São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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Ponto de fuga

O vampiro invisível

Jorge Coli
especial para a Folha

Viver é muito perigoso, escreveu Guimarães Rosa. Amar, multiplicando o perigo, acrescenta ao medo. Afetos estáveis e profundos, que perduram a longo prazo, carregam, latejando, o pavor do fim. Neil Jordan apresentou dois filmes em um ano. "In Dreams" foi o primeiro. Ele avançava por uma trama cheia de surpresas e de episódios eloquentes, numa vertigem lírica de grande ópera sobrenatural.
O segundo, "The End of the Affair", que estreou há algumas semanas, adapta um dos grandes romances do pós-guerra, escrito por Graham Greene. Muito pouco se passa na história. Um triângulo amoroso, uma relação que termina. O filme possui algo de melodrama, mas um melodrama negando-se a si próprio pelo despojamento e pela concentração. Há uma renúncia, para que perda maior não aconteça, já que a morte estende suas armadilhas. Sem peripécias, as separações mostram-se como acontecimentos secundários diante da densidade sufocante que se acumula.
Em "In Dreams", mãe e filha encontravam-se, livres, para além da morte, mergulhadas na água. "The End of the Affair" cria uma atmosfera quase aquática -e não apenas porque chove muito durante as cenas. Mas, agora, ela se estreita, num confinamento translúcido de aquário. É ali que tudo existe, na espera, aquém da morte. Espessura dos afetos nessa angústia da perda sem remédio. Como se, à volta dos personagens, o medo amoroso sugasse a seiva das felicidades possíveis.

Luvas - "Eugênio Oneguin", de Pushkin, é uma história em versos. Odisséia no interior de um dandismo romântico, inventa um trágico e solitário labirinto para os protagonistas. São embates de paixões desgarrados. Tchaikovski extraiu dela uma ópera profunda e desesperada. Martha Fiennes a retomou agora, no cinema, dando o papel principal a seu irmão Ralph Fiennes. Obtém uma delicada integração entre gestos, objetos, paisagens e uma contenção aristocrática, que aguça os sentimentos.

Extravio - Era um tempo em que novos meios de comunicação prometiam expandir formas de arte reservadas para poucos. Nos anos 30, o maestro Stokowsky se preocupava em associar música e cinema. Ele já estrelara, ao lado de Deanna Durbin, "Cem Homens e uma Menina", dirigido por Henry Kostner. Associou-se depois à Disney, em "Fantasia", de 1940, filme de animação. Episódios ligando o visível e o sonoro seguiam passo a passo as partituras, e cada inflexão musical era retomada nas imagens inventivas, com muito cuidado. Tudo isso sugeriu a Mário de Andrade um ensaio clássico, já que o filme tocava num ponto sensível de seu pensamento estético: o da correspondência entre imaginário e sons.
No novo "Fantasia 2000", com o maestro Levine, a música soa apenas como um acompanhamento, abandonando, por completo, a interação obsessiva do anterior. Além disso, nenhuma idéia consegue decolar, tudo é chavão sentimental requentado. Integrar aos novos episódios o antigo "Aprendiz de Feiticeiro" foi um erro: em restauração deslumbrante, ele acentua, por contraste, a banalidade indiferente e a perda poética da realização atual.

Drag - Talvez "Flawless", com Robert de Niro, sofra um pouco com a proximidade do último filme de Almodóvar, misturando também "straights" e travestis. Até a mesma frase surge em ambos: "É preciso muito dinheiro para se tornar uma perfeita mulher". Porém Schumacher, seu diretor, dirige-se a um público mais popular, para quem foi inventada uma história policial bem inverossímil. Apesar da trama rocambolesca e supérflua, os personagens originais, estranhos, filmados com convicção enérgica, sobressaem e afirmam-se.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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