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A cultura do BOCA A BOCA
Vicente Yu - 5.mai.2003/Associated Press
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Estudante almoça em restaurante da Universidade Politécnica de Hong Kong |
Em entrevista à Folha, o historiador norte-americano Robert Darnton explica como a perseguição à nobreza durante a Revolução Francesa ajudou a desenvolver os restaurantes e popularizar a gastronomia
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
P
rofessor de história na Universidade Princeton (EUA),
Robert Darnton é, hoje, um
dos principais historiadores
culturais do período que gravita em
torno da Revolução Francesa (1789).
É autor de livros que alargaram a
compreensão da revolução e de seus
antecedentes, vinculando aspectos
políticos e econômicos, objetos tradicionais de estudos, a tópicos menos abordados, como os costumes e
a imprensa popular.
É o caso de "Edição e Sedição"
(Cia. das Letras), "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da
História Cultural Francesa" (Graal)
e "Boemia Literária e Revolução"
(Cia. das Letras). Neste último, ele
analisa os "libelos", textos clandestinos comuns nas últimas décadas
que precederam a Revolução Francesa (1789) e que divulgavam histórias maliciosas sobre a corte.
Conspirações políticas e refeições muitas vezes caminharam juntas
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Na entrevista abaixo, Darnton explica como a perseguição à nobreza
desencadeada pela Revolução Francesa provocou a expansão e consolidação dos restaurantes, fala dos rituais centenários dos jantares em
Oxford e Cambridge e comenta também a relação entre gastronomia,
cultura e política.
Folha - Qual é a origem dos restaurantes? Depois da Revolução Francesa, como se tornaram espaços sociais,
ao invés de espaços privados para a
aristocracia?
Robert Darnton - Apesar de ser comum acreditar que a Revolução
Francesa tenha criado o restaurante,
junto com a liberdade, igualdade e
fraternidade, na verdade (se minha
memória não falha) o primeiro restaurante foi aberto em Paris por volta de 1765 por um homem chamado
Boulanger [padeiro, em francês].
Não que fosse um padeiro. Era especializado em sopas, especialmente
em sopas leves e variações de "bouillons" [caldos]. Ele chamou seu estabelecimento de "restaurante" porque o objetivo era "restaurar" (recuperar) as pessoas -ou seja, ajudá-las a se recuperar de várias doenças e
indisposições, inclusive quando comiam demais.
Assim, as pessoas foram ao primeiro restaurante não para comer,
mas para se recuperar de comer. Como se fosse para se curar. Mas a revolução fez uma enorme diferença
porque os chefs que serviam aos
aristocratas -que emigraram da
França- estavam desempregados e
criaram lugares públicos para alimentação, providenciando menus
completos, em vez de refeições fixas
preestabelecidas. Seus estabelecimentos eram muito apreciados pelos deputados da Assembléia Nacional, que viviam em quartos alugados
e sentiam falta das refeições que comiam nas Províncias.
A habilidade de compor pratos
com um repertório de tentações
completo diferenciou os novos restaurantes das velhas "tables d'hôte"
[mesas para hóspedes] em estalagens e tabernas. Da Paris revolucionária a nova instituição se espalhou
para o mundo e ainda está forte,
apesar do fast food americano, que
não nos "restaura" de nada.
Folha - Na opinião do sr., qual é a relação entre gastronomia, cultura e
política?
Darnton - Honestamente, não sei,
mas posso arriscar alguns palpites.
Considero "cultura" no sentido amplo, como os antropólogos: assim,
acho normal que Claude Lévi-Strauss, ao discutir culturas (especialmente em regiões do Brasil), faça
distinção entre "le cru et le cuit" -o
cru e o cozido. Mary Douglas, outra
grande antropóloga, dedicou sua
aula inaugural na Universidade de
Londres a um balanço estruturalista
da comida inglesa.
O ato de comer é obviamente um
ingrediente crucial para a socialização e para estabelecer laços entre as
pessoas. O jantar nas faculdades de
Oxford ainda é um ritual importante
e elaborado. Varia de faculdade para
faculdade, mas na All Souls College,
onde passei os últimos cinco anos,
acontece num grande saguão. Todos
os colegas vestem as becas acadêmicas (o desenho delas indica nuanças
e posições hierárquicas). Ficamos de
pé até que o diretor tenha feito uma
prece em latim. São servidos diversos pratos por auxiliares cuidadosamente coreografados.
