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Um dos mais influentes antropólogos vivos, Marshall Sahlins reúne em
"Cultura na Prática" textos sobre Rousseau, Marx e a Guerra do Vietnã
Símbolos em rotação
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Cultura na Prática" é uma espécie de autobiografia intelectual de Marshall Sahlins,
um dos mais influentes e
eruditos antropólogos contemporâneos. O livro reúne ensaios anteriormente publicados e alguns textos
inéditos. O volume atravessa diversas fases do pensamento do professor da Universidade de Chicago, reiterando a centralidade da cultura na
história da humanidade.
Nos textos reunidos na parte um,
"Cultura", publicados a partir do
início da década de 60, o autor questiona interpretações clássicas sobre a
carência como chave de explicação
da transição do paleolítico para o
neolítico ou sobre a determinação física das classificações cromáticas.
Essa parte teórica introdutória se
encerra com o conhecido ensaio
""La Pensée Bourgeoise" - A Sociedade Ocidental como Cultura", último
capítulo de "Cultura e Razão Prática", de 1976, em que o autor se debruça sobre sua própria sociedade
na tentativa de revelar que em pleno
capitalismo avançado -como na
Pré-História- a dimensão simbólica do comportamento humano
mantém sua especificidade.
Merece destaque a seção dois,
"Prática", que reúne textos inéditos
que revelam o intenso engajamento
de Sahlins, durante os anos 60, na
campanha pacifista contra a Guerra
do Vietnã.
Nos ensaios da parte três, "Cultura
na Prática", o autor se aventura a
abordar teorias canônicas no Ocidente no mesmo registro e com os
mesmos instrumentos com que analisa teorias nativas das ilhas do Pacífico Sul. A abordagem permite que
temas clássicos das ciências sociais e
da filosofia ganhem novos contornos e se relativizem.
Aventura arqueológica
Há aqui estudos sobre o encontro
colonial nas ilhas Fiji, sobre as relações entre experiência individual e
ordem cultural, estrutura e evento,
permanência e mudança. O capítulo
16, "A Tristeza da Doçura ou a Antropologia Nativa da Cosmologia
Ocidental", que encerra o volume,
coroa o que poderia ser caracterizado como uma aventura arqueológica nos fundamentos do pensamento
ocidental.
O projeto é de ampla envergadura.
Formado na tradição da antropologia culturalista americana, Sahlins
experimentou o marxismo, o estruturalismo e a história. Ultimamente,
questionou as teorias do "sistema
mundial", chamando a atenção para
as diferenças que insistem e persistem como elementos intrínsecos à
globalização contemporânea.
Do mito do pecado original na linhagem judaico cristã à prevalência
do homem econômico, entendido
como criatura prisioneira de necessidades insaciáveis, movido pelo interesse, condenado a viver em busca
da superação de uma escassez sempre renovada, o autor visita o legado
de pensadores como santo Agostinho, Hobbes, Locke, Rousseau,
Adam Smith, Marx, Weber, Durkheim, Freud. O fio que permite a
amplitude do percurso e perpassa o
livro inteiro é a busca coerente e
consistente de alternativas a teorias
identificadas como "utilitaristas",
"reducionistas" ou "economicistas"
da vida humana, nas mais diversas
épocas e lugares.
Ironia fina
O tom sofisticado, profundamente
erudito do trabalho é temperado por
uma ironia fina (que, na versão brasileira, perdeu um pouco da sutileza), marca registrada de um intelectual irreverente, bem-humorado,
provocador.
No contexto do debate intelectual
norte-americano dos anos 90, dominado por uma leitura particular e
simplória de Foucault (cuja crítica,
no mesmo nível, é assunto do panfleto "Esperando Foucault", publicado no Brasil em versão ampliada),
"Cultura na Prática" aparece como
uma espécie de defesa fundamentada de um pensador original, reconhecido nas orgulhosas lides francesas, mas acusado em círculos do
Oriente e em sua terra natal de etnocentrismo e descaso para com a problemática da dominação colonial.
Não à toa, Sahlins abre o livro com
um texto escrito em forma de peça
de teatro, uma ficção que brinca
com teorias conspiratórias sobre a
natureza humana, publicada originalmente em 1964. O ato de escrever
e o estilo do texto ganhou relevância
na esteira do trabalho hermenêutico
de outro mestre, muitas vezes identificado como inspirador de movimentos pós-modernos na antropologia e nos estudos literários, Clifford Geertz.
A publicação realça também o ativismo político de Sahlins nos anos
60, então jovem professor, envolvido no chamado "teach in", movimento universitário de protesto
contra a Guerra do Vietnã, por ele
interpretado como momento relevante na configuração de seu pensamento, que teria se adensado com o
enfrentamento de injunções inesperadas entre diversas "teorias" e "práticas". Na contramão de pensadores
contemporâneos, que, na tradição
iluminista, idealizam a comunicação
transparente, os estudos historiográficos que Sahlins reuniu na última parte do livro salientam o mal
entendido e o recurso à força como
elementos intrínsecos às relações interculturais.
Arena estreita
Para além dos limites, em certo
sentido, estreitos da arena acadêmica dos EUA e das oposições ideológicas simplistas, cujo significado os
paradoxos postos pela contemporaneidade se encarregaram de dissolver, o trabalho de Marshall Sahlins
pode inspirar quem se interessar em
reinterpretar a fascinação com o desenvolvimentismo que marcou a
história de inúmeros países latinos
situados ao sul do Equador.
Praticante incondicional de um relativismo antropológico que se inspira no reconhecimento profundo
de sistemas simbólicos não-ocidentais, Sahlins pode ser entendido como um crítico rigoroso de concepções evolucionistas, que imaginaram que os países "periféricos" tenderiam a seguir o rumo inexorável
do "progresso" tal como apontado
na trajetória dos países industriais.
Sahlins realiza a passagem, rara, da
análise empírica para a teoria refinada, em um esmiuçar artesanal de casos selecionados, que fazem emergir
conceitos que subvertem perspectivas de senso comum.
O legado antropológico emerge
em sua obra como cabedal apto a
analisar diferentes lógicas de significação, a compreender construções
simbólicas da experiência, como
teorias e práticas nativas diante das
quais o utilitarismo ocidental deixa
de ser chave explicativa para se tornar um exemplo. Em tempos em
que a crise dos paradigmas clássicos
se tornou lugar-comum, "Cultura na
Prática" pode ser lido como um
exercício heterodoxo sugestivo.
Esther Hamburger é antropóloga e professora da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo.
Cultura na Prática
680 págs., R$ 88,00
de Marshall Sahlins. Trad. Vera Ribeiro. Editora UFRJ (av. Pasteur, 250, CEP 22290-902,
RJ, tel. 0/xx/21/2295-1595, ramal 111).
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