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A socióloga Barbara Ehrenreich fala de "Miséria à Americana", relato da vida precária dos trabalhadores nos EUA, a partir de sua experiência como balconista e faxineira
A mancha humana
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O sistema atual é contrário a
partes básicas do contrato
social, segundo as quais
quem trabalha honestamente deveria ter condições de vida
razoáveis. Nenhum sistema, sobretudo o dos EUA, deveria ter uma categoria chamada de "pobres trabalhadores"."
A afirmação é de Barbara Ehrenreich, uma das mais reconhecidas e
originais comentaristas sociais americanas, jornalista que contribui para várias revistas, como "Time",
"The New York Times Magazine" e
"Harper's", e autora de "Miséria à
Americana -Vivendo de Subempregos nos EUA", que está saindo no
Brasil pela ed. Record.
No livro, a socióloga retrata de forma crua o período em que trabalhou
como faxineira, garçonete e balconista em cidades dos EUA, numa
tentativa de expor as condições de
trabalho precárias das classes mais
baixas nos EUA.
Leia a seguir trechos da entrevista
que concedeu ao Mais!, por telefone.
Folha - O que a motivou a escrever
um livro sobre a condição dos subempregados americanos, grupo do qual
pouco se ouve falar?
Barbara Ehrenreich - Tive a idéia,
mas não acreditava que eu devesse
fazer a matéria. Sou uma escritora
free-lance e queria escrever mais para a "Harper's" [revista de "literatura, política, cultura e artes publicada
desde 1850", conforme definição em
seu site] e acabei aceitando a tarefa
proposta por meu editor, embora
não estivesse muito animada.
Acabei, então, mergulhando no
universo do subemprego nos EUA, e
a experiência mudou meu modo de
ver minha própria vida e o mundo.
Nem saberia como começar a explicar tudo o que aprendi. Porém tive a
impressão de que o mundo dos trabalhadores mal remunerados não
era tão estranho para mim por conta
de minha formação familiar. Além
disso, por muitos anos meu marido
foi líder sindical e recebia um salário
relativamente baixo.
Assim, minha casa vivia cheia de
pessoas ligadas ao sindicato em que
ele trabalhava. Havia faxineiras e
operários que sempre estavam lá,
além de enfermeiras. Provavelmente, ela viria a ser uma história melhor
se fosse contada por Paris Hilton
[herdeira da rede de hotéis, apresentadora de TV e modelo], para quem
o mundo do subemprego é algo totalmente estranho. Para mim, no entanto, a situação era outra, pois eu já
conhecia esse universo.
Folha - Por que a sra. pensou em
abordar esse tema atualmente, num
momento político tão polarizado da
história americana?
Ehrenreich - A questão que me fez
pensar no tema foi a reforma da Previdência Social proposta pelo atual
governo, que contém a idéia de que,
contanto que haja um emprego,
uma família sustentada apenas por
uma mulher pode viver com dignidade, longe da pobreza. Pensei, então, que, se observarmos os níveis
atuais dos salários no mercado de
trabalho americano, chegaremos à
conclusão de que isso é impossível.
As pessoas que vivem nessa situação têm duas estratégias básicas para sobreviver. A primeira é viver
com outras pessoas que recebem salário, como amigos, amigas ou filhos
crescidos. Conheci mulheres que dividiam seu espaço com outras que
elas nem sequer conheciam direito,
pois suas condições de trabalho
eram precárias.
A segunda estratégia é, logicamente, ter mais de um emprego. Segundo estatísticas oficiais, somente 6%
da mão-de-obra ativa do país tem
dois empregos "normais", que não
incluem trabalho em tempo parcial.
Todavia a maioria dos subempregados que conheci durante minhas
pesquisas tinha um emprego "normal" e outro de seis horas por dia.
Eles tinham, portanto, uma carga de
trabalho de 14 horas diárias.
Folha - É possível alterar esse sistema, que a sra. considera injusto?
Ehrenreich - Não diria apenas que o
sistema é injusto. Ele é contrário a
partes básicas do que vejo como o
contrato social, segundo as quais, se
você trabalha dura e honestamente,
você deveria conseguir ter uma vida
razoável. Nenhum sistema, sobretudo o dos EUA, deveria ter uma categoria chamada de "pobres trabalhadores". Isso deveria ser uma contradição em termos. Historicamente,
na verdade, isso não existia nos Estados Unidos. Nas décadas de 70 e de
80, por exemplo, o salário mínimo
era muito mais próximo de algo razoável para viver corretamente. Desde então, entretanto, isso tem mudado dramaticamente.
Folha - Qual será a evolução dessa
situação durante o segundo mandato
de George W. Bush?
Ehrenreich - Você não quer que eu
comece a falar de Bush, não é [risos]?
Trata-se ainda de um assunto muito
sensível para alguns de nós. Bem,
uma coisa posso dizer: um dos aspectos mais positivos da campanha
de John Kerry [candidato democrata derrotado por Bush no mês passado] era o fato de ele prometer aumentar o salário mínimo para US$ 7
por hora. Atualmente, ele é de somente US$ 5,15 por hora.
Isso afetaria a vida de milhões de
trabalhadores que, hoje, recebem salários pouco acima do mínimo, pois
faria aumentar os níveis globais dos
salários. Não podemos, infelizmente, esperar da administração atual
uma medida desse gênero. Esta está
pondo fim ao bastante limitado Estado do Bem-Estar Social norte-americano ainda existente, o que
prejudica mais a vida dos subempregados do país. As conseqüências de
muitas das medidas tomadas pelo
atual governo serão severas para os
pobres, e muitas pessoas poderão
acabar nas ruas, já que os subsídios à
habitação também estão sendo drasticamente cortados.
Folha - A situação seria realmente
diferente com os democratas?
Ehrenreich - Teríamos mais poder
para falar sobre essas questões. Historicamente, afinal, os democratas
são mais abertos a discussões sobre a
melhora das condições de vida dos
membros dos estratos menos privilegiados da sociedade americana.
Folha - Faz sentido debater a pobreza nos Estados Unidos quando sabemos que há situações muito mais graves em outros países?
Ehrenreich - Vi pobreza no Brasil ou,
pior, na Índia. Quando falamos em
falta de habitação e fome, porém,
não há grande diferença geográfica.
E trata-se de preocupações crescentes nos EUA.
Folha - Em março de 2003, a sra. escreveu um artigo no qual dizia que o
Fórum Social Mundial, ocorrido em
Porto Alegre naquele ano, fora "uma
bagunça". Por que a sra. chegou a tal
conclusão?
Ehrenreich - É verdade, mas ele também foi fascinante. Tive uma grande
experiência de aprendizado. Entretanto penso que o fórum foi grande
demais. Havia cerca de 100 mil pessoas na cidade em 2003, quando lá
cheguei, somente para o evento. E,
em termos gerais, a situação ficou
um pouco fora de controle, sendo
difícil encontrar as sessões e as reuniões procuradas. Contudo, embora
fosse complicado achar as coisas, foi
uma ótima experiência. Devo dizer,
ademais, que esse tipo de evento é
importante para manter certos temas na pauta internacional.
Miséria à Americana
250 págs., R$ 39,90
de Barbara Ehrenreich. Trad. Maria
Beatriz de Medina. Ed. Record (r.
Argentina, 171, CEP 20921-380,
tel. 0/xx/21/2585-2000).
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