar a "mistura" do que para evitar as revoltas. Já as cidades que os portugueses criaram nos primeiros séculos da colonização se fundaram por princípios mais "pragmáticos", o que permitiu ao agrarismo senhorial perfazer um ciclo completo, no qual os senhores teriam aceito a formação de uma nova sociedade e, diz o autor, "de uma nova cultura". Aqui é impossível não pensar que o argentino se aproxima das idéias de Gilberto Freyre, sem entretanto compartilhar de seu culturalismo regressivo. O Brasil geralmente aparece no livro integrado, porém como exceção. Pois aqui, desde o início e até muito recentemente, o rural era o centro ideológico, e não a cidade. Essa proeminência do "campo" sobre a "cidade", do amor à vida rural das elites proprietárias no mundo luso-brasileiro, assinalou a diferença e permaneceu mais ou menos intacta até que as transformações externas, ou seja, as mudanças do capitalismo em fase de acelerada industrialização em fins do século 19, modificassem o quadro, instituindo uma sociedade progressivamente mais urbana e dependente da rotação do capital internacional, o mundo "mercantilista e burguês" que definitivamente incluía o Brasil como zona periférica -como Caio Prado Jr. mostrou algumas décadas antes e o historiador argentino repete.

Sérgio Buarque
Assim, nossa "rede de latifúndios" anti-urbana vai progressivamente -e com uma velocidade espantosa- se aproximando da "rede de cidades" que os espanhóis e "criollos" construíram depois de destruir a vida urbana do mundo pré-colombiano. Essa "dialética" de Romero pode muito bem ser comparada à famosa tipologia buarquiana do "ladrilhador" e do "aventureiro" caminhando para sua dissolução por meio daquilo que o historiador brasileiro via acontecer no processo de urbanização -que "mataria" pouco a pouco o "homem cordial", a grande criação do mundo rural, agregado, isolado e dependente.
Mas isso é apenas o começo. No final, este livro constitui uma grande e profunda história da América Latina escrita do ponto de vista de seu foco mais ativo. Uma história que se organiza a partir do comportamento e das ideologias gestadas nos campos de decisão urbanos.
O que o historiador pretende é elaborar esquemas válidos para compreender um grande processo e estabelecer uma periodização comum à situação colonial e pós-colonial do continente -isso por meio do princípio dos impactos comuns recebidos por todas as áreas que compõem o mundo das cidades e também as respostas que ela ofereceu a cada uma de suas crises. Quem ler verá: nós e nossas cidades somos parte da América Latina.


Francisco Alambert é professor de história da cultura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

América Latina - As Cidades e as Idéias
422 págs., R$ 50,00 de José Luis Romero. Tradução de Bella Josef. Editora UFRJ (av. Pasteur, 250, salas 100 e 107, CEP 22290-920, RJ, tel. 0/xx/21/2541-7946).



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