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LIVROS...
Roberto Schwarz desafia o leitor nos 23 textos de "Sequências Brasileiras"
As sutilezas do crítico
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Não é uma tarefa fácil. Dele se
pode dizer o que Adorno escreveu
sobre Proust: é alguém que jamais
comete a deselegância de deixar o
leitor imaginar que seja mais inteligente do que ele. Na sequência
de "Um Mestre na Periferia do
Capitalismo" (1990) e "Duas Meninas" (1997), essas "Sequências
Brasileiras" confirmam a estatura
de Roberto Schwarz, uma das vozes centrais na crítica brasileira, e
desafiam seus críticos a concordar e discordar dele -duas opções necessárias para se pensar o
estado das coisas.
Os 23 textos variam muito de tamanho, formato e ambição. Reunidos aqui estão desde um modesto texto de orelha (para a poesia de Francisco Alvim), uma conversa sobre "Duas Meninas" e
duas arguições de tese (de Otília
Arantes e Iná Camargo Costa), até
um ensaio longo, até agora inédito, sobre Brecht, um debate aprofundado sobre a "Dialética da Colonização" de Alfredo Bosi e um
conjunto de estudos sobre Antonio Candido, homenageado por
Schwarz como modelo do que pode ser um crítico brasileiro, com
peso igual nas duas palavras: brasileiro e crítico.
O "programa de desprovincianização" e clarificação da cena
cultural, exercido com tamanho
sucesso pelo autor da "Formação
da Literatura Brasileira", serve a
Schwarz de exemplo também do
que pode ser uma conexão ativa
entre a vida universitária e o destino da sociedade. A "inserção múltipla e muito espalhada do intelectual" já foi, outrora, um sinal de
saúde; hoje em dia tende a significar a capitulação do estudioso
diante das indigências da academia, de um lado, e o canto das sereias do mercado, de outro. Mas o
"valor de conhecimento das leituras" tem ainda, nos escritos do
precursor, tanto quanto nos desse
seu comentador e continuador,
uma prova de relevância.
"Desapequenar" a intelectualidade; compor uma crítica nacional sem descambar no "pitoresquismo" ou na "patriotada"; elucidar, na literatura, "a especificidade das relações sociais brasileiras": expressões como essas ressoam, ao longo do livro, como um
mandato. Não é preciso se restringir ao Brasil para ser um crítico
brasileiro, escreve ele, o que tem
de ser lido como uma palavra de
cautela: o livro, afinal, só trata de
questões diretamente ligadas ao
nosso país. Há uma tensão, nas
entrelinhas, entre a disponibilidade para pensar problemáticas globais incontornáveis para um estudioso do capital e do "conceito
materialista da tradição" e o "propósito militante de ampliar a
compreensão da atualidade" do
Brasil. Essa tensão reflete, afinal, a
ambivalência entre os dois pólos,
que se multiplica em paradoxos e
contradições a cada esquina do
argumento.
Num ensaio sobre o "Seminário
de Marx", que relembra, com o
filtro de 30 anos, os propósitos de
um grupo depois muito influente
de professores paulistas, no qual
se inicia a carreira de Schwarz, ao
lado de outros, como o filósofo
José Arthur Giannotti, o historiador Fernando Novais e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso,
define-se sinteticamente o projeto
de entender "a funcionalidade e a
crise" das formas de trabalho, das
relações persistentes de clientelismo, das condições "irracionais"
da classe dominante e da "inserção subordinada da nossa economia" no cenário mundial. As anomalias brasileiras, onde o gosto
pela civilização pode se nutrir de
um substrato bárbaro e a herança
colonial é renovada a cada etapa,
requerem, tanto do crítico literário quanto do historiador, um
olho atento para a peculiaridade
local. "Elucidar as regressões de
que se compõe o progresso": essa
é uma frase que resume, com cadência típica, o interesse vital do
ensaísta.
Ninguém tem o olho mais fino
que ele para esse tipo de relação.
Ativistas históricos do comunismo acabam se tornando suas vítimas; certa "superioridade crítica"
transforma-se em "ilusão" à luz
do que se aprendeu sobre o stalinismo; Brecht ensina a "rir do capital com base na poesia, e da poesia com base no capital"; as descobertas da arte moderna anticonformista servem hoje à publicidade e ao idioma de autolegitimação
da TV; etc. etc. Seus estudos sobre
Machado de Assis já nos ensinavam a ler, na candura de um narrador como Dom Casmurro, a reprodução involuntária (para ele)
de um sistema opressivo.
Seguindo o preceito de Marx, de
que "a forma não tem valor se não
for a forma do conteúdo", Roberto Schwarz não se cansa de defender a análise detalhada dos textos,
em sua condição literária, sem o
que o "valor de conhecimento da
leitura" aproxima-se mais da
doutrina do que da interpretação.
