São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

"A Linha Que Nunca Termina", a ser lançado até o final deste mês, reúne artigos e depoimentos sobre a obra do poeta Paulo Leminski, que estaria fazendo 60 anos

O objeto verbal em estado puro

Luiz A. Novaes/Folha Imagem
O poeta Paulo Leminski (1944-89), autor de "Catatau"


Paulo Franchetti
especial para a Folha

Se estivesse vivo, Paulo Leminski teria completado, em agosto, 60 anos de idade. É esse o motivo explícito da publicação de "A Linha Que Nunca Termina - Pensando Paulo Leminski", volume de homenagem que contém artigos e depoimentos sobre o autor de "Catatau" bem como poemas a ele dedicados. Composto de 44 textos, um para cada ano de vida do poeta, o volume reúne 43 colaboradores, a maior parte na casa dos 30 e dos 40 anos de idade. Na apresentação, afirma-se que foram convidadas pessoas que "estavam, de algum modo, ligadas à obra do autor". Mas o recorte deve ser outro, porque não comparecem no livro alguns nomes fundamentais, como, por exemplo, Régis Bonvicino e Leyla Perrone-Moisés, largamente referidos ao longo dos textos. Tampouco comparecem, para só mencionar alguns nomes, Wilson Bueno, Bóris Schnaiderman, Décio Pignatari, Regina Silveira, Josely Vianna Baptista, Silvio Back, pessoas que, ligadas de uma forma ou outra à vida e à obra de Leminski, certamente enriqueceriam o volume do ponto de vista da crítica ou do depoimento. Seja pelo recorte dos colaboradores, seja por qualquer outra limitação, o certo é que o seu objetivo -segundo os organizadores, "lançar uma nova visão crítica sobre a trajetória artística de Leminski"- não se cumpre.

Comoventes, comovidos
Do ponto de vista crítico, dois dos bons momentos do livro não nasceram dessa vontade de homenagem, pois foram recolhidos de publicações anteriores: um breve texto de Frederico Barbosa, de 1990, e um de António Risério, de 1989. Outros momentos em que a leitura se faz com prazer se devem a Carlos Ávila, Delmo Montenegro, Ricardo Silvestrin e Reynaldo Damazio. Nos demais, o leitor apenas se vai deparar com uma série de textos anódinos ou francamente ruins, alguns comoventes, outros comovidos, mas nenhum de fato significativo para a fortuna crítica de Leminski. Nos depoimentos, destacam-se pelo menos dois textos: o assinado por Neuza Pinheiro, limpo e comovente na sua simplicidade desarmada; e o de Nelson de Oliveira, inventivo, elegante, o único convincente na reivindicação explícita da herança e da filiação leminskiana. Nos poemas, não há praticamente destaques. Exceto talvez, pela assinatura, o poema que Haroldo de Campos incluiu em "Crisantempo". Nos demais, o estilo de Leminski aparece quase sempre ostensivamente glosado, sem sustos nem novidade. Embora a glosa seja responsável pela palidez das homenagens poéticas, quando percorri pela segunda vez os ensaios cheguei a lamentar que ela não se estendesse ao discurso ensaístico ou analítico dos que o têm por guia e ideal. Porque a larga maioria dos artigos reunidos por Dick e Calixto neste volume não parece modelar-se ou inspirar-se na vivacidade nervosa e onívora da prosa de Leminski. Pelo contrário, a começar pelos dois longos textos do próprio Dick, a matriz da maioria dos ensaios é justamente o que eles mesmos proclamam como o antípoda e adversário contumaz do mestre: o discurso acadêmico.

Paródia involuntária
Talvez porque o objetivo seja uma espécie de "fazer justiça", a incorporação do estilo acadêmico e sua aplicação na forma de homenagem produz apenas uma paródia involuntária e algo tosca do discurso universitário, que se exibe no livro centrada em dois pólos de tensão: de um lado, o traço grosso do contextualismo historicista; de outro, o estilo tortuoso, "ensaístico", cuja fonte me parece remotamente benjaminiana.
A modulação entre esses extremos produz uma gama variada de trabalhos desinteressantes, da ecolalia de curto fôlego assinada por Cláudio Daniel aos vários trabalhos estilo fim-de-curso, dentre os quais se destaca, modelar, a primeira parte do assinado por Ademir Assunção.
Mas, se a leitura é, em geral, tediosa, há por certo um ponto ao menos de interesse na freqüentação do livro: o seu caráter de exemplo do ponto baixo em que se situa a média do discurso crítico brasileiro. Especialmente o praticado por escritores. Recusado, ao menos no nível do slogan, o "acadêmico", recusado também o exercício da crítica como atividade valorativa, nada resta senão patinar no já conhecido.
Nesse sentido, o livro corresponde a um movimento forte da crítica brasileira contemporânea: a substituição da reflexão conseqüente e da avaliação crítica pela simples ocupação do espaço na mídia ou na estante da livraria. Assim, tanto faz se o texto é anódino, simplesmente vago, ou se ainda tropeça nos conceitos como na sintaxe: uma vez demitido o julgamento ou a consideração efetivamente crítica, a ocupação do espaço público é o único ato que de fato importa.
Da leitura, entretanto, é possível concluir algo de interesse para a história da recepção de Leminski. Primeiro, que a sua prosa começa a receber mais atenção ou a ser mais louvada do que a sua poesia. Segundo, que segue firme a interpretação do sentido maior da sua obra como uma via de compromisso entre a fabricação objetiva do poema, sua apresentação como puro objeto verbal, e o apelo à vida como poesia e à poesia como vida. Uma espécie de terceira baliza, entre o construtivismo concretista e o confessionalismo da "poesia marginal".
Mas a transição do foco de interesse da poesia para a prosa não se faz, ao longo do volume, por meio da análise dos limites atuais da poesia de Leminski. Tampouco se faz com novas abordagens críticas que permitam compreender, além das reafirmações da filiação joyciana e do radical experimentalismo, o que hoje, nessa prosa, atrai mais o leitor. Faz-se, isso sim, da mesma forma que o livro: ao sabor de eleições de gosto e de uso, como na moda. E o que parece estar entrando agora na moda, a julgar por esta homenagem, é a louvação do caráter vanguardista da prosa, e não mais da poesia, de Paulo Leminski.


Paulo Franchetti é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outros, "Nostalgia, Exílio e Melancolia - Leituras de Camilo Pessanha" (Edusp).

A Linha Que Nunca Termina
Nº de págs. e preço não definidos Fabiano Calixto e André Dick (orgs.). Ed. Lamparina (r. Joaquim Silva, 98, 2º andar, CEP 20241-110, RJ, tel. 0/xx/21/2232-1768).



Texto Anterior: + trechos
Próximo Texto: + réplica: Alguns descompassos da razão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.