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Filosofia de guerra
Newton Bignotto
especial para a Folha
O Caldeirão de Medéia" reúne
ensaios e escritos publicados
em periódicos e revistas por
Roberto Romano nos últimos
anos. Embora não tenha sido concebido
para dar ao leitor uma síntese das preocupações filosóficas e políticas do autor,
o livro acaba fornecendo um painel amplo do percurso desse escritor que, desde
seu primeiro livro -dedicado a estudar
as relações entre a igreja e o Estado no
Brasil-, sempre procurou entrelaçar
questões de atualidade com estudos de
problemas fundamentais da tradição filosófica.
Estudioso da filosofia moderna, Roberto Romano oferece uma visão renovada de alguns debates clássicos sobre o
período em vários dos capítulos do livro.
Num deles, dedicado ao problema da
guerra em Hegel, percorre a tradição crítica de Meinecke a Cláudio Cesa, passando por Franz Rosenzweig e Jacques
d'Hondt de maneira a fazer do recurso à
tradição uma ferramenta para expor sua
própria interpretação. Nesse caminho,
sobressaem duas marcas constantes de
seu pensamento. Em primeiro lugar, o
uso da tradição interpretativa de maneira rigorosa e aberta. Multiplicando as referências e abandonando por vezes o
campo original do problema por meio
da citação de outros pensadores das mais
variadas épocas, o autor aumenta em
muito o âmbito no qual a questão parecia estar circunscrita. Procedendo dessa
forma, no capítulo mencionado, ele não
se furta a chamar de hagiografia a obra
de Jacques d'Hondt e a apontar o viés
conservador do trabalho de Meinecke.
Ao concluir seu ensaio, entretanto, Romano, que havia mostrado a vertente belicista e autoritária do pensamento hegeliano ou pelo menos a possibilidade de
entender o filósofo alemão dessa maneira, adverte ao leitor brasileiro, que poderia se embevecer com uma crítica fácil do
pensador alemão, de que "deveríamos,
em vez de apontar autoritarismo no filósofo, discutir a nossa "realidade" miserável". O tom forte, por vezes polêmico, de
suas interpelações de nossa "realidade" é
a segunda marca de seus escritos.
Embora os autores modernos sejam os
que mereçam maior atenção, mesmo
nos capítulos dedicados a Diderot, Voltaire ou Hobbes proliferam as referências aos pensadores gregos e medievais
assim como aos autores contemporâneos. Ao analisar o problema da sátira na
obra de Voltaire, Romano conduz seu
leitor por um universo habitado ao mesmo tempo por Platão, Luciano e Espinosa, para apoiar uma das teses que lhe são
caras e que liga o riso e a sátira à possibilidade de realizar com êxito a crítica das
mentes adormecidas pelas mais variadas
formas de obscurantismo.
Buscando um Descartes diferente do
sisudo pai da racionalidade contemporânea, ironizando os que aceitam a pecha
de mero divulgador atribuída a Diderot
ou mostrando o quanto Voltaire contribuiu para solidificar o caráter libertador do Iluminismo, ele afirma, dirigindo-se mais uma vez ao público brasileiro: "Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de
escurecer os cérebros dos estudantes
com o o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo".
Especialista em filosofia francesa do século 18, Romano mobiliza
seus pensadores para tomar posição nos debates
contemporâneos. Já no
primeiro capítulo ele discute a relação entre a produção das ciências -e
sua incorporação pelo Estado- e a educação do povo. Deixando
de lado as idéias dos que querem isolar as
camadas populares do processo de desenvolvimento da esfera técnica e científica, ele mostra que essa é uma discussão
essencialmente política. A simples recusa de tratar da educação das massas como uma questão relevante para a vida
pública traz, segundo ele, graves consequências para a afirmação da soberania
popular.
Na mesma via se inscreve a crítica repetida que o
autor faz do que chama de
pensamento conservador,
identificado como o daqueles que têm "medo de
que a população estrague
a festa do poder, destruindo a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que
só beneficiam alguns".
Pode-se discordar de algumas teses de
Romano. O retrato do Brasil, esboçado
em alguns capítulos, parece por demais
pessimista assim como a aproximação
entre realismo e reacionarismo, sugerida
no final do capítulo sobre o "sublime e o
prosaico", talvez seja excessiva. Seja como for, o leitor encontrará sempre a sustentar as posições explicitadas um rico
conjunto de argumentos, que constituem um convite aberto para um debate
de idéias fundado na liberdade e na razão, que são o ponto de partida e o eixo
do processo de investigação do autor.
O Caldeirão de Medéia
440 págs., R$ 35,00
de Roberto Romano. Editora
Perspectiva.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).
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