São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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LIVROS
O escritor Almeida Faria comenta o estado atual das letras portuguesas e fala sobre sua nova obra
A sabedoria literária

JOÃO ALMINO
especial para a Folha

O escritor português Almeida Faria é certeiro no uso da palavra, seja nos romances retrabalhados a ponto de já não se saber qual terá sido o manuscrito original, seja nas suas recentes peças de teatro, escritas, segundo diz, com grande rapidez e facilidade.
Aos 56 anos, esse alentejano de Montemor-o-Novo, que veio estudar em Lisboa aos 16 anos, mais tarde cursou filosofia, matéria que ensina. Inovou as letras portuguesas com o romance "A Paixão" (Nova Fronteira), uma prosa poética de 1965 traduzida para vários idiomas. Já havia lançado "Rumor Branco" (Bertrand Brasil) e é ainda autor, entre outros, de "Lusitânia" (Bertrand) e "Cavaleiro Andante" (Nova Fronteira, 1983). Recentemente retornou a "A Paixão" -a história se passa numa sexta-feira santa- para fazer-lhe uma adaptação teatral. O ceticismo, o humor e a fina ironia do homem Almeida Faria passam para sua escrita, como fica claro no irreverente romance "O Conquistador" (Rocco), de 1990.
"A Reviravolta", publicado no último mês de abril e livro sobre o qual ele fala na entrevista a seguir, é, nas suas próprias palavras, "uma tragédia portuguesa dos tempos revolucionários".

Folha - Os dois últimos livros que você publicou, "Vozes da Paixão" e, agora, "A Reviravolta", são obras de teatro, com uma particularidade interessante: são em verso. Prosa ou poesia?
Almeida Faria -
O tempo, crítico infalível, decidirá se este teatro é prosa ou poesia.

Folha - O seu livro mais reconhecido em termos mundiais, "A Paixão", tem sido corretamente considerado uma prosa poética. Queria saber o seguinte: você acha que faz sentido estabelecer uma fronteira rígida entre prosa e poesia?
Faria -
Essa fronteira nunca foi rígida e mudou muitíssimo com a "Tabacaria" do Álvaro de Campos, com a "pedra no meio do caminho", com tantos outros assaltos à poesia áulica.

Folha - Li em algum lugar -não sei se você mesmo disse isso- que há uma influência de João Cabral em "A Reviravolta". Algo mais do que a própria idéia da peça teatral em verso, de que é exemplo "Morte e Vida Severina"?
Faria -
João Cabral é dos meus poetas preferidos. Desde os anos 60, quando veio aqui assistir à "Morte e Vida" do Chico Buarque, tenho dele uma dedicatória rimada que em duas linhas ironiza sobre a sua "fria" poesia: "A Almeida Faria/ fiel desta fria poesia". Mas não posso falar em influência, nem a modéstia dos meus versos sofre qualquer paralelo com os versos do mestre.

Folha - Quão política é sua literatura sobre o 25 de abril? Pergunto isso a propósito de "A Reviravolta", porque me parece que seu trabalho em geral não pretende ser explicitamente político, pelo menos não naquele sentido da literatura engajada.
Faria -
A minha ficção sempre teve certa dimensão política, sobretudo durante a ditadura, embora só nas entrelinhas. Depois do fim da censura, o desacordo ou a revolta de certas personagens contra a servidão e o obscurantismo tornaram-se mais explícitos. Da minha "Tetralogia Lusitana", os dois primeiros romances situam-se nos tempos imemoriais da ditadura, os seguintes no agitado período revolucionário de abril e pós-abril. Mas não se trata de literatura engajada, até porque naqueles meus livros se contrapõem diversos pontos de vista.

Folha - Houve uma época em que se depositava muita esperança na literatura como forma de entender o mundo e, por meio de sua crítica, modificá-lo. Com a crise das utopias, parece que já não é mais assim. Mas, para quem imagina que a literatura possa ser mais do que unicamente entretenimento ou um produto do mercado, para que ou por que se escreve atualmente?
Faria -
A verdadeira razão para escrever é o prazer de quem gosta de escrever. Mas a grande literatura faz pensar e, fazendo pensar, pode dar alguma sabedoria a alguns dos seus leitores; e assim vai mudando o mundo, pouco a pouco. A pseudoliteratura, a mera merda de consumo, cada vez será mais numerosa e pesará mais na economia de mercado. Puro entretenimento, depressa esquece e passa. As obras que perduram continuarão a ser um processo de conhecimento, uma revelação da alma humana aos outros e a nós mesmos.

Folha - Agora uma pergunta ao professor de filosofia que você também é: há, para você, uma relação entre filosofia e literatura? Uma ajuda a outra?
Faria -
No meu caso, a filosofia não ajuda a literatura, pelo contrário, rouba-lhe tempo e torna-lhe a vida mais difícil.

Folha - Como assim?
Faria -
Dá-me prazer ler pensadores que simultaneamente são grandes escritores. O pior é ter que ler a maioria dos trabalhos estudantis. Fico doente e deprimido, pergunto-me para que ensinar filosofia a quem precisava começar por aprender português. Mas na faculdade é tarde demais, e não vejo saída.

Folha - Já falamos de João Cabral. Que outro ou outros autores brasileiros, se é que há, poderiam ser destacados como referências para você?
Faria -
Guimarães Rosa, o poeta da prosa.

Folha - E, em Portugal, qual é o estado da literatura hoje em dia?
Faria -
A lusa literatura está de boa saúde e recomenda-se.

Folha - Quem são, para você, os grandes escritores portugueses do século?
Faria -
Por causa das suscetibilidades, não cito nenhum dos que, como nós, respiram. Dos que já não respiram, mas não estão menos vivos, para mim os maiores são Pessoa e alguns dos seus heterônimos. Há outros excelentes, infelizmente menos conhecidos.

Folha - Por exemplo?
Faria -
Por exemplo? Olhe, Raúl Brandão. Um autêntico criador, sombrio e luminoso, dramaturgo de humor trágico, minucioso memorialista e ficcionista nada convencional. Bem merecia ser editado também no Brasil.

Folha - Já tem algum projeto para o próximo livro?
Faria -
Mais que projeto, tenho um romance parado por falta de tempo e de título que me agrade. Espero terminá-lo em breve, nas férias, única altura em que trabalho o dia inteiro.

Folha - Quer revelar o título, mesmo provisório?
Faria -
Sou supersticioso, desculpe. Só lhe posso dizer que se passa quase todo no Brasil e que termina em Olinda.


João Almino é escritor e diplomata, autor dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo".

Onde encomendar:
O livro "A Reviravolta", de Almeida Faria, pode ser encomendado na Livraria Portugal (r. Genebra, 165, tel. 0/xx/11/ 3104-1748, SP).


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