São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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A socióloga Barbara Ehrenreich fala de "Miséria à Americana", relato da vida precária dos trabalhadores nos EUA, a partir de sua experiência como balconista e faxineira

A mancha humana

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O sistema atual é contrário a partes básicas do contrato social, segundo as quais quem trabalha honestamente deveria ter condições de vida razoáveis. Nenhum sistema, sobretudo o dos EUA, deveria ter uma categoria chamada de "pobres trabalhadores"."
A afirmação é de Barbara Ehrenreich, uma das mais reconhecidas e originais comentaristas sociais americanas, jornalista que contribui para várias revistas, como "Time", "The New York Times Magazine" e "Harper's", e autora de "Miséria à Americana -Vivendo de Subempregos nos EUA", que está saindo no Brasil pela ed. Record.
No livro, a socióloga retrata de forma crua o período em que trabalhou como faxineira, garçonete e balconista em cidades dos EUA, numa tentativa de expor as condições de trabalho precárias das classes mais baixas nos EUA.
Leia a seguir trechos da entrevista que concedeu ao Mais!, por telefone.
 

Folha - O que a motivou a escrever um livro sobre a condição dos subempregados americanos, grupo do qual pouco se ouve falar?
Barbara Ehrenreich -
Tive a idéia, mas não acreditava que eu devesse fazer a matéria. Sou uma escritora free-lance e queria escrever mais para a "Harper's" [revista de "literatura, política, cultura e artes publicada desde 1850", conforme definição em seu site] e acabei aceitando a tarefa proposta por meu editor, embora não estivesse muito animada.
Acabei, então, mergulhando no universo do subemprego nos EUA, e a experiência mudou meu modo de ver minha própria vida e o mundo. Nem saberia como começar a explicar tudo o que aprendi. Porém tive a impressão de que o mundo dos trabalhadores mal remunerados não era tão estranho para mim por conta de minha formação familiar. Além disso, por muitos anos meu marido foi líder sindical e recebia um salário relativamente baixo.
Assim, minha casa vivia cheia de pessoas ligadas ao sindicato em que ele trabalhava. Havia faxineiras e operários que sempre estavam lá, além de enfermeiras. Provavelmente, ela viria a ser uma história melhor se fosse contada por Paris Hilton [herdeira da rede de hotéis, apresentadora de TV e modelo], para quem o mundo do subemprego é algo totalmente estranho. Para mim, no entanto, a situação era outra, pois eu já conhecia esse universo.

Folha - Por que a sra. pensou em abordar esse tema atualmente, num momento político tão polarizado da história americana?
Ehrenreich -
A questão que me fez pensar no tema foi a reforma da Previdência Social proposta pelo atual governo, que contém a idéia de que, contanto que haja um emprego, uma família sustentada apenas por uma mulher pode viver com dignidade, longe da pobreza. Pensei, então, que, se observarmos os níveis atuais dos salários no mercado de trabalho americano, chegaremos à conclusão de que isso é impossível.
As pessoas que vivem nessa situação têm duas estratégias básicas para sobreviver. A primeira é viver com outras pessoas que recebem salário, como amigos, amigas ou filhos crescidos. Conheci mulheres que dividiam seu espaço com outras que elas nem sequer conheciam direito, pois suas condições de trabalho eram precárias.
A segunda estratégia é, logicamente, ter mais de um emprego. Segundo estatísticas oficiais, somente 6% da mão-de-obra ativa do país tem dois empregos "normais", que não incluem trabalho em tempo parcial. Todavia a maioria dos subempregados que conheci durante minhas pesquisas tinha um emprego "normal" e outro de seis horas por dia. Eles tinham, portanto, uma carga de trabalho de 14 horas diárias.

Folha - É possível alterar esse sistema, que a sra. considera injusto? Ehrenreich - Não diria apenas que o sistema é injusto. Ele é contrário a partes básicas do que vejo como o contrato social, segundo as quais, se você trabalha dura e honestamente, você deveria conseguir ter uma vida razoável. Nenhum sistema, sobretudo o dos EUA, deveria ter uma categoria chamada de "pobres trabalhadores". Isso deveria ser uma contradição em termos. Historicamente, na verdade, isso não existia nos Estados Unidos. Nas décadas de 70 e de 80, por exemplo, o salário mínimo era muito mais próximo de algo razoável para viver corretamente. Desde então, entretanto, isso tem mudado dramaticamente.

Folha - Qual será a evolução dessa situação durante o segundo mandato de George W. Bush? Ehrenreich - Você não quer que eu comece a falar de Bush, não é [risos]? Trata-se ainda de um assunto muito sensível para alguns de nós. Bem, uma coisa posso dizer: um dos aspectos mais positivos da campanha de John Kerry [candidato democrata derrotado por Bush no mês passado] era o fato de ele prometer aumentar o salário mínimo para US$ 7 por hora. Atualmente, ele é de somente US$ 5,15 por hora.
Isso afetaria a vida de milhões de trabalhadores que, hoje, recebem salários pouco acima do mínimo, pois faria aumentar os níveis globais dos salários. Não podemos, infelizmente, esperar da administração atual uma medida desse gênero. Esta está pondo fim ao bastante limitado Estado do Bem-Estar Social norte-americano ainda existente, o que prejudica mais a vida dos subempregados do país. As conseqüências de muitas das medidas tomadas pelo atual governo serão severas para os pobres, e muitas pessoas poderão acabar nas ruas, já que os subsídios à habitação também estão sendo drasticamente cortados.

Folha - A situação seria realmente diferente com os democratas? Ehrenreich - Teríamos mais poder para falar sobre essas questões. Historicamente, afinal, os democratas são mais abertos a discussões sobre a melhora das condições de vida dos membros dos estratos menos privilegiados da sociedade americana.

Folha - Faz sentido debater a pobreza nos Estados Unidos quando sabemos que há situações muito mais graves em outros países? Ehrenreich - Vi pobreza no Brasil ou, pior, na Índia. Quando falamos em falta de habitação e fome, porém, não há grande diferença geográfica. E trata-se de preocupações crescentes nos EUA.

Folha - Em março de 2003, a sra. escreveu um artigo no qual dizia que o Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre naquele ano, fora "uma bagunça". Por que a sra. chegou a tal conclusão? Ehrenreich - É verdade, mas ele também foi fascinante. Tive uma grande experiência de aprendizado. Entretanto penso que o fórum foi grande demais. Havia cerca de 100 mil pessoas na cidade em 2003, quando lá cheguei, somente para o evento. E, em termos gerais, a situação ficou um pouco fora de controle, sendo difícil encontrar as sessões e as reuniões procuradas. Contudo, embora fosse complicado achar as coisas, foi uma ótima experiência. Devo dizer, ademais, que esse tipo de evento é importante para manter certos temas na pauta internacional.


Miséria à Americana
250 págs., R$ 39,90 de Barbara Ehrenreich. Trad. Maria Beatriz de Medina. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, tel. 0/xx/21/2585-2000).



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