São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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Escritor e pesquisador encerra sua trilogia sobre a loucura e diz que a literatura tem muito mais a dizer sobre ela do que a ciência
Os limites da demência

Maurício Santana Dias
da Redação

Depois de concluir uma história da loucura em três volumes, Isaias Pessotti diz estar cansado da psicopatologia. Agora ele quer se dedicar aos estudos de filosofia, sua formação de origem. "Com meu último livro, "Os Nomes da Loucura", me despeço da área psi, da psicologia, da psicopatologia -gastei uma vida nisso e já cansei. Daqui para a frente pretendo estudar e escrever filosofia, para poder dar aula de filosofia no segundo grau", diz Pessotti, que acaba de inscrever-se no mestrado de filosofia da Universidade Federal de São Carlos, onde era professor titular de psicologia médica. Além da trilogia da loucura, nos últimos anos Pessotti ainda publicou três romances: "Aqueles Cães Malditos de Arquelau" (vencedor do Prêmio Jabuti de 1994), "O Manuscrito de Mediavilla" e "A Lua da Verdade" (Ed. 34). Mas ele confessa que, no momento, está com dificuldade de voltar a escrever ficção. "Estou mudando de pele".
Na entrevista a seguir, Pessotti investe contra a "visão administrativa" da psiquiatria moderna, defende o pensamento iluminista e explicita suas diferenças com Foucault -que, a seu ver, nunca escreveu uma história da loucura.
O tratamento das doenças mentais passou por muitas fases e concepções. Hoje ainda é possível identificar uma tendência dominante na psicopatologia?
A meu ver, há uma dispersão em duas direções: a mentalista, que admite que a doença mental é produto da experiência da pessoa, do seu comércio com o ambiente social e de suas condições de vida; e a organicista, essa psiquiatria biológica triunfante e arrogante, baseada nos fármacos.
Esta última é a vertente predominante?
Sim. Hoje há uma visão perigosa, uma visão quase administrativa da loucura. O diagnóstico significa preencher quadrinhos num perfil. Se você refere insônia ou inapetência, ou se bateu o carro, já se sabe qual é o seu quadro clínico e o remédio para isso. Nessa abordagem as categorias precedem o diagnóstico. Isso significa que o sofrimento do paciente conta muito pouco. Os psiquiatras de orientação biológica ficam felizes porque agora acabou a ambiguidade. Quando você refere "a", "b" ou "c", e na família ocorreu isto, isso ou aquilo, não há dúvida: a categoria na qual você será encaixado é "x". Só que, com esse DSM-4 (código vigente das classificações da loucura), a vida toda virou problema psiquiátrico. Tudo é distúrbio para a psiquiatria tratar, provavelmente com alguma droga. Na verdade esse DSM está dando dinheiro para muita gente e afastando cada vez mais o terapeuta do sofrimento concreto do paciente.
Ao contrário de uma tendência forte nos anos 60 e 70, em seus livros o sr. parece defender a instituição manicomial...
Não defendo não. Em "O Século dos Manicômios", mostro o embate entre duas maneiras de entender a loucura que resultavam em dois modos de conduzir os manicômios. Acho que o manicômio como obrigatoriedade de internação deve acabar imediatamente. Mas para onde vamos encaminhar essa gente? Há quem não tem onde cair morto, uma família, nada. Onde é que vamos alojá-los? O que não se pode é abolir o manicômio sem colocar nada no lugar dele.
E quais seriam as alternativas?
Há 130 anos houve um movimento antimanicomial que pregava a criação de colônias agrícolas, a inserção dos loucos nas famílias de origem ou em outras famílias -que eram pagas para sustentá-los- e a saída diurna do hospital. Nós temos hoje propostas semelhantes, os chamados "hospitais-dia" etc. Eles tinham o hospital-noite, com saída diurna, porque é de dia que a vida funciona. No caso do hospital-dia, o doente vai para casa à noite, quando alguns não têm aonde ir. Mesmo assim o hospital-dia tem dado ótimos resultados, porque redime a dignidade do paciente e permite a sua reinserção na vida social, sem que ele perca o apoio da instituição.
Em sua trilogia o sr. faz uma defesa do Iluminismo, sobretudo quando trata de Philippe Pinel. Ao mesmo tempo, o sr. critica Foucault.
Pichar a psiquiatria como opressão e marginalização do diferente é muito fácil do ponto de vista filosófico, principalmente quando se escreve uma história do papel social do louco, de como a loucura é produzida e como a sociedade trata o louco. Isso é o que Foucault fez com o nome de "História da Loucura". A meu ver, uma história da loucura é coisa bem diferente, é como essa aberração da conduta normal tem sido conceituada e tratada pelos especialistas.
Por isso nos meus três livros a análise está baseada em textos de primeira mão. Esta é a minha história da loucura, a qual implica um enfoque da loucura como patologia, e não como reivindicação de direitos ou denúncia de opressão. Nesse sentido os iluministas foram redentores, sem deixar de abordar a questão cientificamente.
O oposto do que fazia o inglês Haslan?
