São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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Leia trecho do romance "Sábado", de Ian McEwan

Dois rapazes asiáticos vestindo roupas de ginástica descarregam uma van com o auxílio de um carrinho de mão na calçada. Já há cartazes empilhados, faixas dobradas e caixas de botões para lapela e apitos, matracas e cornetas usadas no futebol, chapéus engraçados e máscaras de borracha de políticos -Bush e Blair em pilhas oscilantes, as caras de cima olhando cegamente para o céu, de um branco fantasmagórico sob o sol. A Gower Street, a alguns quarteirões para leste, será um dos pontos iniciais da marcha, e parte da multidão se espalhou até aqui. Um grupo ao redor do carrinho quer comprar coisas antes que os vendedores estejam prontos. Henry Perowne acha surpreendente a alegria generalizada. Há famílias inteiras, uma com quatro crianças de vários tamanhos com casacos vermelhos, que claramente receberam ordem para ficar de mãos dadas; estudantes, além de um grupo de senhoras grisalhas de casacos de retalhos com capuz e sapatos firmes. Talvez do Instituto de Mulheres. Atrás do grupo, do outro lado do carrinho, há um bando de jovens com casacos de couro e cabelos espetados, olhando com sorrisos tolerantes. Eles já desenrolaram sua faixa, que proclama simplesmente: "Paz, não slogans!!".
A cena tem um ar de inocência e de uma excentricidade bem inglesa. Perowne, olhando pela janela de seu quarto, em seu velho conjunto esportivo para combate nas quadras, imagina-se como Saddam, observando satisfeito a multidão do balcão de algum ministério em Bagdá: o bondoso eleitorado das democracias ocidentais jamais permitirá que seus governos ataquem seu país. Mas ele se engana. A única coisa que Perowne acredita saber sobre essa guerra é que ela vai acontecer. Com ou sem a ONU. As tropas estão posicionadas e vão ter de lutar.
Desde que ele tratou um professor iraquiano de história antiga de um aneurisma cerebral, viu suas cicatrizes de torturas e ouviu suas histórias, Perowne teve idéias ambivalentes -ou confusas e mutáveis- sobre essa invasão iminente. Miri Taleb, com seus sessenta e muitos anos, é um homem de compleição pequena, como de uma garota, com uma risada nervosa, um ganido intermitente que poderia ter algo a ver com o tempo que passou na prisão.
Ele fez o PhD no University College, em Londres, e fala um inglês excelente. Seu campo é a civilização suméria, e durante mais de 20 anos ele foi professor universitário em Bagdá e participou de várias explorações arqueológicas na região do Eufrates. Sua prisão ocorreu numa tarde de inverno em 1994 e foi presenciada por todos os seus alunos, diante de uma sala de aula onde ele ia dar uma palestra. Três homens mostraram suas identificações de segurança e lhe pediram para acompanhá-los até um carro. Lá o algemaram, e foi aí que começou sua tortura. As algemas estavam tão apertadas que durante 16 horas, até que foram retiradas, ele não conseguiu pensar em nada a não ser na dor. Seus ombros sofreram danos permanentes. Nos dez meses seguintes ele foi transferido entre várias cadeias no centro do Iraque. Não fazia idéia do que significavam essas transferências e não tinha meios para informar sua mulher de que continuava vivo. Nem mesmo no dia de sua libertação conseguiu descobrir quais eram as acusações contra ele. [...]
Ele não ficou especialmente surpreso com sua prisão, nem sua mulher. Ambos conheciam, todo mundo conhecia alguém que havia sido detido por algum tempo, talvez torturado e então libertado. As pessoas de repente voltavam a aparecer no trabalho, não falavam sobre suas experiências e ninguém ousava perguntar - havia informantes demais em toda parte, e uma curiosidade inadequada podia levar alguém à prisão. Alguns voltavam em caixões lacrados -e era estritamente proibido abri-los.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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