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Teorias alteraram a concepção da estrutura material do mundo
O legado de Einstein
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
Em 1916, Einstein, então com 37
anos, concluiu os detalhes finais
de sua teoria da relatividade geral.
Ao contrário do que muitos pensam, essa teoria, que revolucionou profundamente nossa visão
de mundo, não veio em um estalar de dedos; foram anos de tentativas frustradas, de aproximações
insatisfatórias, perseguindo uma
visão que veio em um momento
de intuição inesperado, quase dez
anos antes. "Como uma pessoa
que estivesse caindo do telhado
de sua casa (um telhado bem alto!) veria o mundo à sua volta?" A
genialidade de Einstein vem da
sua coragem de fazer perguntas
aparentemente ingênuas, de não
se deixar influenciar por correntes de pensamento ou por nenhuma forma de autoridade, seja
científica, política ou religiosa.
Hoje falamos com a maior naturalidade em um Universo em expansão; em buracos negros, esses
abismos cósmicos que sugam
qualquer coisa que se aproxime
deles, em cujo centro nossas noções de espaço e tempo deixam de
fazer sentido; em "buracos de minhoca" (do inglês "wormholes"),
passagens para outros pontos do
Universo, ou mesmo para outras
épocas, que, como alguns leitores
certamente se lembram, foram
usados pela atriz americana Jodie
Foster no filme "Contato" para se
comunicar com seres extraterrestres; ou em efeitos estranhos, relevantes apenas a velocidades próximas à da luz, como a contração
espacial (objetos encolhem na direção de seu movimento) e a dilatação temporal (relógios batem
mais devagar quando em movimento). Há cem anos, qualquer
um desses fatos seria considerado
absurdo ou completamente implausível pela maioria absoluta
dos físicos. Há 300 anos, o autor
dessas idéias seria provavelmente
queimado na fogueira.
Esses exemplos acima, tirados
de possíveis aplicações das duas
teorias da relatividade, a especial
(1905) e a geral (1916), representam apenas uma fração da obra
científica de Einstein. Ele também
contribuiu para o desenvolvimento da nossa compreensão do
mundo do muito pequeno, do
mundo dos processos que ocorrem na escala atômica e subatômica. Por exemplo, o Prêmio Nobel que ele recebeu em 1921 não
foi pelo desenvolvimento da teoria da relatividade, mas pela sua
explicação, elaborada em 1905, de
um efeito que havia desafiado os
físicos por várias décadas, o "efeito fotoelétrico": quando uma placa metálica eletricamente neutra é
iluminada por luz ultravioleta, ela
ganha uma carga elétrica; já se ela
for iluminada por uma luz amarela isso não acontece.
A explicação de Einstein para
esse efeito ilustra magnificamente
sua coragem intelectual. Imagine,
supôs ele, que a luz (ou melhor, a
radiação eletromagnética) possa
ser decomposta em pequenas
partículas, uma para cada cor (isto é, cada frequência), de modo
que cada uma tenha uma energia
associada a ela. Einstein então
propôs que as partículas de luz
(chamadas fótons) com energia
suficiente, ao colidir com os elétrons da placa metálica, podem
arrancar alguns deles, tornando-a
carregada. A audácia de Einstein
foi propor que a luz vem em pacotes de energia, e não em ondas
contínuas, como se pensava então. Sua hipótese desafiou o status
quo, irritando vários colegas, que
se recusavam a ver a luz como
uma espécie de colar de pérolas.
Mas Einstein estava correto, e sua
visão inaugurou todo um novo
modo de olhar para o mundo, em
que a realidade física da matéria e
da luz deixou de ser delineada claramente entre dois extremos, as
partículas e as ondas.
Portanto, o legado científico de
Einstein não se limitou à reformulação de nossa concepção da
estrutura do espaço e do tempo,
mas, também, à da estrutura material do mundo ao seu nível mais
fundamental, o das partículas e da
radiação. Mas nem tudo que Einstein tocou virou ouro: vários de
seus sonhos ainda não se realizaram. O cientista nunca aceitou a
natureza discreta da mecânica
quântica, que estuda o mundo do
muito pequeno e sua consequente
estrutura baseada em probabilidades.
Para ele, a natureza deveria ter
uma clara relação entre causa e
efeito, e não vários efeitos com
probabilidades diferentes, mesmo que haja apenas uma causa.
Ele também procurou em vão
pela "teoria unificada de campos", que traria o eletromagnetismo dentro da elegante estrutura
geométrica da relatividade geral.
Curiosamente, passados 44 anos
desde a sua morte, ambas as questões estão passando por uma verdadeira renascença: tanto a busca
pela teoria de unificação de campos quanto a estrutura conceitual
da mecânica quântica têm sido alvo de enorme interesse pela comunidade científica.
O grande biólogo inglês J. S. B.
Haldane, em seu livro publicado
em 1923, "Daedalus - Ou Ciência e
o Futuro", argumenta que o papel
do cientista é pensar o impensável, criar novos mundos, derrubar
convicções, especialmente as
mais arraigadas em arrogância e
preconceito. Einstein, mais do
que qualquer outro cientista deste
século, foi extremamente bem-sucedido nessa cruzada, ao decifrar partes fundamentais do misterioso código que descreve nossa
realidade. E, como ele mesmo demonstrou em sua obra de divulgação científica, participar desse
processo de descoberta não é privilégio dos cientistas, mas de
qualquer cidadão interessado em
compreender melhor o mundo
em que vive. O convite está em
aberto.
Marcelo Gleiser é professor de física do
Dartmouth College, em Hannover (EUA), e
autor do livro "Retalhos Cósmicos".
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