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"Da Cena em Cena", de Jacó Guinsburg, discute desde a tragédia grega até Pirandello e Brecht
Reflexões sobre a arte da fuga
Barbara Heliodora
especial para a Folha
Exemplo mais que raro no panorama editorial brasileiro, a editora
Perspectiva lança mais um volume significativo para reunir-se às
várias dezenas já publicadas que se dedicam à reflexão sobre o teatro em seus
mais variados aspectos dramatúrgicos
ou de encenação, "Da Cena em Cena", de
Jacó Guinsburg, grande responsável ele
mesmo por tal linha editorial. Da coleção
"Estudos", o volume reúne 16 trabalhos.
Grosso modo podemos dizer que os
primeiros quatro ("A Idéia do Teatro",
"O Teatro no Gesto", "Diálogos sobre a
Natureza do Teatro" e "O Lugar do Teatro no Contexto da Comunicação de
Massa") são reflexões do docente da USP
nascidas de sua exemplar atividade na
sala de aula, privilegiando a grande preocupação de Guinsburg com a posição do
texto no teatro e sua progressiva visão
dele como apenas mais uma das linguagens que compõem o fenômeno vivo do
teatro. Cada vez mais, em suas análises a
respeito das manifestações contemporâneas das artes cênicas, fica destacado o
palco, onde o ator-instrumento se constitui no único veículo apto a fazer assumir plenamente sua própria e cambiante
essência -essa fugidia arte chamada
teatro, que em forma e conteúdo se
transforma segundo o universo sociocultural no qual se manifesta.
Se, como afirma Guinsburg, o teatro
grego fica longe de ser o único, não poderemos jamais esquecer nossa impossibilidade de na realidade apreciar, compreender e/ou vivenciar esteticamente o
teatro japonês ou o teatro da Índia, por
exemplo, simplesmente por nos faltarem
as informações e as tradições culturais
que emprestam a posturas e gestos significados que nos escapam completamente. Mas é justamente essa incapacidade
talvez que constitua a maior prova da visão que tem Guinsburg da importância
das linguagens do ator, da
relativização da importância do texto, pois a
consciência do que não
compreendemos nesses
outros teatros é que pode
nos dar uma idéia do que
tais componentes contribuem para que possamos
usufruir das várias modalidades do teatro ocidental em toda a sequência de transformações por que este
passa continuamente.
O segundo bloco de ensaios ("A Crítica, o Historicismo e Herder - Notas para
uma Introdução", "O Titereiro da Graça
- Kleist "Sobre o Teatro de Marionetes'",
"Nietzsche no Teatro", "Uma Operação
Tragicômica no Dramático - O Humorismo", "Vanguarda e Absurdo - Uma
Cena do Nosso Tempo", "Anatol Rosenfeld e o Teatro", "Brecht - "Baal Dialeta'",
"Haroldo de Campos e o Teatro" e "Texto ou Pretexto") constitui um denso grupo de reflexões sobre reflexões, comentários excepcionalmente eruditos nos
quais, em lugar de buscar "épater le
bourgeois" com novas afirmações a respeito do fenômeno teatro, Guinsburg
passa a fazer um notável
exercício duplo, no qual
por um lado analisa e avalia trabalhos de outros autores, examinando com
precisão cirúrgica as
idéias neles apresentadas,
e por outro expõe as suas
próprias idéias e conclusões provocadas pelo trabalho que investiga.
Dada a variedade dos autores analisados, o resultado abrange um amplo leque de visões e posturas, no qual transparece a constante preocupação de
Guinsburg com o teatro em seus novos
caminhos, em suas impensadas potencialidades, em suas mais desbravadoras
funções.
Radical mudança de tom Desse segundo núcleo, os ensaios em torno de
Herder e Kleist oferecem insights brilhantes, o sobre Nietzsche ainda se revela
um pouco preso à teoria do aparecimento da tragédia, hoje em dia já bastante superada (como, por exemplo, pelo exemplar trabalho de Gerald Else sobre a origem e as primeiras formas da tragédia
grega) e o sobre Pirandello (do recente livro de Guinsburg sobre o autor) é interessante; mas é quando fala da vanguarda e do absurdo (a partir do livro "Teatro
de Vanguarda", de Leonard C. Pronko)
que a reflexão de Guinsburg se torna
mais instigante, enquanto o momento
mais comovente vem com o elogio à vida
e à obra do inesquecível Anatol Rosenfeld, sendo um pouco menos interessantes os três últimos ensaios do bloco. Nada tão surpreendente quanto a radical mudança de tom que acontece quanto entramos no último bloco de trabalhos, formado pelos três últimos ensaios: "Elementos de Espetáculo e Drama entre os Antigos Hebreus", "Indícios
de Atividade Teatral entre os Judeus na
Época Helenística e Romana" e, finalmente, "Um Fragmento da Peça de Ezekielos "Exagogue'". Se nos primeiros 13
ensaios a densidade da erudição e o peso
da visão semiológica tornam a obra de
Guinsburg uma espécie de festim para
iniciados, tudo o que se refere à possibilidade de uma sugestão de dramaturgia
hebréia na Antiguidade adquire o aspecto de um ato de amor, em que possivelmente o empenho na persuasão leva o
autor a um discurso simples, direto, carinhoso, que expressa o quanto o tema é
caro a seu coração.
Se talvez nem mesmo o fragmento de
"Exagogue" dê para que fiquemos de fato convencidos de que os judeus da época helênica tenham criado efetivamente
o que se possa chamar de teatro, não há
dúvida de que Jacó Guinsburg ressalta
brilhantemente as potencialidades cênicas, espetaculares, dos rituais. Sob esse
aspecto, as semelhanças não só com a
Grécia mas com o Egito e mais todas as
outras paixões que são parte dos rituais
dos vários povos do Oriente Próximo naquelas mesmas e remotas épocas; mas é
só voltar ao ensaio inicial do livro para
compreender as razões pelas quais esses
rituais não foram efetivamente transformados em teatro -razões culturais, como tão bem nos expõe Guinsburg.
As reflexões de Jacó Guinsburg que
aparecem em "Da Cena em Cena" são
importante contribuição para a bibliografia nacional da teoria do teatro, principalmente pelo que fazem refletir.
Da Cena em Cena
150 págs., R$ 20,00
de Jacó Guinsburg. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luiz Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP,
tel. 0/xx/11/3885-8388).
Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e
autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva), entre outros.
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