São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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Ao mesmo tempo didático e penetrante, "O Vocabulário de Deleuze", de François Zourabichvili, desfaz mal-entendidos sobre a obra de um dos filósofos mais controvertidos do pós-guerra

O pensamento futuro em gestação

BENTO PRADO JR.
COLUNISTA DA FOLHA

Paradoxalmente, o êxito fulminante de [Gilles] Deleuze [1925-95], dentro e fora da universidade, jamais lhe garantiu a recepção adequada. Não é apenas a alergia da filosofia analítico-escolar a seu estilo que se opõe à compreensão de seus escritos. Do lado de seus inúmeros adeptos e seguidores, freqüentemente, a mera mimese de seu estilo desviante, em relação à tradição, esconde uma incompreensão de seu pensamento comparável à de seus inimigos.
O mal-entendido reside em sua obra filosófica (a partir de "Diferença e Repetição"), já que sua admirável obra de historiador da filosofia recebeu entusiástica e merecida acolhida. É por essa razão que devemos agradecer à tradução brasileira do livro de François Zourabichvili, recém-publicada sob o título de "O Vocabulário de Deleuze" (ed. Relume-Dumará). Trata-se de trabalho extremamente útil por sua eficácia, digamos, "didática", que não lhe impede de nos levar ao mais fundo da obra de Deleuze. Explicar o estilo de Deleuze -seu caráter não metafórico- é, ao mesmo tempo, mostrar como ele não é um revestimento externo de seu pensamento e como os conceitos exigem uma linguagem que os exprima literalmente.
Em clara contradição com a regra wittgensteiniana que reza: "Para filosofar, deve-se escrever poeticamente". O livro permite ao leitor uma conversão de seu olhar, que, espontaneamente, seria conduzido numa má direção pela linguagem pouco escolar do filósofo, levando-o ao puro delírio. Modestamente, o livro limita-se à explicação de 20 conceitos ou expressões-chave do filósofo da "Diferença", devolvendo-os à sua literalidade e deles retirando o ar aparentemente misterioso.
Expressões enigmáticas como "cristal do tempo", "distribuição nômade", "máquina de guerra", "ritornelo", "síntese disjuntiva" são devolvidas à sua significação prosaica e a seu poder de iluminação.
Como este pequeno livro levanta, assim, o léxico de Deleuze não exige necessariamente uma leitura linear. Aconselho, aliás, o leitor a começar pelo meio da obra, com o verbete consagrado ao conceito de "problema". Trata-se de uma entrada privilegiada, que não mostra apenas a importância de [Henri] Bergson [1859-1941] na filosofia de Deleuze como marca algo de essencial na estratégia de seu pensamento. Para compreendê-lo, é preciso dissolver a concepção corrente da filosofia como uma verdade ou um saber já dados, que ao filósofo cabe apenas trazer à luz em suas proposições.
Nessa visão "tola" da filosofia (a "tolice" é um conceito fundamental da filosofia de Deleuze), o problema é, por assim dizer, precedido por sua solução. Na contramão dessa visão, é preciso conceber o problema como invenção ou criação que dissolve os falsos problemas da tradição e repõe o pensamento em movimento. Sublinhemos: o pensamento, e não o conhecimento.
Pois o problema filosófico não remete, como o problema científico, à instância dos estados-de-coisas. Por essência, o discurso filosófico opõe-se tanto às proposições científicas como às expressões artísticas: nem sistema proposicional nem signos em registro metafórico.

Formular uma pergunta
A tarefa da prosa filosófica não é a de encontrar solução para um problema já pronto, mas formular uma pergunta que não deixa intacta a geografia da filosofia, que a redesenha em toda sua extensão. Como dizia nosso saudoso amigo Gérard Lebrun, citando F. Zourabichvili, no que parece ter sido seu último texto: "... (Conviria aqui) prestar atenção nas páginas que Gilles Deleuze consagrou à posição dos problemas como operação característica da filosofia, à criação dos conceitos que ela requer e às dificuldades muito específicas que ela encontra" ("Notions de Philosophie", vol. 3, Denis Kambouchner [org.], Folio Essais, Gallimard, 1995, págs. 607-609).
Lebrun, como Deleuze, faz aqui do devir um traço essencial do pensamento filosófico. Passando da história da filosofia para a filosofia, sem descontinuidade maior, o último acentua a dimensão do futuro como crucial no pensamento. De Nietzsche a Foucault, aliás, já estava presente na história da filosofia a idéia dos filósofos futuros. E eu mesmo, há já quase 30 anos, escrevia: "A filosofia do senso comum quer que pensemos como de fato pensamos. A questão da filosofia é outra -por que pensamos assim? Mais precisamente -por que já não podemos pensar exatamente assim?".
Na base desse privilégio do devir encontramos a osmose ou a interface proposta por Deleuze entre pensamento e vida. Mais uma vez aí se revela a presença de Bergson no centro da obra de nosso autor (mas também a de Espinosa [1632-77], num curioso entrecruzamento entre a filosofia da duração e a filosofia que compreende a eternidade como "a própria existência enquanto concebida como seqüência necessária da mera definição de coisa eterna" -"Ética", 1, definição 8). O que reencontramos em Deleuze não está longe da bifurcação da idéia de duração nas esferas diferentes, mas solidárias, do pensamento e da vida.
Não é apenas a vida que é criadora; o próprio pensamento, quando se torna pensamento em duração, participa da geração do objeto, operando uma superação da própria condição humana (ver nosso livro sobre Bergson, "Presença e Campo Transcendental", Edusp, 1989, pág. 37). Pensamento que, ao avesso de Heidegger, se exprime na disposição afetiva da alegria, e não da angústia.
No seu verbete "vida (ou vitalidade) não orgânica", Zourabichvili escreve: "Em última instância, a intensidade é um critério imanente porque a auto-afirmação de nossas faculdades coincide com a afirmação do novo, da saída, do afeto e com isso determina a intensidade -sejam quais forem os terrores que a acompanhem- como alegria".
Para encerrar, nuancemos: o parentesco filosófico entre Deleuze e Bergson parece apagar-se, dando lugar a uma radical divergência, quando passamos da relação pensamento/vida, para a relação pensamento/ vida política. Com efeito, parece haver conflito entre o pensamento político do "intelectual orgânico da Terceira República" e a dimensão obviamente "anarcôntica" dos conceitos básicos de Deleuze, como de "desterritorialização" e de "território", de "distribuição nômade" ou de "máquina de guerra".


Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP.


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