São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Índice

+ cultura

Antecipando-se a Freud por meio de fantasias edípicas e uma voz narrativa que oscila entre o adulto e o infantil, o inglês J.M. Barrie criou, com "Peter Pan", uma obra sem antecedentes na literatura

Mãe oculta

NICOLA SHULMAN
DO "TIMES LITERARY SUPPLEMENT"

Peter Pan completa cem anos neste mês, mas qual é a idade de Peter Pan? Os autores de obras de ficção infantil muitas vezes evitam definir a idade de seus personagens, para não prescrever a idade de seus leitores. Mas, com relação a esse ponto, [o escritor] J.M. Barrie [1860-1937] não é tão vago quanto enganosamente preciso e -mesmo que não levemos em conta as intermináveis reescrituras feitas por Barrie e nos limitemos às duas versões mais conhecidas da história (a peça de 1904 e o livro de 1911)- internamente contraditório.
Peter, nos diz a história, "ainda tem seu primeiro riso" e ainda conserva todos os seus dentes de leite, que ele rilha na direção da sra. Darling quando esta acorda e o encontra no quarto das crianças. No entanto ele é tão alto quanto Wendy, a mais velha dos três filhos da família Darling e que já tem competência para realizar trabalhos como costura e faxina. Para os peles-vermelhas, ele é "o grande pai branco".


O livro é repleto de personagens e objetos que não são nem uma coisa nem outra ou, então, que são duas coisas ao mesmo tempo


Além disso, não pode ser um menino muito pequeno, já que tem idade suficiente para que, respectivamente, Wendy, Tiger Lily e Sininho -uma "fada comum", que usa linguagem chula, veste penhoar à noite e não é nenhuma ingênua ou santinha- nutram esperanças amorosas relacionadas a ele. A contradição é evidentemente intencional e faz parte do plano de Barrie de criar, com Peter, uma pessoa impossível -o equivalente aos desenhos de [M.C.] Escher [1898-1972] de escadas e rios que descem para cima. Entretanto um dos efeitos dessa confusão intencional é gerar um campo muito amplo de interpretação.
Diretores de teatro, ilustradores e cineastas podem retratar Peter Pan segundo suas idéias próprias sobre o que deve ser uma criança, e os resultados podem ser os baixinhos que vivem em cogumelos vistos nas ilustrações de Mabel Lucie Atwell, o senhor de gangue tribal da produção dirigida por Trevor Nunn em 1982, ou o belo e narcísico Peter Pan pré-adolescente de "Peter Pan", de P.J. Hogan (2003). No século 20, a impressão que se tem é que o retrato que pintamos de Peter Pan reflete o que pensamos das crianças -ou o que nos é permitido pensar delas.
Durante muito tempo, o papel de Peter Pan no palco foi representado por mulheres jovens, num resquício dos últimos tempos do teatro vitoriano. A presença de uma mulher núbil no papel, um fator franco de atração para os gostos heterossexuais adultos dos pais presentes no teatro, afastava a atenção das questões complicadas da sexualidade infantil, ódio entre irmãos e morte infantil que infestam a peça e que podem ser definidas como tudo o que Walt Disney omitiu de seu desenho animado, criado em 1953.

Lado sinistro
Cem anos atrás, uma energia social considerável era gasta para assegurar que ser "criança totalmente" significasse ser todo inocência e alegria. Um século mais tarde, porém, ser criança quer dizer algo muito diferente. Assim, os tratamentos recentes dados a "Peter Pan" têm se dado a muito trabalho para trazer à tona o lado mais sinistro da história, especialmente os aspectos que, acidentalmente, mas com precisão, prenunciam o trabalho de Freud.
Qualquer adulto que conheça a história apenas da versão Disney ou de pantomimas ou, então, que não tenha lido o livro desde que era criança, não poderá deixar de se espantar não com a inocência de Barrie, mas com sua sagacidade incomum. Recapitulando brevemente: a história de "Peter Pan" é a de um menino que foge da perspectiva de virar adulto e vai para um lugar onde poderá continuar a ser criança para sempre, chefiando um bando de "meninos perdidos" que foram abandonados por suas mães.
Certa noite, ele invade o quarto das crianças de uma família de Londres e rouba a garotinha Wendy Darling, levando-a para sua terra para que ela passe a "ser" a mãe dos meninos. Peter Pan leva a ela e a seus dois irmãos menores, voando, para uma ilha muito distante. Essa ilha, a Terra do Nunca, constitui uma espécie de anteprojeto de parque temático: a ilha oferece áreas de brincadeiras "temáticas" -piratas, índios, sereias, fadas- nas quais as crianças podem perpetuamente se divertir com brincadeiras que as emocionam e assustam, mas não lhes fazem mal.
O inimigo de Peter Pan é o Capitão Gancho, um pirata que estudou em Eton (um dos dois colégios privados mais antigos e respeitados da Inglaterra) e que é perseguido pela morte, sob a forma de um crocodilo que engoliu um relógio (biológico). A morte já arrancou o braço direito do Capitão Gancho (cortado pelo eterno menino Peter, que o deu de alimento ao crocodilo), e vive "lambendo os beiços na expectativa de abocanhar o resto de mim".
Os piratas concebem um plano de vingança: "Vamos roubar a mãe dos garotos e fazer dela a nossa mãe". "É um plano magistral!", diz Gancho. "Vamos capturar as crianças e levá-las ao navio. Nós obrigaremos os meninos a caminharem sobre a prancha (e então saltar no mar), e Wendy será nossa mãe."