O Haslan é de fato um protótipo da truculência e do abuso. Já os iluministas e os mentalistas seguidores de Pinel eram redentores do louco. Só que, na carência de uma teoria mais acabada da loucura, eles também eram repressivos -como aliás qualquer colégio da época. A visão do manicômio como lugar de reeducação é o que caracteriza o trabalho de Pinel. A transformação do manicômio em depósito de loucos é produto da outra visão. O Foucault é contra as duas, porque ambas de algum modo implicam a marginalização e a opressão. Não se pode negar a sua riqueza de análise, de informações e de intuições geniais, mas o que ele fez não é uma história da loucura, e sim uma história da opressão. Quanto a isso não há uma vírgula a mudar. O problema é que, quando se estuda a evolução da psiquiatria, não é essa a abordagem que pode trazer mais luz.
A certa altura de "O Século dos Manicômios" o sr. diz que "a institucionalização do tratamento manicomial destruiu o sonho iluminístico de Pinel". Essa institucionalização não decorreria desse sonho iluminístico?
Na verdade o que Pinel queria era o manicômio como instituição de reeducação. A função do psiquiatra era criar condições para que cada louco tivesse experiências contrárias à sua distorção do conhecimento sobre o mundo e sobre si. Inventavam-se inclusive situações teatrais, como fingir que o paciente havia expelido uma serpente etc. Depois disso o manicômio se tornou um lugar onde o doente é confinado para receber tratamento físico. Daí a truculência. Mas é preciso lembrar que esse arsenal de métodos violentos não era tanto um retrato da prepotência, mas da impotência da medicina diante da loucura. Havia um animal a ser controlado.
Boa parte do pensamento do século 20, sobretudo a partir de Adorno, fez a crítica do Iluminismo. O sr. acha que é hora de proceder a uma reavaliação dessa crítica?
O grande problema é o que se define por Iluminismo. Se você admite que a vida deve ser conduzida exclusivamente segundo a razão, chega-se ao total desprezo pelas emoções do outro. Segundo o Iluminismo, a razão iria resolver os problemas do homem, mas ela não implicava a negação da paixão. Aliás, no iluminismo grego, da época de Eurípides, isso fica claro. Simultaneamente ao racionalismo socrático, que via a paixão como mera fonte de erro do conhecimento ou da conduta moral, se desenvolvia a idéia, graças sobretudo a Eurípides, de que a paixão é inarredável, não há como excluí-la, caso contrário não há mais o homem. Começa aí a aceitação da contradição e da paixão como, muitas vezes, a bússola da vida. Já a razão dirigida só por si, sem consideração de todos os aspectos da vida, pode criar monstros realmente. Você calcula quantas pessoas precisam ser eliminadas para que não falte comida.
Voltando à questão dos métodos terapêuticos do século 19, eles lembram os instrumentos de tortura da Inquisição. As instituições psiquiátricas teriam se apropriado da idéia de que a tortura "liberta a alma dos males"?
É a velha idéia de que se aprende com o sofrimento. Pode ser a doença, a perda de um ente querido ou a dor. Realmente essa idéia passa, e até hoje há gente que pensa assim.
O choque elétrico ainda é muito usado?
Infelizmente sim. É medieval. Há inclusive pesquisas que defendem que ele não é tão lesivo, que pode fazer bem, que em alguns casos é o único recurso.
E a lobotomia?
Esta não se pratica mais, porque causa um dano irreparável. Se bem que, segundo alguns estudos dos anos 60, o eletrochoque "cozinhe" uma grande quantidade de células corticais. Quando eu dava aula nos anos 60 sobre psicologia médica, costumava dizer que, se o problema é sedar o paciente e garantir a tranquilidade da equipe médica, é muito mais barato uma tijolada na cabeça -pelo menos não deixa danos irreparáveis.
O sr. acha que a ficção é um ponto de vista privilegiado para entender a loucura?
Acho que sim. A loucura é o ser humano em seu limite. A ciência tem um arsenal e recursos conceituais muito pobres nessa hora. Como a ciência vai chegar ao homem que tem uma visão distorcida de si mesmo ou do mundo? Temos aí 23 séculos de categorias que buscam entender isso, as quais até o século 17 se limitavam a três: mania, melancolia e demência. Hoje as subdivisões do DSM somam mais de 2.000 quadros clínicos possíveis. Toda a vida virou matéria psiquiátrica. Isso indica que, na falta de um conhecimento adequado do objeto, inventam-se sistemas de enquadramento do sintoma nas categorias, como se esses sistemas pudessem fazer um curto-circuito entre o problema de definir corretamente o que está acontecendo com o paciente e a formulação teórica do que acontece. Esses sistemas são apenas um recurso administrativo para uniformizar a linguagem do psiquiatra.
O que lhe dá mais prazer, pesquisar em psicologia ou para os romances?
Sem dúvida para os romances, é muito mais divertido. Principalmente porque você não tem a obrigação de acertar. Em psicologia há o risco do erro e do acerto e, depois, o crivo dos outros cientistas. Nos romances, você é seu próprio juiz.
Então o sr. não teme o juízo dos críticos literários?
Não. Mas não gostei de uma manchete que saiu sobre "A Lua da Verdade". Foi demolidora, o que se pode dizer de pior sobre um romance: "Romance de Isaias Pessotti desorienta e entedia". Com isso, fiquei meio escaldado.
Os tempos atuais são um campo fértil para a loucura ou nunca fomos tão "normais"?
Nunca a normalidade foi tão desumanizante. De certo modo estamos vivendo um sistema de vida urbano alienante, neurotizante e sobretudo esvaziante. Por isso as paixões não têm mais sentido. O próprio amor e a relação sexual se banalizaram de um modo incrível. Então vamos nos pendurar em quê? Daí o sucesso dos misticismos vários. É contra isso que escrevo meus romances e quero dar aula de filosofia.



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