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Rimbaud amplificado
Um dos principais poetas de Portugal, Herberto Helder visa a destruição do sentido em "Ou o Poema Contínuo"
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Há cerca de 40 anos,
quando a apreensão de estruturas
cerradas, visualizáveis por um modelo gráfico, estava em voga, Umberto Eco publicava dois livros
-"Obra Aberta" (1962) e "A Estrutura Ausente" (1968, ambos
pela ed. Perspectiva), que tiveram enorme circulação.
A obra do poeta português
Herberto Helder, "Ou o Poema
Contínuo" (A Girafa), poderá
ser encarada como a radicalização do projeto do ensaísta italiano. Em vez de configurar
uma estrutura "aberta" ou "ausente", o seu propósito é transgredir toda a estruturação, impedir que dela sequer se cogite.
Vários versos o apontam:
"Folheie as mãos nas plainas
enquanto desusa a gramática
da madeira" ("Do Mundo", 3);
"esta ciência é um movimento
das mãos contra o espelho"
("Exemplos", 3); "Pensamos
que interessa varrer tudo muito bem" ("Exemplos", 2); "não
me enxameiem a cabeça com
as aspas coruscantes/ uma nostalgia dourada do "dicionário"
que eu podia" ("Antropofagias", "Texto 8").
Semântica aleatória
Trata-se de um processo
consciente de destruição pelo
qual intenta descobrir "Um poro monstruoso que respira o
mundo" ("Flash").
Como o poeta o empreendeu? Por meio de uma organização sintática que se mantém
impecável, enquanto a semântica tramada pelas frases se
converte em aleatória. O resultado é um Rimbaud elevado à
enésima potência. Não duvido
que a resolução agrade a muitos
leitores. Infelizmente, não pertenço a sua grei. Isso não me
impede de apreciar um de seus
primeiros poemas, "O Amor
em Visita", cuja primeira estrofe transcrevo:
"Dai-me uma jovem mulher
com sua harpa de sombra / e
seu arbusto de sangue. Com ela
/ encantarei a noite. / Dai-me
uma folha viva de erva, uma
mulher. / Seus ombros beijarei,
a pedra pequena / do sorriso de
um momento. / Mulher quase
incriada, mas com a gravidade /
De dois seios, com o peso lúbrico e triste / Da boca. Seus ombros beijarei".
O poema pertence à família
do "Cântico dos Cânticos", de
que se houvesse excluído a possibilidade de submeter-se a alguma alegoria domesticadora.
Realizado, o poema nos permite ver melhor o que pretende
a destruição das sentenças semanticamente encadeadas.
Di-lo tanto outra passagem
do mesmo "O Amor em Visita"
-"Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra/ a
carne transcendente. E em ti/
principiam o mar e o mundo"-
como mínimo trecho de "O
Poema", 7: "Escuto um pouco a
medo o ruído das gárgulas,/ o
rodopio das rosáceas do meu/
poema batido pela revelação
das coisas".
Imagem do terror
A destruição do visível e aparente busca fazer com que a palavra traga a formulação da cena inaugural -o mundo antes
de cristalizar-se em nomes
condutores de estreita semântica. Como, porém, entre o
inaugural a que o poeta procura
descer e a cena que se oferece
aos homens há um imenso hiato, um dos resultados é a imagem do terror que passa a cercá-lo: "Por um abraço do sangue eu estava/ condenado/ ao
extravio mortal. Era um dom
que me fundia/ à substância
primária/ do terror". ("Flash").
Mas, se a resultante fosse
sempre terrorífica, a descida
seria sempre unívoca.
"O Selo" mostra o contrário e
chega a insinuar uma curiosa
dialética negativa: se a dicção
do poeta muitas vezes lembra
um andamento bíblico, esta, de
sua parte, parece assumir um
tom de rebelião e revolta.
Leiam-se seguidos os dois
versos: "Será que Deus não
consegue compreender a linguagem dos artesãos?/ O caos
nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante"
("Os Selos").
Sucede que a transcrição falseia o poema, por apresentar
como contíguos os versos que
são o primeiro e o vigésimo segundo. Entre um e outro, a semântica aleatória bloqueia a
possibilidade do sentido que
lhe demos.
O "eu falo o idioma demoníaco" (verso dez) ainda insinua a
dialética negativa ao mesmo
tempo em que as imagens e cenas que os demais versos intermediários multiplicam criam
caminhos desconexos. E isso
porque só consideramos a primeira página de um poema que
se estende por 26 e um pouco.
Talvez seja a própria extensão dos poemas e do livro (536
págs.) que ajude a prejudicar a
estratégia destrutiva das aparências. A julgar por minha experiência, a semântica aleatória das sentenças ainda admitiria uma recepção favorável se
seu andamento não fosse tão
alongado.
A repetição invariável do recurso cansa. A semântica deslastrada tem como conseqüência que o leitor ou se entedia em
procurar o sentido que lhe escapa ou, se for mais atento, começa a verificar a repetição de
termos como "sangue" e "morte". A abundância amazônica
dos versos e poemas parece exigir que o receptor invente uma
grade decodificadora. Não seria
esse um processo arbitrário?
Eliminando-o, restam passagens excelentes, mas não poemas inteiros. Como já no "Prefácio": "- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,/ as
casas encontram seu inocente
jeito de durar contra/ a boca
subtil rodeada em cima pela
treva das palavras".
Mundo durável
Escavar sob a treva das palavras implicaria encontrar um
mundo durável, onde coabitam
o terrível e o maravilhoso. Poder-se-ia mesmo pensar em
uma arqueologia "reta", isto é,
do começo anterior à "treva das
palavras", vindo a seu nascimento, até o momento "histórico" do desgaste: "Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada/ pelas vozes./ E enquanto
dorme o leite, a minha casa/
pousa no silêncio e arde pouco
a pouco. No círculo de pétalas
veementes cai a cabeça -/ e as
palavras nascem./ Límpidas,
amargas" ("As Musas Cegas",
2). O primeiro qualificativo
-"límpidas"- depois se converte em seu contrário.
Mas a tentativa de extrair
sentido não funciona ante a
constância do aleatório semântico. A coerência do poeta tem
por conseqüência que se destaquem trechos e o mais se incorpore à obscuridade do mundo
não inaugural. Isso quando não
nos deparamos com um poema
como "Um Deus Lisérgico", em
que o caos semântico é absoluto. O caos então se confunde
com o verbalmente nulo.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). É autor de "História,
Ficção, Literatura" (Companhia das Letras).
OU O POEMA CONTÍNUO
Autor: Herberto Helder
Editora: A Girafa (tel. 0/xx/11/
3258-8878)
Quanto: R$ 49 (536 págs.)
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