São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS...
Roberto Schwarz desafia o leitor nos 23 textos de "Sequências Brasileiras"
As sutilezas do crítico

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Não é uma tarefa fácil. Dele se pode dizer o que Adorno escreveu sobre Proust: é alguém que jamais comete a deselegância de deixar o leitor imaginar que seja mais inteligente do que ele. Na sequência de "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (1990) e "Duas Meninas" (1997), essas "Sequências Brasileiras" confirmam a estatura de Roberto Schwarz, uma das vozes centrais na crítica brasileira, e desafiam seus críticos a concordar e discordar dele -duas opções necessárias para se pensar o estado das coisas.
Os 23 textos variam muito de tamanho, formato e ambição. Reunidos aqui estão desde um modesto texto de orelha (para a poesia de Francisco Alvim), uma conversa sobre "Duas Meninas" e duas arguições de tese (de Otília Arantes e Iná Camargo Costa), até um ensaio longo, até agora inédito, sobre Brecht, um debate aprofundado sobre a "Dialética da Colonização" de Alfredo Bosi e um conjunto de estudos sobre Antonio Candido, homenageado por Schwarz como modelo do que pode ser um crítico brasileiro, com peso igual nas duas palavras: brasileiro e crítico.
O "programa de desprovincianização" e clarificação da cena cultural, exercido com tamanho sucesso pelo autor da "Formação da Literatura Brasileira", serve a Schwarz de exemplo também do que pode ser uma conexão ativa entre a vida universitária e o destino da sociedade. A "inserção múltipla e muito espalhada do intelectual" já foi, outrora, um sinal de saúde; hoje em dia tende a significar a capitulação do estudioso diante das indigências da academia, de um lado, e o canto das sereias do mercado, de outro. Mas o "valor de conhecimento das leituras" tem ainda, nos escritos do precursor, tanto quanto nos desse seu comentador e continuador, uma prova de relevância.
"Desapequenar" a intelectualidade; compor uma crítica nacional sem descambar no "pitoresquismo" ou na "patriotada"; elucidar, na literatura, "a especificidade das relações sociais brasileiras": expressões como essas ressoam, ao longo do livro, como um mandato. Não é preciso se restringir ao Brasil para ser um crítico brasileiro, escreve ele, o que tem de ser lido como uma palavra de cautela: o livro, afinal, só trata de questões diretamente ligadas ao nosso país. Há uma tensão, nas entrelinhas, entre a disponibilidade para pensar problemáticas globais incontornáveis para um estudioso do capital e do "conceito materialista da tradição" e o "propósito militante de ampliar a compreensão da atualidade" do Brasil. Essa tensão reflete, afinal, a ambivalência entre os dois pólos, que se multiplica em paradoxos e contradições a cada esquina do argumento.
Num ensaio sobre o "Seminário de Marx", que relembra, com o filtro de 30 anos, os propósitos de um grupo depois muito influente de professores paulistas, no qual se inicia a carreira de Schwarz, ao lado de outros, como o filósofo José Arthur Giannotti, o historiador Fernando Novais e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, define-se sinteticamente o projeto de entender "a funcionalidade e a crise" das formas de trabalho, das relações persistentes de clientelismo, das condições "irracionais" da classe dominante e da "inserção subordinada da nossa economia" no cenário mundial. As anomalias brasileiras, onde o gosto pela civilização pode se nutrir de um substrato bárbaro e a herança colonial é renovada a cada etapa, requerem, tanto do crítico literário quanto do historiador, um olho atento para a peculiaridade local. "Elucidar as regressões de que se compõe o progresso": essa é uma frase que resume, com cadência típica, o interesse vital do ensaísta.
Ninguém tem o olho mais fino que ele para esse tipo de relação. Ativistas históricos do comunismo acabam se tornando suas vítimas; certa "superioridade crítica" transforma-se em "ilusão" à luz do que se aprendeu sobre o stalinismo; Brecht ensina a "rir do capital com base na poesia, e da poesia com base no capital"; as descobertas da arte moderna anticonformista servem hoje à publicidade e ao idioma de autolegitimação da TV; etc. etc. Seus estudos sobre Machado de Assis já nos ensinavam a ler, na candura de um narrador como Dom Casmurro, a reprodução involuntária (para ele) de um sistema opressivo.
