São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Recém-lançado na Inglaterra e previsto para sair no Brasil em 2006, "Sábado" afirma Ian McEwan como um dos expoentes da ficção inglesa

Danos colaterais

JAMES URQUHART
DO "INDEPENDENT"

Perder seu filho de cinco anos em um supermercado ou ver um homem despencar para a morte de um balão a cem metros de altura que você, ele e outros deixaram coletivamente de ancorar: alguns dos melhores romances de Ian McEwan começam com situações altamente emocionantes que retardam e definem a narrativa subseqüente.
"A Criança no Tempo" [ed. Rocco], que abordava temas de violência e perda, e "Enduring Love" [Amor Duradouro, sem previsão de lançamento no Brasil], que prolongava o trauma daquele acidente de balonismo com uma culpa corrosiva e uma obsessão insana, ambos fluíam de calamidades terrivelmente viscerais que envolviam e apanhavam de surpresa seus inocentes protagonistas.
Os personagens de McEwan aprendem rapidamente que a "inocência" é um estado mutável e moralmente complexo, nunca livre de suas perturbadoras irmãs, a responsabilidade e a culpa.
É isso que o eminente neurocirurgião Henry Perowne descobre, enquanto transita por um sábado que se revela especialmente difícil. A abertura de 50 páginas de "Saturday" [Sábado], embora menos cinematográfica do que um acidente de balão, é magnificamente meditativa e extensa, sem ser flácida.
Da janela de seu quarto, Perowne presencia a imagem apocalíptica de um cometa no céu noturno, que vem a ser um avião em chamas sobrevoando o centro de Londres em direção ao aeroporto de Heathrow. Ou seria um ataque terrorista? Em vez de dar o alarme, ele faz amor com sua amada mulher, Rosalind, que está despertando.

Verdades possíveis
Vistos de madrugada, os dois fatos, terror deliberado ou terrível acidente, são verdades igualmente possíveis. Perowne pensa no famoso enigma do Gato de Schrödinger (cuja morte/vida para o observador externo é igualmente verdadeira até que se abra a caixa para confirmar). Esse tema paira sobre o dia de Perowne, emoldurando o tema igualmente poderoso e envolvente da responsabilidade pública e privada pelas conseqüências da ação ou inação.
Esse sábado particular é 15 de fevereiro de 2003, dia em que milhões de pessoas se reuniram em Londres para marchar contra a iminente, embora ainda não decidida, invasão do Iraque. Perowne se levanta, vai comprar peixe, visita sua mãe desmemoriada em um lar de idosos, telefona para seu filho Theo, que está ensaiando com sua banda, e volta para casa para preparar o jantar de uma reunião de família delicada. Eles esperam o mal-humorado pai de Rosalind, o poeta John Grammaticus, que insultou o primeiro sucesso literário de sua filha Daisy, que volta de trem de um encontro com seu novo namorado em Paris.
O aconchego doméstico e sonhador de Perowne, vivamente narrado pela imaginação empática e livre de McEwan, é minado pela sensação desconfortável que sinaliza por trás da trajetória dele desde que presenciou o temível não-cometa. Esse desconforto se materializa na forma de Baxter, o motorista de uma BMW com que ele colide a caminho de um jogo de squash com um amigo.
Perowne escapa por pouco de uma surra ao diagnosticar rapidamente a doença degenerativa que alimenta a hostilidade de Baxter; mas o efeito colateral indesejável disso é que ele acidentalmente humilha Baxter na frente de seus colegas.
McEwan mistura com perfeição a ansiedade de Perowne sobre a situação do mundo com uma comemoração ricamente detalhada e reflexiva de seu trabalho clínico, sua família e os prazeres físicos exuberantes da vida: vinho, comida, música. Em um forte contraste, Baxter não pode ter os prazeres de Perowne; mas, se seu estado (apanhado por um pequeno defeito genético que causa uma doença precoce e escravizante) pode ser alvo de simpatia no nível social ou médico, sua agressão não pode ser perdoada. Como equilibrar ajuda e intervenção?
Na violenta prepotência de Baxter, McEwan elabora uma contestação direta aos argumentos inflexíveis pró e contra a invasão, que Perowne é obrigado a articular quando Daisy chega animada da maciça manifestação antiguerra no Hyde Park e critica as opiniões equilibradas de seu pai. Sua discussão repentina, esquentada e amarga, minutos depois de se cumprimentarem após seis meses de ausência, apenas salienta a complexidade moral do dilema humanitário. A defesa frágil de Perowne toca a essência de "Sábado": nenhuma linha única de ação, incluindo a própria inação, deixa de resultar em conseqüências, baixas potenciais ou culpa.

Elaborar o mundo
Revigorante e envolvente, "Sábado" tem uma intimidade agradável, cheia de revelações, sem nenhum empecilho de argumentação dogmática. Perowne é um homem admirável, que lida o melhor que pode com a idéia de mundo e seu lugar responsável nele. Raramente lê a ficção que sua filha lhe recomenda porque, como clínico ateu, quer o mundo explicado factualmente, e não reinventado como histórias.
O maravilhoso romance de McEwan demonstra como a boa ficção, ao dramatizar idéias incômodas e densas em uma narrativa profundamente pessoal, pode elaborar o mundo em bocados às vezes mais digeríveis que a reportagem factual.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Saturday
308 págs., 17,99 libras (R$ 90,00) de Ian McEwan. Jonathan Cape (Inglaterra).

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) ou no site www.amazon.co.uk



Texto Anterior: + livros: Símbolos em rotação
Próximo Texto: Leia trecho do romance "Sábado", de Ian McEwan
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.