São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Os mosqueteiros saem do armário

Nova tradução inglesa do clássico de Dumas restaura as conotações sexuais vetadas pela repressão vitoriana

ROBIN BUSS

Alexandre Dumas (1802-70) é um caso interessante. Seus melhores romances estão sempre em catálogo, desde o lançamento. "Os Três Mosqueteiros" [Ediouro] e "O Conde de Monte Cristo" também estão entre as obras literárias mais adaptadas para o cinema.
Mas a reputação literária de Dumas não é muito sólida. Na França, as histórias da literatura mais conhecidas normalmente ignoram sua obra: o tom foi ditado por Gustave Lanson (1895), que desdenhou o trabalho de ficção de Dumas em apenas uma sentença. O escritor, afirmou, "tomou o controle" do romance histórico como gênero e "o encaminhou além do domínio da literatura e da arte, transformando-o em diversão para as massas".
De fato, a popularidade de Dumas sempre foi usada contra ele. À medida que o século 19 avançava, o escritor passou a se enquadrar menos e menos na imagem de criador literário dedicado a sua arte e à busca de "le mot juste" [a palavra exata].
Ele era pago por palavra -e produziu milhões delas, na forma de romances, peças, contos, artigos jornalísticos, artigos sobre viagens, memórias, obras históricas e até mesmo manuais de culinária. O pior é que usava colaboradores, de modo que é impossível certificar que proporção de "Os Três Mosqueteiros" foi escrita por Dumas em pessoa e que partes couberam a seu assistente favorito, Auguste Maquet.
Nada disso prejudicou as vendas de Dumas (especialmente a acusação de imoralidade), mas veredictos como esse influenciaram a maneira como seus livros passaram a ser percebidos.
Foi classificado como escritor de capa-e-espada. Não era possível incluí-lo nas fileiras dos autores infantis. Afinal, o herói de "Os Três Mosqueteiros" dorme com a maligna Milady, com a criada desta e, enquanto isso, faz a corte a uma outra mulher, casada.

Drogas e lesbianismo
Mas, apesar de escrever romances que tratam de incesto ("A Rainha Margot"), lesbianismo, drogas alucinógenas ("O Conde de Monte Cristo"), adultério, sadismo e muito mais, Dumas raramente foi considerado um escritor completamente adulto, e isso era compartilhado pelos tradutores que verteram suas obras para o inglês no século 19.
Como explica Richard Pevear no prefácio à nova edição de "Os Três Mosqueteiros", traduzida por ele [ed. Viking, 736 págs., US$ 35, R$ 75], os tradutores vitorianos removiam "todas as referências explícitas -e muitas das implícitas- à sexualidade e ao corpo humano", com o resultado de que certas cenas se tornavam "estranhamente vagas".
Até mesmo as traduções da década de 1890, mais ousadas que versões anteriores, exibem inibições peculiares. Por exemplo, na cena de "Os Três Mosqueteiros" na qual D'Artagnan é surpreendido depois de seduzir Milady, Dumas escreveu (e Pevear traduziu), que ela "de um salto lançou-se seminua contra ele".
O tradutor da versão de 1895 se recusou a permitir que seus leitores imaginassem essa mulher seminua e decidiu que era D'Artagnan que estava "seminu em sua cama": afinal, um homem seminu ainda pode estar coberto de maneira a preservar a decência, enquanto uma mulher não pode.
A definição de Dumas como simples escritor de aventuras terminou por transformar a percepção criada pelos tradutores sobre seu trabalho, no século 19, porque cortavam trechos que, de acordo com a interpretação que adotavam, retardavam o ritmo da narrativa.
Isso não é muito importante em "Os Três Mosqueteiros", mas altera fundamentalmente a trama de "A Tulipa Negra", romance no qual Dumas discorre extensamente sobre a história e cultura da Holanda.

Era perdida
E, além da censura por motivos de pudicícia e dos cortes, os tradutores vitorianos tampouco respeitavam a linguagem de Dumas e arruinavam muitos de seus efeitos humorísticos em razão de escolhas verborrágicas: os olhos que contemplam um prazer inesperado não se "arregalam"; eles "se dilatam de maneira que faz parecer que explodirão" e assim por diante.
Se se desejar saber por que isso é uma vergonha, leia-se o trabalho de Dumas em tradução moderna.
Comecemos por um novo olhar para "Os Três Mosqueteiros". Filho de um general do exército revolucionário francês, Dumas tinha apenas 13 anos quando Napoleão foi derrotado em Waterloo; passou a juventude sob o deprimente jugo da restauração Bourbon e era parte de uma geração cujos jovens não puderam compartilhar da excitação e aventura de uma revolução e um império.
É por isso que ele amava especialmente o século 17, período em que se passa esse romance e suas continuações, vendo-o como uma era perdida de liberdade, paixão e aventura. É o prazer evidente de Dumas, e não os efeitos popularescos, que explica a popularidade duradoura de seu trabalho.


Este texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.

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