Que ele nem sempre cumpra a
própria receita pode ser mais uma
consequência das circunstâncias
em que esses textos foram escritos
(a maior parte atendendo a convites para congressos, apresentações ou resenhas rápidas) do que
uma frustração estrutural. Mas a
frustração é
real para o leitor, que tem o
direito de esperar mais de um
ensaísta tão
agudo do que
os comentários
cursivos sobre
"Estorvo", de
Chico Buarque, ou lembranças de Cacaso ou a empolgação não inteiramente convincente
de seus elogios a "Cidade de
Deus", de Paulo Lins. Era de supor que a terceira e maior seção
do livro, na qual estão coletadas
essas leituras, fosse um clímax, se
não uma apoteose do método;
mas o repertório literário é pequeno e magro demais para os
dentes da escrita do autor.
Parte disso se explica, sem dúvida, pelo interesse militante de
Schwarz na cena brasileira. Tudo
somado, seu interesse pelo Brasil
talvez seja maior do que pela literatura; de qualquer modo, não
quer pensar a literatura sem pensar sobre o Brasil. Talvez isso explique também a parcialidade relativamente grosseira de alguns
pressupostos. Seus ataques repetidos aos críticos formalistas fazem uma caricatura tão injusta,
afinal, quanto a que os "formalistas" fazem do
Roberto
Schwarz da
"socioliteratura". Em seus
preceitos básicos, estão provavelmente todos de acordo:
a literatura tem
relação com o
mundo social e
essa relação precisa passar pelas
elaborações da forma, com todas
as complexidades que vão surgindo caso a caso.
Mas não há por que afirmar, como um princípio, que "a elaboração artística só tem relevância se
sua dinâmica interna tem a ver
com a dinâmica social". Ou postar-se decididamente contra "a
aplicação direta de conceituações
estrangeiras", que "esterilizou
uma fatia assustadora de nosso
ensaísmo" (a censura é mais ampla: qualquer "aplicação direta"
tende a ser inadequada; e mesmo
as brasileiras também podem ser
"idéias fora de lugar").
Pode-se criticar, então, essa irritação de Schwarz com o que, na
evidência do texto, ele mesmo
não leu com afinco, ou pelo menos não com interesse; e pode-se
lamentar a falta de um leque
maior de opções a partir das quais
lançar suas perguntas. Mas uma
resposta, por outro lado, só poderia vir de outras vozes. A eleição
do capital como chave de explanação é o ponto de partida inequívoco das idéias de Roberto
Schwarz, que se realizam num horizonte de compreensão histórica
da arte. Essa é a luz que dá cor e
sombra a uma floresta de sutilezas; e sentenças como as citadas
acima não são muito mais, afinal,
que acidentes destemperados
num livro de prosa de dar inveja.
Sua luta para "resistir à liquidação
da dialética" tem nesses textos um
aval. Talvez nenhum outro crítico
brasileiro saiba como ele iluminar
uma frase de implicações e trazer
à tona o seu esqueleto de conceitos e arbitrariedades, tanto retóricas quanto sociais.
Quando fala da "formação" do
Brasil, que não vai se formar;
quando critica uma "cidadania do
mundo", que não existe; quando
denuncia o "universalismo infuso
da teoria literária", avesso às particularidades; quando se inflama
contra a recriação de "outras modalidades de atraso" na sociedade
brasileira sua imaginação se acende e ele enxerga mais do que qualquer um de nós. A suspeita de que
as críticas à sua posição já tenham
sido pensadas por ele mesmo, e
devidamente deixadas de lado, só
fará cada leitor se esforçar, como
puder, para pagar o autor na mesma moeda.
São raros os livros de crítica brasileira que oferecem um desafio
dessa ordem, tanto mais admirável quando se pensa no caráter
quase casual da coletânea. O mínimo que se pode dizer de Roberto Schwarz é que seus escritos são
de interesse para qualquer um
que queira refletir sobre o país. É
difícil prever que sequência não
podem ter as "Sequências Brasileiras"; mas não é tão difícil imaginar que esse livro -em que se
cruzam uma crítica do capital,
uma interpretação da sociedade e
um estudo das formas literárias- venha a se tornar um ponto de referência de onde pensar a
literatura e o Brasil.
A OBRA
Sequências Brasileiras -
Roberto Schwarz. Companhia das
Letras (r. Visconde de Pirajá, 547,
sala 702, CEP 22415-900, RJ, 0/xx/
21/239-9492). 250 págs. R$ 24,00.
Arthur Nestrovski é professor de literatura
na pós-graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e autor de "Ironias da
Modernidade - Ensaios sobre Literatura e
Música" (Ática), entre outros.
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