São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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Teorias alteraram a concepção da estrutura material do mundo
O legado de Einstein

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1916, Einstein, então com 37 anos, concluiu os detalhes finais de sua teoria da relatividade geral. Ao contrário do que muitos pensam, essa teoria, que revolucionou profundamente nossa visão de mundo, não veio em um estalar de dedos; foram anos de tentativas frustradas, de aproximações insatisfatórias, perseguindo uma visão que veio em um momento de intuição inesperado, quase dez anos antes. "Como uma pessoa que estivesse caindo do telhado de sua casa (um telhado bem alto!) veria o mundo à sua volta?" A genialidade de Einstein vem da sua coragem de fazer perguntas aparentemente ingênuas, de não se deixar influenciar por correntes de pensamento ou por nenhuma forma de autoridade, seja científica, política ou religiosa.
Hoje falamos com a maior naturalidade em um Universo em expansão; em buracos negros, esses abismos cósmicos que sugam qualquer coisa que se aproxime deles, em cujo centro nossas noções de espaço e tempo deixam de fazer sentido; em "buracos de minhoca" (do inglês "wormholes"), passagens para outros pontos do Universo, ou mesmo para outras épocas, que, como alguns leitores certamente se lembram, foram usados pela atriz americana Jodie Foster no filme "Contato" para se comunicar com seres extraterrestres; ou em efeitos estranhos, relevantes apenas a velocidades próximas à da luz, como a contração espacial (objetos encolhem na direção de seu movimento) e a dilatação temporal (relógios batem mais devagar quando em movimento). Há cem anos, qualquer um desses fatos seria considerado absurdo ou completamente implausível pela maioria absoluta dos físicos. Há 300 anos, o autor dessas idéias seria provavelmente queimado na fogueira.
Esses exemplos acima, tirados de possíveis aplicações das duas teorias da relatividade, a especial (1905) e a geral (1916), representam apenas uma fração da obra científica de Einstein. Ele também contribuiu para o desenvolvimento da nossa compreensão do mundo do muito pequeno, do mundo dos processos que ocorrem na escala atômica e subatômica. Por exemplo, o Prêmio Nobel que ele recebeu em 1921 não foi pelo desenvolvimento da teoria da relatividade, mas pela sua explicação, elaborada em 1905, de um efeito que havia desafiado os físicos por várias décadas, o "efeito fotoelétrico": quando uma placa metálica eletricamente neutra é iluminada por luz ultravioleta, ela ganha uma carga elétrica; já se ela for iluminada por uma luz amarela isso não acontece.
A explicação de Einstein para esse efeito ilustra magnificamente sua coragem intelectual. Imagine, supôs ele, que a luz (ou melhor, a radiação eletromagnética) possa ser decomposta em pequenas partículas, uma para cada cor (isto é, cada frequência), de modo que cada uma tenha uma energia associada a ela. Einstein então propôs que as partículas de luz (chamadas fótons) com energia suficiente, ao colidir com os elétrons da placa metálica, podem arrancar alguns deles, tornando-a carregada. A audácia de Einstein foi propor que a luz vem em pacotes de energia, e não em ondas contínuas, como se pensava então. Sua hipótese desafiou o status quo, irritando vários colegas, que se recusavam a ver a luz como uma espécie de colar de pérolas. Mas Einstein estava correto, e sua visão inaugurou todo um novo modo de olhar para o mundo, em que a realidade física da matéria e da luz deixou de ser delineada claramente entre dois extremos, as partículas e as ondas.
Portanto, o legado científico de Einstein não se limitou à reformulação de nossa concepção da estrutura do espaço e do tempo, mas, também, à da estrutura material do mundo ao seu nível mais fundamental, o das partículas e da radiação. Mas nem tudo que Einstein tocou virou ouro: vários de seus sonhos ainda não se realizaram. O cientista nunca aceitou a natureza discreta da mecânica quântica, que estuda o mundo do muito pequeno e sua consequente estrutura baseada em probabilidades.
Para ele, a natureza deveria ter uma clara relação entre causa e efeito, e não vários efeitos com probabilidades diferentes, mesmo que haja apenas uma causa.
Ele também procurou em vão pela "teoria unificada de campos", que traria o eletromagnetismo dentro da elegante estrutura geométrica da relatividade geral. Curiosamente, passados 44 anos desde a sua morte, ambas as questões estão passando por uma verdadeira renascença: tanto a busca pela teoria de unificação de campos quanto a estrutura conceitual da mecânica quântica têm sido alvo de enorme interesse pela comunidade científica.
O grande biólogo inglês J. S. B. Haldane, em seu livro publicado em 1923, "Daedalus - Ou Ciência e o Futuro", argumenta que o papel do cientista é pensar o impensável, criar novos mundos, derrubar convicções, especialmente as mais arraigadas em arrogância e preconceito. Einstein, mais do que qualquer outro cientista deste século, foi extremamente bem-sucedido nessa cruzada, ao decifrar partes fundamentais do misterioso código que descreve nossa realidade. E, como ele mesmo demonstrou em sua obra de divulgação científica, participar desse processo de descoberta não é privilégio dos cientistas, mas de qualquer cidadão interessado em compreender melhor o mundo em que vive. O convite está em aberto.


Marcelo Gleiser é professor de física do Dartmouth College, em Hannover (EUA), e autor do livro "Retalhos Cósmicos".


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