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Com "Memoria de Mis Putas Tristes", García Márquez radicaliza sua prosa e volta ao melhor de sua forma
A vida inesperada aos 90
LUIZ COSTA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Terminado em maio e publicado em outubro passado, "Memoria de Mis Putas Tristes" é
a mais recente novela de Gabriel García Márquez [lançada pela
Mondadori, deve sair no Brasil em
meados do 2005 pela ed. Record]. A
capacidade comercial de sua editora
torna o livro encontrável, ao mesmo
tempo, na Espanha, nos EUA e em
toda a América hispânica.
Tantas são as mudanças de rumo
que o autor colombiano tem dado à
matéria de sua ficção que poderá ser
considerado o correspondente a Picasso, na literatura contemporânea.
Como sucede com o pintor, nessa
multiplicidade de caminhos nem tudo tem a mesma qualidade.
Porque já o sabia, confesso que a
primeira frase de "Memoria" me fez
temer o que sucederia nas cento e
poucas páginas do relato: "Ao cumprir 90 anos, quis me presentear
uma noite de amor louco com uma
adolescente virgem". Mas nenhum
leitor poderia imaginar que a singularidade da novela dependeria da
maneira como, na condensação de
planos, ressaltaria a peripécia. Os
planos concernem à história do protagonista, da cidade e ao regime político a que ela está submetida. O
protagonista vive precariamente do
que herdara. A casa que fora dos pais
tem goteiras que estragam móveis e
livros de que não quer se separar.
A decadência já teria começado
com aqueles: o narrador descobrirá
que, conforme uma prática de antes,
nas jóias que haviam sido de sua
mãe, as pedras preciosas tinham sido substituídas por bijuterias. A decadência apenas se acentuara com
sua ausência de ambição: sua renda
se resumia ao pouco que ganhava ao
escrever notas semanais para um
jornal local. Embora nada soubesse
de música, sua coluna tratava de gravações e concertos das celebridades
que passavam pela cidade.
Ao completar 90 anos, tudo mudaria. A decisão formulada pela frase
inicial não pareceria indicá-lo. Nunca tivera uma relação amorosa: "As
putas não me deixaram tempo para
estar casado", e a solidão da velhice
não o levava a pensar nisso. Tudo
sucederá de maneira imprevista.
Surpresa, a cafetina, a que havia
anos não recorria, reclama de seu capricho, mas termina por atendê-lo.
Encontra à sua espera uma quase
menina. Deixemo-lo por ora no
quarto e antes acompanhemos o seu
dia. A nota que preparara para o jornal deveria terminar com o anúncio
de sua renúncia. Mas o censor -e
aqui está o primeiro sinal do estado
político- a corta. Embora o diretor
do jornal proteste junto do governador, no fundo se regozija, porque
não pretendia renunciar à sua colaboração. Na redação, o nonagenário
é presenteado com beijos, peças íntimas e até um gato. Ao trazê-lo para
casa, é parado e revistado por uma
patrulha, e o oficial, tirando o animal
da cesta, revela a sua velhice: "Parece-me que é um gato abandonado
que passou por muitas".
Os poucos traços são suficientes
para captar a situação social do narrador e da cidade -estão sob rotineira ditadura, e para um e outra a
vida é um ramerrame, em que todos
parecem se conhecer, sem deixarem
de ser estranhos. O gato é o ícone da
vida transcorrida. Trazido para casa,
passa a conviver com seu dono, mas
apenas se toleram. Mas é também
um tênue sinal do transtorno: ao
adoecer, aconselha-se ao protagonista-narrador que o sacrifique, pois
seu mal não é outro senão a idade.
Metamorfose
A recusa do narrador indica que,
no mar de rotinas, surgia um afeto
que não fora previsto. O afeto se desenvolverá no quarto em que o deixáramos. Encontrara a quase menina, preparada pela cafetina, maquiada, com os cabelos encaracolados,
"nua e desamparada na enorme cama de aluguel"; empapada de suor e
adormecida por um tranqüilizante.
O nonagenário a contempla e mal
a toca. Ao sair pela madrugada, seu
pensamento oferece uma sensação
de fracasso: "Sob o sol abrasante da
rua, comecei a sentir o peso de meus
90 anos e a contar minuto a minuto
os minutos das noites que me faziam
falta para morrer".
De retorno a sua casa, começa a
perceber a metamorfose. Para começar, sua coluna muda de tema.
Em vez de notas sobre música, passa
a escrever cartas de amor. Elas provocam o alvoroço de respostas de
leitores enamorados e os comentários entusiastas de respeitados colunistas. O narrador sente o que nunca
sentira. Mas como começaria a amar
em sua idade? Eis uma questão que
não se põe. Seu problema é bastante
mais comezinho: convencer a intermediária a marcar um novo encontro com a menina adormecida.
Os encontros se sucedem, com o
mesmo desfecho: ao chegar, o narrador já encontra a companheira, nua
e a dormir. Embora a toque, não ousa despertá-la. Não que lhe faltasse a
força viril: "Toda sombra de dúvida
desapareceu então de minha alma: a
preferia adormecida". Não precisa
nem sequer saber seu nome verdadeiro. Como os antigos trovadores e
o Quixote, dá-lhe um nome apenas
por ele reconhecido. Traz algum
conforto para o quarto em que se encontram e, ao completar ela 15 anos,
lhe presenteia com uma bicicleta.
Sua próxima coluna terá por titulo:
"Como Ser Feliz em Bicicleta aos 90
Anos". Pois nessa idade o amor há
de ser uma completa invenção. E,
dele, o narrador conhece até mesmo
o ciúme. Um assassinato cometido
no bordel obriga sua dona a fechá-lo
por algum tempo e a aceitar de um
chefão político que saia de "férias".
Quando o narrador consegue reativar seus contatos e convencê-la a
reativar seus encontros, a menina
surge com roupa espalhafatosa e
jóias. O velho suspeita de que, nesse
entretempo, se prostituíra e destrói
os objetos que trouxera para o melhor conforto do quarto. A dona do
bordel o convence de seu engano:
roupas e jóias, apenas enfeites baratos, haviam sido emprestados por
ela. Verdade ou não, para o narrador
o que importava era voltar a sentir a
cálida corrente que lhe subia pelas
veias e que pudesse sussurrar à sua
menina palavras que tinham por
resposta apenas o mover-se descansado de seu corpo ao lado.
A metamorfose durara um ano. O
protagonista-narrador incorporara
o plano inesperado à trama da vida
cotidiana. Do afeto que o possuía,
ninguém se dera conta, salvo a intermediária ou talvez aquela que fora a
causa da transformação. Mas ela
própria não fala. Nada mudara e tudo mudara. A casa continuava com
goteiras e as chuvas a provocar estragos; o gato mantinha sua altivez
de estranho; os leitores do jornal talvez conservassem seu entusiasmo
pelas cartas de amor que Delgadina
desconhecia escritas para ela. "Era
por fim a vida real. Com meu coração a salvo e condenado a morrer de
bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois de meus cem anos."
Sem recorrer a ilusionismos mercadológicos ou a truques sentimentais, radicalizando um fio com que
antes havia composto uma de suas
grandes obras, "O Amor no Tempo
do Cólera", García Márquez tanto
ratifica o que já dissera um certo filósofo da Antigüidade -"no todo, a
vida é um mau negócio"- como
acrescenta: e, no entanto, mesmo às
vésperas da viagem definitiva, ela está sempre aberta a surpresas.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica
(PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp).
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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