E, depois de outra oração em latim, nos dirigimos para um quarto
privativo, onde bebemos clarete, vinho do porto e conhaque -agora
sem as becas- acompanhados de
frutas e queijo, tudo isso girando numa mesa em sentido horário. E, para
aqueles que precisam ser "restaurados" de tanto vinho fino, uma caixinha de rapé circula e dá um ânimo
novo, com ou sem espirros (as opiniões se dividem sobre como deve
ser o toque final).
Nada é mais típico da cultura acadêmica de Oxford e Cambridge do
que esses jantares rituais, que se repetem há centenas de anos, mesmo
que continuem mudando e tenham
adquirido sua forma atual apenas
dois séculos atrás, na época da "invenção da tradição". Em relação à
política, era comum na Inglaterra
que as senhoras se retirassem após
as refeições para aposentos separados onde pudessem discutir assuntos domésticos, enquanto os homens acendiam charutos e falavam
de política. Compareci a jantares na
Inglaterra em que o ritual ainda
acontece. Mas está quase extinto.
O melhor exemplo de jantares políticos talvez sejam aqueles que ocorreram para precipitar a revolução
que aconteceu na França em 1830.
Conspirações políticas e refeições
muitas vezes caminharam juntas, e
acredito que os políticos freqüentemente fazem negócios na mesa de
jantar -como ocorre no famoso
restaurante do Senado dos EUA.
Nós, pobres cidadãos, pagamos a
conta.
Folha - Como a gastronomia mudou
com o tempo? Dizer que a cozinha
francesa é a mais importante, por
exemplo, é senso comum. O que o sr.
acha disso? E do fato de outras cozinhas, como a catalã, estarem se tornando mais importantes?
Darnton - O conceito de cozinha
sofisticada obviamente passou por
muitos estágios no Ocidente desde
os epicuristas, na Grécia Antiga, ou
as extravagâncias da Roma Antiga.
Suponho que o ponto de inflexão seja o Renascimento italiano, em que a
culinária e as refeições se transformaram em uma forma de arte, o que
foi levado para a França por Maria
de Médici.
Nessa época, um novo espírito
apareceu nos livros de culinária.
Temperos eram usados com moderação para despertar o sabor, e não
para disfarçar carne rançosa.
A etiqueta das refeições na corte
atingiu seu apogeu na época de Luís
14, quando a chegada do garfo pode
ser o marco de um limiar cultural e
psicológico que atravessamos, se
acreditarmos em Norbert Elias.
De qualquer forma, no final do século 17, jantares sofisticados na
França começaram a ficar parecidos
com o drama clássico francês. Ao invés de se servirem todas as comidas
ao mesmo tempo, viraram uma sucessão de pratos, começando com a
entrada ("entrée") e acabando com a
finalização ("sortie"), mais tarde
chamada de sobremesa ("dessert",
do verbo "desservir", que indica finalizar um serviço).
Não me lembro de quem cunhou o
termo "gastronomia". Pode ter sido
Grimod de la Reynière, um grande
conhecedor de comidas que também era um crítico teatral e homem
de letras. Mas, evidentemente, Brillat-Savarin é celebrado hoje como o
maior gastrônomo. Isso nos leva ao
século 19, uma época maravilhosa
para jantar em restaurantes nos bulevares parisienses e em lugares especiais, como o Rocher de Cancale,
onde Balzac devorava ostras.
Talvez o século 20 passe a ser conhecido principalmente pela nouvelle-cuisine. Pessoalmente, prefiro a
velha "cuisine bourgeoise" [cozinha
burguesa], com molhos cremosos e
excessos deliciosos.
Mas vejo que continuo dando
exemplos franceses. De fato, preciso
admitir que realmente considero a
cozinha francesa a melhor, mundialmente. Não há dúvida de que é uma
visão estreita, limitada culturalmente. Não gostaria de discutir sobre a
glória da cozinha chinesa e apenas
recentemente aprendi a apreciar as
grandes tradições da cozinha fina do
Peru e do México.
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