São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Rimbaud amplificado

Um dos principais poetas de Portugal, Herberto Helder visa a destruição do sentido em "Ou o Poema Contínuo"

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Há cerca de 40 anos, quando a apreensão de estruturas cerradas, visualizáveis por um modelo gráfico, estava em voga, Umberto Eco publicava dois livros -"Obra Aberta" (1962) e "A Estrutura Ausente" (1968, ambos pela ed. Perspectiva), que tiveram enorme circulação. A obra do poeta português Herberto Helder, "Ou o Poema Contínuo" (A Girafa), poderá ser encarada como a radicalização do projeto do ensaísta italiano. Em vez de configurar uma estrutura "aberta" ou "ausente", o seu propósito é transgredir toda a estruturação, impedir que dela sequer se cogite.
Vários versos o apontam: "Folheie as mãos nas plainas enquanto desusa a gramática da madeira" ("Do Mundo", 3); "esta ciência é um movimento das mãos contra o espelho" ("Exemplos", 3); "Pensamos que interessa varrer tudo muito bem" ("Exemplos", 2); "não me enxameiem a cabeça com as aspas coruscantes/ uma nostalgia dourada do "dicionário" que eu podia" ("Antropofagias", "Texto 8").

Semântica aleatória
Trata-se de um processo consciente de destruição pelo qual intenta descobrir "Um poro monstruoso que respira o mundo" ("Flash").
Como o poeta o empreendeu? Por meio de uma organização sintática que se mantém impecável, enquanto a semântica tramada pelas frases se converte em aleatória. O resultado é um Rimbaud elevado à enésima potência. Não duvido que a resolução agrade a muitos leitores. Infelizmente, não pertenço a sua grei. Isso não me impede de apreciar um de seus primeiros poemas, "O Amor em Visita", cuja primeira estrofe transcrevo: "Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite. / Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. / Seus ombros beijarei, a pedra pequena / do sorriso de um momento. / Mulher quase incriada, mas com a gravidade / De dois seios, com o peso lúbrico e triste / Da boca. Seus ombros beijarei". O poema pertence à família do "Cântico dos Cânticos", de que se houvesse excluído a possibilidade de submeter-se a alguma alegoria domesticadora. Realizado, o poema nos permite ver melhor o que pretende a destruição das sentenças semanticamente encadeadas. Di-lo tanto outra passagem do mesmo "O Amor em Visita" -"Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra/ a carne transcendente. E em ti/ principiam o mar e o mundo"- como mínimo trecho de "O Poema", 7: "Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,/ o rodopio das rosáceas do meu/ poema batido pela revelação das coisas".

Imagem do terror
A destruição do visível e aparente busca fazer com que a palavra traga a formulação da cena inaugural -o mundo antes de cristalizar-se em nomes condutores de estreita semântica. Como, porém, entre o inaugural a que o poeta procura descer e a cena que se oferece aos homens há um imenso hiato, um dos resultados é a imagem do terror que passa a cercá-lo: "Por um abraço do sangue eu estava/ condenado/ ao extravio mortal. Era um dom que me fundia/ à substância primária/ do terror". ("Flash").
Mas, se a resultante fosse sempre terrorífica, a descida seria sempre unívoca. "O Selo" mostra o contrário e chega a insinuar uma curiosa dialética negativa: se a dicção do poeta muitas vezes lembra um andamento bíblico, esta, de sua parte, parece assumir um tom de rebelião e revolta.
Leiam-se seguidos os dois versos: "Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?/ O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante" ("Os Selos"). Sucede que a transcrição falseia o poema, por apresentar como contíguos os versos que são o primeiro e o vigésimo segundo. Entre um e outro, a semântica aleatória bloqueia a possibilidade do sentido que lhe demos.
O "eu falo o idioma demoníaco" (verso dez) ainda insinua a dialética negativa ao mesmo tempo em que as imagens e cenas que os demais versos intermediários multiplicam criam caminhos desconexos. E isso porque só consideramos a primeira página de um poema que se estende por 26 e um pouco.
Talvez seja a própria extensão dos poemas e do livro (536 págs.) que ajude a prejudicar a estratégia destrutiva das aparências. A julgar por minha experiência, a semântica aleatória das sentenças ainda admitiria uma recepção favorável se seu andamento não fosse tão alongado. A repetição invariável do recurso cansa. A semântica deslastrada tem como conseqüência que o leitor ou se entedia em procurar o sentido que lhe escapa ou, se for mais atento, começa a verificar a repetição de termos como "sangue" e "morte". A abundância amazônica dos versos e poemas parece exigir que o receptor invente uma grade decodificadora. Não seria esse um processo arbitrário?
Eliminando-o, restam passagens excelentes, mas não poemas inteiros. Como já no "Prefácio": "- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,/ as casas encontram seu inocente jeito de durar contra/ a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras".

Mundo durável
Escavar sob a treva das palavras implicaria encontrar um mundo durável, onde coabitam o terrível e o maravilhoso. Poder-se-ia mesmo pensar em uma arqueologia "reta", isto é, do começo anterior à "treva das palavras", vindo a seu nascimento, até o momento "histórico" do desgaste: "Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada/ pelas vozes./ E enquanto dorme o leite, a minha casa/ pousa no silêncio e arde pouco a pouco. No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -/ e as palavras nascem./ Límpidas, amargas" ("As Musas Cegas", 2). O primeiro qualificativo -"límpidas"- depois se converte em seu contrário.
Mas a tentativa de extrair sentido não funciona ante a constância do aleatório semântico. A coerência do poeta tem por conseqüência que se destaquem trechos e o mais se incorpore à obscuridade do mundo não inaugural. Isso quando não nos deparamos com um poema como "Um Deus Lisérgico", em que o caos semântico é absoluto. O caos então se confunde com o verbalmente nulo.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). É autor de "História, Ficção, Literatura" (Companhia das Letras).

OU O POEMA CONTÍNUO
Autor: Herberto Helder
Editora: A Girafa (tel. 0/xx/11/ 3258-8878)
Quanto: R$ 49 (536 págs.)



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