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Ponto de fuga
Ressurreição
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Ano de 1946: em Londres, num leilão, eram vendidos quadros colecionados por um nobre escocês,
lorde Kinnaird. Entre eles, um pequeno painel representando a ressurreição
de Cristo. O célebre expert Bernard Berenson o atribuíra a um obscuro discípulo de
Perugino, Mariano de Ser Eusterio. Ao que
parece, essa autoria secundária fez com que
a National Gallery de Londres desdenhasse
sua compra. Terminou sendo adquirido
pelo Masp (Museu de Arte de São Paulo).
Pietro Maria Bardi vira nele um Rafael, autoria sugerida também por alguns outros
especialistas. Houve debates; quando Jean
Pierre Cuzin o publicou com destaque em
sua monografia sobre o pintor, cuidou em
por uma legenda dubitativa: "Raphael (?)".
Na grande exposição londrina, "Rafael,
de Urbino a Roma", que se encerrou há
pouco, o pequeno painel, emprestado pelo
Masp, ficou em evidência. Pela primeira
vez pôde ser visto num conjunto significativo de outras obras do pintor. Estava ao lado
de alguns estudos sobre papel, entre eles
um esboço para a figura do Cristo, recentemente descoberto em Pesaro. Esse contexto permitiu análises comparativas, seguidas por outras, estilísticas e técnicas (em
particular, exame infravermelho e raios X
que revelaram substratos preparatórios característicos do pintor).
Os especialistas não duvidam mais: trata-se de um esplêndido Rafael da juventude,
indiscutível. "Essa bela pintura", diz o catálogo da mostra, "aqui certificada como
obra autógrafa de Rafael...". O olho do professor Bardi não se enganara, e o quadro
volta agora para São Paulo coroado pela exposição da National Gallery, museu que o
teria recusado há seis décadas...
Percurso
A grande mostra de Londres sobre Rafael
pôs o acento na formação do artista. Primeiro com seu pai, Giovanni Santi, que
morreu quando o menino tinha apenas sete anos, mas que lhe deixou o exemplo de
painéis onde se reúnem a firmeza do desenho e a finura atmosférica. Depois, seu
aprendizado no ateliê de Perugino, o contato com Pinturicchio, a impregnação de
uma arte transfigurada pela suavidade espiritual. Em seguida, Florença e o choque,
também, em Roma, ocorre a revelação da
arte veneziana, que lhe torna a paleta mais
calorosa e a pincelada mais livre, como na
soberba "Donna Velata", último quadro da
exposição.
Rafael morre em 1520, com 37 anos. Sua
obra atinge o apogeu da beleza, do equilíbrio, dos ritmos serenos, pondo em cena
uma humanidade muito concreta mas
muito elevada também.
Ele encarna a mais alta idéia de classicismo na pintura: há um "antes" e um "depois" de Rafael. Serviu de modelo, foi proposto nas academias e escolas como a encarnação do "belo ideal" a ser reproduzido,
o que provocou recusas, rebeldias, condenações por artistas que se queriam livres de
uma ortodoxia da beleza. Mas esse Rafael
estreito das escolas não é o verdadeiro. Porque o classicismo e a beleza de Rafael são
feitos de uma vitalidade intuitiva interna,
que a cópia não consegue atingir.
Modo
pertence à mesma família de Manet, de
Picasso. Eles são, os três, artistas que procuram, em outros, alimento para si próprios.
Não de maneira servil, está claro. Mas para
absorver esses modos alheios numa síntese
nova e segura.
Tempo
Além do gênio, Rafael tinha outros dons.
Era belo, elegante, afável. Foi amado pelas
mulheres, teve a amizade e a admiração dos
homens. Mesmo a morte lhe foi amiga: precoce, ela completou sua perfeição, preservando-lhe a juventude para sempre.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail - jorgecoli@uol.com.br
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