São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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"Da Cena em Cena", de Jacó Guinsburg, discute desde a tragédia grega até Pirandello e Brecht

Reflexões sobre a arte da fuga

Barbara Heliodora
especial para a Folha

Exemplo mais que raro no panorama editorial brasileiro, a editora Perspectiva lança mais um volume significativo para reunir-se às várias dezenas já publicadas que se dedicam à reflexão sobre o teatro em seus mais variados aspectos dramatúrgicos ou de encenação, "Da Cena em Cena", de Jacó Guinsburg, grande responsável ele mesmo por tal linha editorial. Da coleção "Estudos", o volume reúne 16 trabalhos.
Grosso modo podemos dizer que os primeiros quatro ("A Idéia do Teatro", "O Teatro no Gesto", "Diálogos sobre a Natureza do Teatro" e "O Lugar do Teatro no Contexto da Comunicação de Massa") são reflexões do docente da USP nascidas de sua exemplar atividade na sala de aula, privilegiando a grande preocupação de Guinsburg com a posição do texto no teatro e sua progressiva visão dele como apenas mais uma das linguagens que compõem o fenômeno vivo do teatro. Cada vez mais, em suas análises a respeito das manifestações contemporâneas das artes cênicas, fica destacado o palco, onde o ator-instrumento se constitui no único veículo apto a fazer assumir plenamente sua própria e cambiante essência -essa fugidia arte chamada teatro, que em forma e conteúdo se transforma segundo o universo sociocultural no qual se manifesta.
Se, como afirma Guinsburg, o teatro grego fica longe de ser o único, não poderemos jamais esquecer nossa impossibilidade de na realidade apreciar, compreender e/ou vivenciar esteticamente o teatro japonês ou o teatro da Índia, por exemplo, simplesmente por nos faltarem as informações e as tradições culturais que emprestam a posturas e gestos significados que nos escapam completamente. Mas é justamente essa incapacidade talvez que constitua a maior prova da visão que tem Guinsburg da importância das linguagens do ator, da relativização da importância do texto, pois a consciência do que não compreendemos nesses outros teatros é que pode nos dar uma idéia do que tais componentes contribuem para que possamos usufruir das várias modalidades do teatro ocidental em toda a sequência de transformações por que este passa continuamente.
O segundo bloco de ensaios ("A Crítica, o Historicismo e Herder - Notas para uma Introdução", "O Titereiro da Graça - Kleist "Sobre o Teatro de Marionetes'", "Nietzsche no Teatro", "Uma Operação Tragicômica no Dramático - O Humorismo", "Vanguarda e Absurdo - Uma Cena do Nosso Tempo", "Anatol Rosenfeld e o Teatro", "Brecht - "Baal Dialeta'", "Haroldo de Campos e o Teatro" e "Texto ou Pretexto") constitui um denso grupo de reflexões sobre reflexões, comentários excepcionalmente eruditos nos quais, em lugar de buscar "épater le bourgeois" com novas afirmações a respeito do fenômeno teatro, Guinsburg passa a fazer um notável exercício duplo, no qual por um lado analisa e avalia trabalhos de outros autores, examinando com precisão cirúrgica as idéias neles apresentadas, e por outro expõe as suas próprias idéias e conclusões provocadas pelo trabalho que investiga.
Dada a variedade dos autores analisados, o resultado abrange um amplo leque de visões e posturas, no qual transparece a constante preocupação de Guinsburg com o teatro em seus novos caminhos, em suas impensadas potencialidades, em suas mais desbravadoras funções.

Radical mudança de tom Desse segundo núcleo, os ensaios em torno de Herder e Kleist oferecem insights brilhantes, o sobre Nietzsche ainda se revela um pouco preso à teoria do aparecimento da tragédia, hoje em dia já bastante superada (como, por exemplo, pelo exemplar trabalho de Gerald Else sobre a origem e as primeiras formas da tragédia grega) e o sobre Pirandello (do recente livro de Guinsburg sobre o autor) é interessante; mas é quando fala da vanguarda e do absurdo (a partir do livro "Teatro de Vanguarda", de Leonard C. Pronko) que a reflexão de Guinsburg se torna mais instigante, enquanto o momento mais comovente vem com o elogio à vida e à obra do inesquecível Anatol Rosenfeld, sendo um pouco menos interessantes os três últimos ensaios do bloco. Nada tão surpreendente quanto a radical mudança de tom que acontece quanto entramos no último bloco de trabalhos, formado pelos três últimos ensaios: "Elementos de Espetáculo e Drama entre os Antigos Hebreus", "Indícios de Atividade Teatral entre os Judeus na Época Helenística e Romana" e, finalmente, "Um Fragmento da Peça de Ezekielos "Exagogue'". Se nos primeiros 13 ensaios a densidade da erudição e o peso da visão semiológica tornam a obra de Guinsburg uma espécie de festim para iniciados, tudo o que se refere à possibilidade de uma sugestão de dramaturgia hebréia na Antiguidade adquire o aspecto de um ato de amor, em que possivelmente o empenho na persuasão leva o autor a um discurso simples, direto, carinhoso, que expressa o quanto o tema é caro a seu coração.
Se talvez nem mesmo o fragmento de "Exagogue" dê para que fiquemos de fato convencidos de que os judeus da época helênica tenham criado efetivamente o que se possa chamar de teatro, não há dúvida de que Jacó Guinsburg ressalta brilhantemente as potencialidades cênicas, espetaculares, dos rituais. Sob esse aspecto, as semelhanças não só com a Grécia mas com o Egito e mais todas as outras paixões que são parte dos rituais dos vários povos do Oriente Próximo naquelas mesmas e remotas épocas; mas é só voltar ao ensaio inicial do livro para compreender as razões pelas quais esses rituais não foram efetivamente transformados em teatro -razões culturais, como tão bem nos expõe Guinsburg.
As reflexões de Jacó Guinsburg que aparecem em "Da Cena em Cena" são importante contribuição para a bibliografia nacional da teoria do teatro, principalmente pelo que fazem refletir.


Da Cena em Cena
150 págs., R$ 20,00
de Jacó Guinsburg. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luiz Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).


Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva), entre outros.


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