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Ao mesmo tempo didático e penetrante, "O Vocabulário de Deleuze", de François Zourabichvili,
desfaz mal-entendidos sobre a obra de um dos filósofos mais controvertidos do pós-guerra
O pensamento futuro em gestação
BENTO PRADO JR.
COLUNISTA DA FOLHA
Paradoxalmente, o êxito fulminante de [Gilles] Deleuze
[1925-95], dentro e fora da
universidade, jamais lhe garantiu a recepção adequada. Não é
apenas a alergia da filosofia analítico-escolar a seu estilo que se opõe à
compreensão de seus escritos. Do lado de seus inúmeros adeptos e seguidores, freqüentemente, a mera
mimese de seu estilo desviante, em
relação à tradição, esconde uma incompreensão de seu pensamento
comparável à de seus inimigos.
O mal-entendido reside em sua
obra filosófica (a partir de "Diferença e Repetição"), já que sua admirável obra de historiador da filosofia
recebeu entusiástica e merecida acolhida. É por essa razão que devemos
agradecer à tradução brasileira do livro de François Zourabichvili, recém-publicada sob o título de "O
Vocabulário de Deleuze" (ed. Relume-Dumará). Trata-se de trabalho
extremamente útil por sua eficácia,
digamos, "didática", que não lhe impede de nos levar ao mais fundo da
obra de Deleuze. Explicar o estilo de
Deleuze -seu caráter não metafórico- é, ao mesmo tempo, mostrar
como ele não é um revestimento externo de seu pensamento e como os
conceitos exigem uma linguagem
que os exprima literalmente.
Em clara contradição com a regra
wittgensteiniana que reza: "Para filosofar, deve-se escrever poeticamente". O livro permite ao leitor
uma conversão de seu olhar, que,
espontaneamente, seria conduzido
numa má direção pela linguagem
pouco escolar do filósofo, levando-o
ao puro delírio. Modestamente, o livro limita-se à explicação de 20 conceitos ou expressões-chave do filósofo da "Diferença", devolvendo-os
à sua literalidade e deles retirando o
ar aparentemente misterioso.
Expressões enigmáticas como
"cristal do tempo", "distribuição
nômade", "máquina de guerra", "ritornelo", "síntese disjuntiva" são
devolvidas à sua significação prosaica e a seu poder de iluminação.
Como este pequeno livro levanta,
assim, o léxico de Deleuze não exige
necessariamente uma leitura linear.
Aconselho, aliás, o leitor a começar
pelo meio da obra, com o verbete
consagrado ao conceito de "problema". Trata-se de uma entrada privilegiada, que não mostra apenas a
importância de [Henri] Bergson
[1859-1941] na filosofia de Deleuze
como marca algo de essencial na estratégia de seu pensamento. Para
compreendê-lo, é preciso dissolver a
concepção corrente da filosofia como uma verdade ou um saber já dados, que ao filósofo cabe apenas trazer à luz em suas proposições.
Nessa visão "tola" da filosofia (a
"tolice" é um conceito fundamental
da filosofia de Deleuze), o problema
é, por assim dizer, precedido por
sua solução. Na contramão dessa visão, é preciso conceber o problema
como invenção ou criação que dissolve os falsos problemas da tradição e repõe o pensamento em movimento. Sublinhemos: o pensamento, e não o conhecimento.
Pois o problema filosófico não remete, como o problema científico, à
instância dos estados-de-coisas. Por
essência, o discurso filosófico opõe-se tanto às proposições científicas
como às expressões artísticas: nem
sistema proposicional nem signos
em registro metafórico.
Formular uma pergunta
A tarefa da prosa filosófica não é a
de encontrar solução para um problema já pronto, mas formular uma
pergunta que não deixa intacta a
geografia da filosofia, que a redesenha em toda sua extensão. Como dizia nosso saudoso amigo Gérard Lebrun, citando F. Zourabichvili, no
que parece ter sido seu último texto:
"... (Conviria aqui) prestar atenção
nas páginas que Gilles Deleuze consagrou à posição dos problemas como operação característica da filosofia, à criação dos conceitos que ela
requer e às dificuldades muito específicas que ela encontra" ("Notions
de Philosophie", vol. 3, Denis Kambouchner [org.], Folio Essais, Gallimard, 1995, págs. 607-609).
Lebrun, como Deleuze, faz aqui do
devir um traço essencial do pensamento filosófico. Passando da história da filosofia para a filosofia, sem
descontinuidade maior, o último
acentua a dimensão do futuro como
crucial no pensamento. De Nietzsche a Foucault, aliás, já estava presente na história da filosofia a idéia
dos filósofos futuros. E eu mesmo, há
já quase 30 anos, escrevia: "A filosofia do senso comum quer que pensemos como de fato pensamos. A
questão da filosofia é outra -por
que pensamos assim? Mais precisamente -por que já não podemos
pensar exatamente assim?".
Na base desse privilégio do devir
encontramos a osmose ou a interface proposta por Deleuze entre pensamento e vida. Mais uma vez aí se
revela a presença de Bergson no centro da obra de nosso autor (mas
também a de Espinosa [1632-77],
num curioso entrecruzamento entre
a filosofia da duração e a filosofia
que compreende a eternidade como
"a própria existência enquanto concebida como seqüência necessária
da mera definição de coisa eterna"
-"Ética", 1, definição 8). O que
reencontramos em Deleuze não está
longe da bifurcação da idéia de duração nas esferas diferentes, mas solidárias, do pensamento e da vida.
Não é apenas a vida que é criadora;
o próprio pensamento, quando se
torna pensamento em duração, participa da geração do objeto, operando uma superação da própria condição humana (ver nosso livro sobre
Bergson, "Presença e Campo Transcendental", Edusp, 1989, pág. 37).
Pensamento que, ao avesso de Heidegger, se exprime na disposição
afetiva da alegria, e não da angústia.
No seu verbete "vida (ou vitalidade) não orgânica", Zourabichvili escreve: "Em última instância, a intensidade é um critério imanente porque a auto-afirmação de nossas faculdades coincide com a afirmação
do novo, da saída, do afeto e com isso determina a intensidade -sejam
quais forem os terrores que a acompanhem- como alegria".
Para encerrar, nuancemos: o parentesco filosófico entre Deleuze e
Bergson parece apagar-se, dando lugar a uma radical divergência, quando passamos da relação pensamento/vida, para a relação pensamento/
vida política. Com efeito, parece haver conflito entre o pensamento político do "intelectual orgânico da
Terceira República" e a dimensão
obviamente "anarcôntica" dos conceitos básicos de Deleuze, como de
"desterritorialização" e de "território", de "distribuição nômade" ou
de "máquina de guerra".
Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos
(SP) e professor emérito da USP.
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