São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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Um dos mais influentes antropólogos vivos, Marshall Sahlins reúne em "Cultura na Prática" textos sobre Rousseau, Marx e a Guerra do Vietnã

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ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cultura na Prática" é uma espécie de autobiografia intelectual de Marshall Sahlins, um dos mais influentes e eruditos antropólogos contemporâneos. O livro reúne ensaios anteriormente publicados e alguns textos inéditos. O volume atravessa diversas fases do pensamento do professor da Universidade de Chicago, reiterando a centralidade da cultura na história da humanidade.
Nos textos reunidos na parte um, "Cultura", publicados a partir do início da década de 60, o autor questiona interpretações clássicas sobre a carência como chave de explicação da transição do paleolítico para o neolítico ou sobre a determinação física das classificações cromáticas.
Essa parte teórica introdutória se encerra com o conhecido ensaio ""La Pensée Bourgeoise" - A Sociedade Ocidental como Cultura", último capítulo de "Cultura e Razão Prática", de 1976, em que o autor se debruça sobre sua própria sociedade na tentativa de revelar que em pleno capitalismo avançado -como na Pré-História- a dimensão simbólica do comportamento humano mantém sua especificidade.
Merece destaque a seção dois, "Prática", que reúne textos inéditos que revelam o intenso engajamento de Sahlins, durante os anos 60, na campanha pacifista contra a Guerra do Vietnã.
Nos ensaios da parte três, "Cultura na Prática", o autor se aventura a abordar teorias canônicas no Ocidente no mesmo registro e com os mesmos instrumentos com que analisa teorias nativas das ilhas do Pacífico Sul. A abordagem permite que temas clássicos das ciências sociais e da filosofia ganhem novos contornos e se relativizem.

Aventura arqueológica
Há aqui estudos sobre o encontro colonial nas ilhas Fiji, sobre as relações entre experiência individual e ordem cultural, estrutura e evento, permanência e mudança. O capítulo 16, "A Tristeza da Doçura ou a Antropologia Nativa da Cosmologia Ocidental", que encerra o volume, coroa o que poderia ser caracterizado como uma aventura arqueológica nos fundamentos do pensamento ocidental.
O projeto é de ampla envergadura. Formado na tradição da antropologia culturalista americana, Sahlins experimentou o marxismo, o estruturalismo e a história. Ultimamente, questionou as teorias do "sistema mundial", chamando a atenção para as diferenças que insistem e persistem como elementos intrínsecos à globalização contemporânea.
Do mito do pecado original na linhagem judaico cristã à prevalência do homem econômico, entendido como criatura prisioneira de necessidades insaciáveis, movido pelo interesse, condenado a viver em busca da superação de uma escassez sempre renovada, o autor visita o legado de pensadores como santo Agostinho, Hobbes, Locke, Rousseau, Adam Smith, Marx, Weber, Durkheim, Freud. O fio que permite a amplitude do percurso e perpassa o livro inteiro é a busca coerente e consistente de alternativas a teorias identificadas como "utilitaristas", "reducionistas" ou "economicistas" da vida humana, nas mais diversas épocas e lugares.

Ironia fina
O tom sofisticado, profundamente erudito do trabalho é temperado por uma ironia fina (que, na versão brasileira, perdeu um pouco da sutileza), marca registrada de um intelectual irreverente, bem-humorado, provocador.
No contexto do debate intelectual norte-americano dos anos 90, dominado por uma leitura particular e simplória de Foucault (cuja crítica, no mesmo nível, é assunto do panfleto "Esperando Foucault", publicado no Brasil em versão ampliada), "Cultura na Prática" aparece como uma espécie de defesa fundamentada de um pensador original, reconhecido nas orgulhosas lides francesas, mas acusado em círculos do Oriente e em sua terra natal de etnocentrismo e descaso para com a problemática da dominação colonial.
Não à toa, Sahlins abre o livro com um texto escrito em forma de peça de teatro, uma ficção que brinca com teorias conspiratórias sobre a natureza humana, publicada originalmente em 1964. O ato de escrever e o estilo do texto ganhou relevância na esteira do trabalho hermenêutico de outro mestre, muitas vezes identificado como inspirador de movimentos pós-modernos na antropologia e nos estudos literários, Clifford Geertz.
A publicação realça também o ativismo político de Sahlins nos anos 60, então jovem professor, envolvido no chamado "teach in", movimento universitário de protesto contra a Guerra do Vietnã, por ele interpretado como momento relevante na configuração de seu pensamento, que teria se adensado com o enfrentamento de injunções inesperadas entre diversas "teorias" e "práticas". Na contramão de pensadores contemporâneos, que, na tradição iluminista, idealizam a comunicação transparente, os estudos historiográficos que Sahlins reuniu na última parte do livro salientam o mal entendido e o recurso à força como elementos intrínsecos às relações interculturais.

Arena estreita
Para além dos limites, em certo sentido, estreitos da arena acadêmica dos EUA e das oposições ideológicas simplistas, cujo significado os paradoxos postos pela contemporaneidade se encarregaram de dissolver, o trabalho de Marshall Sahlins pode inspirar quem se interessar em reinterpretar a fascinação com o desenvolvimentismo que marcou a história de inúmeros países latinos situados ao sul do Equador.
Praticante incondicional de um relativismo antropológico que se inspira no reconhecimento profundo de sistemas simbólicos não-ocidentais, Sahlins pode ser entendido como um crítico rigoroso de concepções evolucionistas, que imaginaram que os países "periféricos" tenderiam a seguir o rumo inexorável do "progresso" tal como apontado na trajetória dos países industriais.
Sahlins realiza a passagem, rara, da análise empírica para a teoria refinada, em um esmiuçar artesanal de casos selecionados, que fazem emergir conceitos que subvertem perspectivas de senso comum.
O legado antropológico emerge em sua obra como cabedal apto a analisar diferentes lógicas de significação, a compreender construções simbólicas da experiência, como teorias e práticas nativas diante das quais o utilitarismo ocidental deixa de ser chave explicativa para se tornar um exemplo. Em tempos em que a crise dos paradigmas clássicos se tornou lugar-comum, "Cultura na Prática" pode ser lido como um exercício heterodoxo sugestivo.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Cultura na Prática
680 págs., R$ 88,00 de Marshall Sahlins. Trad. Vera Ribeiro. Editora UFRJ (av. Pasteur, 250, CEP 22290-902, RJ, tel. 0/xx/21/2295-1595, ramal 111).



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