São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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A cultura do BOCA A BOCA

Vicente Yu - 5.mai.2003/Associated Press
Estudante almoça em restaurante da Universidade Politécnica de Hong Kong


Em entrevista à Folha, o historiador norte-americano Robert Darnton explica como a perseguição à nobreza durante a Revolução Francesa ajudou a desenvolver os restaurantes e popularizar a gastronomia

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

P rofessor de história na Universidade Princeton (EUA), Robert Darnton é, hoje, um dos principais historiadores culturais do período que gravita em torno da Revolução Francesa (1789). É autor de livros que alargaram a compreensão da revolução e de seus antecedentes, vinculando aspectos políticos e econômicos, objetos tradicionais de estudos, a tópicos menos abordados, como os costumes e a imprensa popular.
É o caso de "Edição e Sedição" (Cia. das Letras), "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa" (Graal) e "Boemia Literária e Revolução" (Cia. das Letras). Neste último, ele analisa os "libelos", textos clandestinos comuns nas últimas décadas que precederam a Revolução Francesa (1789) e que divulgavam histórias maliciosas sobre a corte.


Conspirações políticas e refeições muitas vezes caminharam juntas


Na entrevista abaixo, Darnton explica como a perseguição à nobreza desencadeada pela Revolução Francesa provocou a expansão e consolidação dos restaurantes, fala dos rituais centenários dos jantares em Oxford e Cambridge e comenta também a relação entre gastronomia, cultura e política.

Folha - Qual é a origem dos restaurantes? Depois da Revolução Francesa, como se tornaram espaços sociais, ao invés de espaços privados para a aristocracia?
Robert Darnton -
Apesar de ser comum acreditar que a Revolução Francesa tenha criado o restaurante, junto com a liberdade, igualdade e fraternidade, na verdade (se minha memória não falha) o primeiro restaurante foi aberto em Paris por volta de 1765 por um homem chamado Boulanger [padeiro, em francês]. Não que fosse um padeiro. Era especializado em sopas, especialmente em sopas leves e variações de "bouillons" [caldos]. Ele chamou seu estabelecimento de "restaurante" porque o objetivo era "restaurar" (recuperar) as pessoas -ou seja, ajudá-las a se recuperar de várias doenças e indisposições, inclusive quando comiam demais.
Assim, as pessoas foram ao primeiro restaurante não para comer, mas para se recuperar de comer. Como se fosse para se curar. Mas a revolução fez uma enorme diferença porque os chefs que serviam aos aristocratas -que emigraram da França- estavam desempregados e criaram lugares públicos para alimentação, providenciando menus completos, em vez de refeições fixas preestabelecidas. Seus estabelecimentos eram muito apreciados pelos deputados da Assembléia Nacional, que viviam em quartos alugados e sentiam falta das refeições que comiam nas Províncias.
A habilidade de compor pratos com um repertório de tentações completo diferenciou os novos restaurantes das velhas "tables d'hôte" [mesas para hóspedes] em estalagens e tabernas. Da Paris revolucionária a nova instituição se espalhou para o mundo e ainda está forte, apesar do fast food americano, que não nos "restaura" de nada.