Seguindo o preceito de Marx, de que "a forma não tem valor se não for a forma do conteúdo", Roberto Schwarz não se cansa de defender a análise detalhada dos textos, em sua condição literária, sem o que o "valor de conhecimento da leitura" aproxima-se mais da doutrina do que da interpretação. Que ele nem sempre cumpra a própria receita pode ser mais uma consequência das circunstâncias em que esses textos foram escritos (a maior parte atendendo a convites para congressos, apresentações ou resenhas rápidas) do que uma frustração estrutural. Mas a frustração é real para o leitor, que tem o direito de esperar mais de um ensaísta tão agudo do que os comentários cursivos sobre "Estorvo", de Chico Buarque, ou lembranças de Cacaso ou a empolgação não inteiramente convincente de seus elogios a "Cidade de Deus", de Paulo Lins. Era de supor que a terceira e maior seção do livro, na qual estão coletadas essas leituras, fosse um clímax, se não uma apoteose do método; mas o repertório literário é pequeno e magro demais para os dentes da escrita do autor.
Parte disso se explica, sem dúvida, pelo interesse militante de Schwarz na cena brasileira. Tudo somado, seu interesse pelo Brasil talvez seja maior do que pela literatura; de qualquer modo, não quer pensar a literatura sem pensar sobre o Brasil. Talvez isso explique também a parcialidade relativamente grosseira de alguns pressupostos. Seus ataques repetidos aos críticos formalistas fazem uma caricatura tão injusta, afinal, quanto a que os "formalistas" fazem do Roberto Schwarz da "socioliteratura". Em seus preceitos básicos, estão provavelmente todos de acordo: a literatura tem relação com o mundo social e essa relação precisa passar pelas elaborações da forma, com todas as complexidades que vão surgindo caso a caso.
Mas não há por que afirmar, como um princípio, que "a elaboração artística só tem relevância se sua dinâmica interna tem a ver com a dinâmica social". Ou postar-se decididamente contra "a aplicação direta de conceituações estrangeiras", que "esterilizou uma fatia assustadora de nosso ensaísmo" (a censura é mais ampla: qualquer "aplicação direta" tende a ser inadequada; e mesmo as brasileiras também podem ser "idéias fora de lugar").
Pode-se criticar, então, essa irritação de Schwarz com o que, na evidência do texto, ele mesmo não leu com afinco, ou pelo menos não com interesse; e pode-se lamentar a falta de um leque maior de opções a partir das quais lançar suas perguntas. Mas uma resposta, por outro lado, só poderia vir de outras vozes. A eleição do capital como chave de explanação é o ponto de partida inequívoco das idéias de Roberto Schwarz, que se realizam num horizonte de compreensão histórica da arte. Essa é a luz que dá cor e sombra a uma floresta de sutilezas; e sentenças como as citadas acima não são muito mais, afinal, que acidentes destemperados num livro de prosa de dar inveja. Sua luta para "resistir à liquidação da dialética" tem nesses textos um aval. Talvez nenhum outro crítico brasileiro saiba como ele iluminar uma frase de implicações e trazer à tona o seu esqueleto de conceitos e arbitrariedades, tanto retóricas quanto sociais.
Quando fala da "formação" do Brasil, que não vai se formar; quando critica uma "cidadania do mundo", que não existe; quando denuncia o "universalismo infuso da teoria literária", avesso às particularidades; quando se inflama contra a recriação de "outras modalidades de atraso" na sociedade brasileira sua imaginação se acende e ele enxerga mais do que qualquer um de nós. A suspeita de que as críticas à sua posição já tenham sido pensadas por ele mesmo, e devidamente deixadas de lado, só fará cada leitor se esforçar, como puder, para pagar o autor na mesma moeda.
São raros os livros de crítica brasileira que oferecem um desafio dessa ordem, tanto mais admirável quando se pensa no caráter quase casual da coletânea. O mínimo que se pode dizer de Roberto Schwarz é que seus escritos são de interesse para qualquer um que queira refletir sobre o país. É difícil prever que sequência não podem ter as "Sequências Brasileiras"; mas não é tão difícil imaginar que esse livro -em que se cruzam uma crítica do capital, uma interpretação da sociedade e um estudo das formas literárias- venha a se tornar um ponto de referência de onde pensar a literatura e o Brasil.



A OBRA
Sequências Brasileiras - Roberto Schwarz. Companhia das Letras (r. Visconde de Pirajá, 547, sala 702, CEP 22415-900, RJ, 0/xx/ 21/239-9492). 250 págs. R$ 24,00.



Arthur Nestrovski é professor de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música" (Ática), entre outros.


Texto Anterior: Adaptações de Kubrick
Próximo Texto: Marcelo Coelho: Uma desistência maravilhosa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.