São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Com "Memoria de Mis Putas Tristes", García Márquez radicaliza sua prosa e volta ao melhor de sua forma

A vida inesperada aos 90

LUIZ COSTA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Terminado em maio e publicado em outubro passado, "Memoria de Mis Putas Tristes" é a mais recente novela de Gabriel García Márquez [lançada pela Mondadori, deve sair no Brasil em meados do 2005 pela ed. Record]. A capacidade comercial de sua editora torna o livro encontrável, ao mesmo tempo, na Espanha, nos EUA e em toda a América hispânica.
Tantas são as mudanças de rumo que o autor colombiano tem dado à matéria de sua ficção que poderá ser considerado o correspondente a Picasso, na literatura contemporânea. Como sucede com o pintor, nessa multiplicidade de caminhos nem tudo tem a mesma qualidade.
Porque já o sabia, confesso que a primeira frase de "Memoria" me fez temer o que sucederia nas cento e poucas páginas do relato: "Ao cumprir 90 anos, quis me presentear uma noite de amor louco com uma adolescente virgem". Mas nenhum leitor poderia imaginar que a singularidade da novela dependeria da maneira como, na condensação de planos, ressaltaria a peripécia. Os planos concernem à história do protagonista, da cidade e ao regime político a que ela está submetida. O protagonista vive precariamente do que herdara. A casa que fora dos pais tem goteiras que estragam móveis e livros de que não quer se separar.
A decadência já teria começado com aqueles: o narrador descobrirá que, conforme uma prática de antes, nas jóias que haviam sido de sua mãe, as pedras preciosas tinham sido substituídas por bijuterias. A decadência apenas se acentuara com sua ausência de ambição: sua renda se resumia ao pouco que ganhava ao escrever notas semanais para um jornal local. Embora nada soubesse de música, sua coluna tratava de gravações e concertos das celebridades que passavam pela cidade.
Ao completar 90 anos, tudo mudaria. A decisão formulada pela frase inicial não pareceria indicá-lo. Nunca tivera uma relação amorosa: "As putas não me deixaram tempo para estar casado", e a solidão da velhice não o levava a pensar nisso. Tudo sucederá de maneira imprevista. Surpresa, a cafetina, a que havia anos não recorria, reclama de seu capricho, mas termina por atendê-lo.
Encontra à sua espera uma quase menina. Deixemo-lo por ora no quarto e antes acompanhemos o seu dia. A nota que preparara para o jornal deveria terminar com o anúncio de sua renúncia. Mas o censor -e aqui está o primeiro sinal do estado político- a corta. Embora o diretor do jornal proteste junto do governador, no fundo se regozija, porque não pretendia renunciar à sua colaboração. Na redação, o nonagenário é presenteado com beijos, peças íntimas e até um gato. Ao trazê-lo para casa, é parado e revistado por uma patrulha, e o oficial, tirando o animal da cesta, revela a sua velhice: "Parece-me que é um gato abandonado que passou por muitas".
Os poucos traços são suficientes para captar a situação social do narrador e da cidade -estão sob rotineira ditadura, e para um e outra a vida é um ramerrame, em que todos parecem se conhecer, sem deixarem de ser estranhos. O gato é o ícone da vida transcorrida. Trazido para casa, passa a conviver com seu dono, mas apenas se toleram. Mas é também um tênue sinal do transtorno: ao adoecer, aconselha-se ao protagonista-narrador que o sacrifique, pois seu mal não é outro senão a idade.

Metamorfose
A recusa do narrador indica que, no mar de rotinas, surgia um afeto que não fora previsto. O afeto se desenvolverá no quarto em que o deixáramos. Encontrara a quase menina, preparada pela cafetina, maquiada, com os cabelos encaracolados, "nua e desamparada na enorme cama de aluguel"; empapada de suor e adormecida por um tranqüilizante.
O nonagenário a contempla e mal a toca. Ao sair pela madrugada, seu pensamento oferece uma sensação de fracasso: "Sob o sol abrasante da rua, comecei a sentir o peso de meus 90 anos e a contar minuto a minuto os minutos das noites que me faziam falta para morrer".
De retorno a sua casa, começa a perceber a metamorfose. Para começar, sua coluna muda de tema. Em vez de notas sobre música, passa a escrever cartas de amor. Elas provocam o alvoroço de respostas de leitores enamorados e os comentários entusiastas de respeitados colunistas. O narrador sente o que nunca sentira. Mas como começaria a amar em sua idade? Eis uma questão que não se põe. Seu problema é bastante mais comezinho: convencer a intermediária a marcar um novo encontro com a menina adormecida.
Os encontros se sucedem, com o mesmo desfecho: ao chegar, o narrador já encontra a companheira, nua e a dormir. Embora a toque, não ousa despertá-la. Não que lhe faltasse a força viril: "Toda sombra de dúvida desapareceu então de minha alma: a preferia adormecida". Não precisa nem sequer saber seu nome verdadeiro. Como os antigos trovadores e o Quixote, dá-lhe um nome apenas por ele reconhecido. Traz algum conforto para o quarto em que se encontram e, ao completar ela 15 anos, lhe presenteia com uma bicicleta.
Sua próxima coluna terá por titulo: "Como Ser Feliz em Bicicleta aos 90 Anos". Pois nessa idade o amor há de ser uma completa invenção. E, dele, o narrador conhece até mesmo o ciúme. Um assassinato cometido no bordel obriga sua dona a fechá-lo por algum tempo e a aceitar de um chefão político que saia de "férias".
Quando o narrador consegue reativar seus contatos e convencê-la a reativar seus encontros, a menina surge com roupa espalhafatosa e jóias. O velho suspeita de que, nesse entretempo, se prostituíra e destrói os objetos que trouxera para o melhor conforto do quarto. A dona do bordel o convence de seu engano: roupas e jóias, apenas enfeites baratos, haviam sido emprestados por ela. Verdade ou não, para o narrador o que importava era voltar a sentir a cálida corrente que lhe subia pelas veias e que pudesse sussurrar à sua menina palavras que tinham por resposta apenas o mover-se descansado de seu corpo ao lado.
A metamorfose durara um ano. O protagonista-narrador incorporara o plano inesperado à trama da vida cotidiana. Do afeto que o possuía, ninguém se dera conta, salvo a intermediária ou talvez aquela que fora a causa da transformação. Mas ela própria não fala. Nada mudara e tudo mudara. A casa continuava com goteiras e as chuvas a provocar estragos; o gato mantinha sua altivez de estranho; os leitores do jornal talvez conservassem seu entusiasmo pelas cartas de amor que Delgadina desconhecia escritas para ela. "Era por fim a vida real. Com meu coração a salvo e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois de meus cem anos."
Sem recorrer a ilusionismos mercadológicos ou a truques sentimentais, radicalizando um fio com que antes havia composto uma de suas grandes obras, "O Amor no Tempo do Cólera", García Márquez tanto ratifica o que já dissera um certo filósofo da Antigüidade -"no todo, a vida é um mau negócio"- como acrescenta: e, no entanto, mesmo às vésperas da viagem definitiva, ela está sempre aberta a surpresas.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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