Folha - Na opinião do sr., qual é a relação entre gastronomia, cultura e política?
Darnton -
Honestamente, não sei, mas posso arriscar alguns palpites. Considero "cultura" no sentido amplo, como os antropólogos: assim, acho normal que Claude Lévi-Strauss, ao discutir culturas (especialmente em regiões do Brasil), faça distinção entre "le cru et le cuit" -o cru e o cozido. Mary Douglas, outra grande antropóloga, dedicou sua aula inaugural na Universidade de Londres a um balanço estruturalista da comida inglesa.
O ato de comer é obviamente um ingrediente crucial para a socialização e para estabelecer laços entre as pessoas. O jantar nas faculdades de Oxford ainda é um ritual importante e elaborado. Varia de faculdade para faculdade, mas na All Souls College, onde passei os últimos cinco anos, acontece num grande saguão. Todos os colegas vestem as becas acadêmicas (o desenho delas indica nuanças e posições hierárquicas). Ficamos de pé até que o diretor tenha feito uma prece em latim. São servidos diversos pratos por auxiliares cuidadosamente coreografados.
E, depois de outra oração em latim, nos dirigimos para um quarto privativo, onde bebemos clarete, vinho do porto e conhaque -agora sem as becas- acompanhados de frutas e queijo, tudo isso girando numa mesa em sentido horário. E, para aqueles que precisam ser "restaurados" de tanto vinho fino, uma caixinha de rapé circula e dá um ânimo novo, com ou sem espirros (as opiniões se dividem sobre como deve ser o toque final).
Nada é mais típico da cultura acadêmica de Oxford e Cambridge do que esses jantares rituais, que se repetem há centenas de anos, mesmo que continuem mudando e tenham adquirido sua forma atual apenas dois séculos atrás, na época da "invenção da tradição". Em relação à política, era comum na Inglaterra que as senhoras se retirassem após as refeições para aposentos separados onde pudessem discutir assuntos domésticos, enquanto os homens acendiam charutos e falavam de política. Compareci a jantares na Inglaterra em que o ritual ainda acontece. Mas está quase extinto.
O melhor exemplo de jantares políticos talvez sejam aqueles que ocorreram para precipitar a revolução que aconteceu na França em 1830. Conspirações políticas e refeições muitas vezes caminharam juntas, e acredito que os políticos freqüentemente fazem negócios na mesa de jantar -como ocorre no famoso restaurante do Senado dos EUA. Nós, pobres cidadãos, pagamos a conta.

Folha - Como a gastronomia mudou com o tempo? Dizer que a cozinha francesa é a mais importante, por exemplo, é senso comum. O que o sr. acha disso? E do fato de outras cozinhas, como a catalã, estarem se tornando mais importantes?
Darnton -
O conceito de cozinha sofisticada obviamente passou por muitos estágios no Ocidente desde os epicuristas, na Grécia Antiga, ou as extravagâncias da Roma Antiga. Suponho que o ponto de inflexão seja o Renascimento italiano, em que a culinária e as refeições se transformaram em uma forma de arte, o que foi levado para a França por Maria de Médici.
Nessa época, um novo espírito apareceu nos livros de culinária. Temperos eram usados com moderação para despertar o sabor, e não para disfarçar carne rançosa.
A etiqueta das refeições na corte atingiu seu apogeu na época de Luís 14, quando a chegada do garfo pode ser o marco de um limiar cultural e psicológico que atravessamos, se acreditarmos em Norbert Elias.
De qualquer forma, no final do século 17, jantares sofisticados na França começaram a ficar parecidos com o drama clássico francês. Ao invés de se servirem todas as comidas ao mesmo tempo, viraram uma sucessão de pratos, começando com a entrada ("entrée") e acabando com a finalização ("sortie"), mais tarde chamada de sobremesa ("dessert", do verbo "desservir", que indica finalizar um serviço).
Não me lembro de quem cunhou o termo "gastronomia". Pode ter sido Grimod de la Reynière, um grande conhecedor de comidas que também era um crítico teatral e homem de letras. Mas, evidentemente, Brillat-Savarin é celebrado hoje como o maior gastrônomo. Isso nos leva ao século 19, uma época maravilhosa para jantar em restaurantes nos bulevares parisienses e em lugares especiais, como o Rocher de Cancale, onde Balzac devorava ostras.
Talvez o século 20 passe a ser conhecido principalmente pela nouvelle-cuisine. Pessoalmente, prefiro a velha "cuisine bourgeoise" [cozinha burguesa], com molhos cremosos e excessos deliciosos.
Mas vejo que continuo dando exemplos franceses. De fato, preciso admitir que realmente considero a cozinha francesa a melhor, mundialmente. Não há dúvida de que é uma visão estreita, limitada culturalmente. Não gostaria de discutir sobre a glória da cozinha chinesa e apenas recentemente aprendi a apreciar as grandes tradições da cozinha fina do Peru e do México.


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