São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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Ponto de fuga

Ressurreição

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Ano de 1946: em Londres, num leilão, eram vendidos quadros colecionados por um nobre escocês, lorde Kinnaird. Entre eles, um pequeno painel representando a ressurreição de Cristo. O célebre expert Bernard Berenson o atribuíra a um obscuro discípulo de Perugino, Mariano de Ser Eusterio. Ao que parece, essa autoria secundária fez com que a National Gallery de Londres desdenhasse sua compra. Terminou sendo adquirido pelo Masp (Museu de Arte de São Paulo). Pietro Maria Bardi vira nele um Rafael, autoria sugerida também por alguns outros especialistas. Houve debates; quando Jean Pierre Cuzin o publicou com destaque em sua monografia sobre o pintor, cuidou em por uma legenda dubitativa: "Raphael (?)".
Na grande exposição londrina, "Rafael, de Urbino a Roma", que se encerrou há pouco, o pequeno painel, emprestado pelo Masp, ficou em evidência. Pela primeira vez pôde ser visto num conjunto significativo de outras obras do pintor. Estava ao lado de alguns estudos sobre papel, entre eles um esboço para a figura do Cristo, recentemente descoberto em Pesaro. Esse contexto permitiu análises comparativas, seguidas por outras, estilísticas e técnicas (em particular, exame infravermelho e raios X que revelaram substratos preparatórios característicos do pintor).
Os especialistas não duvidam mais: trata-se de um esplêndido Rafael da juventude, indiscutível. "Essa bela pintura", diz o catálogo da mostra, "aqui certificada como obra autógrafa de Rafael...". O olho do professor Bardi não se enganara, e o quadro volta agora para São Paulo coroado pela exposição da National Gallery, museu que o teria recusado há seis décadas...

Percurso
A grande mostra de Londres sobre Rafael pôs o acento na formação do artista. Primeiro com seu pai, Giovanni Santi, que morreu quando o menino tinha apenas sete anos, mas que lhe deixou o exemplo de painéis onde se reúnem a firmeza do desenho e a finura atmosférica. Depois, seu aprendizado no ateliê de Perugino, o contato com Pinturicchio, a impregnação de uma arte transfigurada pela suavidade espiritual. Em seguida, Florença e o choque, também, em Roma, ocorre a revelação da arte veneziana, que lhe torna a paleta mais calorosa e a pincelada mais livre, como na soberba "Donna Velata", último quadro da exposição.
Rafael morre em 1520, com 37 anos. Sua obra atinge o apogeu da beleza, do equilíbrio, dos ritmos serenos, pondo em cena uma humanidade muito concreta mas muito elevada também.
Ele encarna a mais alta idéia de classicismo na pintura: há um "antes" e um "depois" de Rafael. Serviu de modelo, foi proposto nas academias e escolas como a encarnação do "belo ideal" a ser reproduzido, o que provocou recusas, rebeldias, condenações por artistas que se queriam livres de uma ortodoxia da beleza. Mas esse Rafael estreito das escolas não é o verdadeiro. Porque o classicismo e a beleza de Rafael são feitos de uma vitalidade intuitiva interna, que a cópia não consegue atingir.

Modo
pertence à mesma família de Manet, de Picasso. Eles são, os três, artistas que procuram, em outros, alimento para si próprios. Não de maneira servil, está claro. Mas para absorver esses modos alheios numa síntese nova e segura.

Tempo
Além do gênio, Rafael tinha outros dons. Era belo, elegante, afável. Foi amado pelas mulheres, teve a amizade e a admiração dos homens. Mesmo a morte lhe foi amiga: precoce, ela completou sua perfeição, preservando-lhe a juventude para sempre.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail - jorgecoli@uol.com.br


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