Outro na minha cama
Enquanto isso, Wendy -com seu instinto materno desperto no instante de sua chegada à Terra do Nunca pelo fato de uma casa ter sido erguida em volta de seu corpo caído- se recuperou a ponto de poder cerzir as meias dos meninos. Ela lhes conta uma história sobre sua própria mãe. Uma mãe de verdade, diz ela, sempre deixará a janela aberta para seus filhos voltarem para casa, voando. Mas Peter discorda. Ele uma vez tentou voar de volta para a sua mãe, "mas a janela estava trancada, minha mãe tinha esquecido de mim, e havia outro menininho dormindo em minha cama".
Depois que Peter frustra o plano dos piratas, as crianças voam para casa, onde a mãe de Wendy adota todos os meninos perdidos -todos menos Peter, que permanece sem ser visto do lado de fora do quarto, olhando o que se passa.
É espantoso pensar em Barrie escrevendo uma parábola tão abertamente edipiana, enquanto os termos nas quais se poderia descrevê-la ainda estavam sendo formulados na cabeça de um médico vienense. No final do século 20, porém, esses termos já eram de uso corrente, especialmente em decorrência de duas obras que formularam a pergunta sobre o porquê de Peter Pan não virar adulto.
Uma delas foi o estudo brilhante e incisivo de Jacqueline Rose "The Case of Peter Pan or The Impossibility of Children's Fiction" [O Caso de Peter Pan ou a Impossibilidade da Ficção Infantil, University of Pennsylvania Press, 1984].

Dramaturgo de sucesso
O livro propunha a idéia sinistra de que Peter Pan não cresce "porque outra pessoa prefere que ele não o faça" -implicando não apenas Barrie mas todos os adultos que lêem ou assistem a "Peter Pan", por aceitarem a licença que Barrie lhes oferece para enxergar as crianças e a própria infância desde uma perspectiva de voyeur. Cinco anos antes tinha sido lançada "J.M. Barrie and the Lost Boys" [J.M. Barrie e os Meninos Perdidos, Yale University Press], a biografia de Andrew Birkin que analisa a relação de Barrie com os filhos da família Llewelyn-Davies.
O livro conta como o irmão mais velho de J.M. Barrie, um menino alto e atlético, morreu aos 13 anos, num acidente de patinação, fala dos esforços de Barrie para consolar sua mãe e de como, depois disso, o próprio Barrie quase não cresceu mais.
Em 1897, Barrie já se transformara num dramaturgo de grande sucesso, unido a uma atriz num casamento infeliz e, possivelmente, destituído de sexo. Certo dia, enquanto está passeando com seu cão em Kensington Gardens, ele conhece uma família de garotos incomumente belos e brinca com eles.
Os meninos são filhos de um advogado, Arthur Llewelyn-Davies, e de sua mulher, Sylvia, ambos os quais Barrie conheceria socialmente um pouco mais tarde. Pouco a pouco, por meio de sua simpatia e também de ajuda financeira, Barrie vai conquistando espaço junto da família Llewelyn-Davies.
Ele começa a levar Sylvia e os meninos para passar férias caras com ele em casas alugadas, deixando Arthur em Londres. Um plano magistral, de fato. Durante um desses passeios ele tira as célebres fotos que dariam origem a "Peter Pan": imagens dos garotos Llewelyn-Davies, nus e vestidos, brincando de uma "aventura pirata" que Barrie imaginara para eles representarem.
Barrie faz questão de entregar esse álbum a Arthur Llewelyn-Davies, que imediatamente o perde. Então Arthur e Sylvia morrem de câncer, e Barrie adota os meninos órfãos. Michael e George, os favoritos dele, morrem muito jovens. Os outros viram adultos e passam sua vida constrangidos pelo vínculo que os une a Barrie e "Peter Pan".
O detalhe do livro de Birkin mostra todo o mal feito por esse benfeitor generoso e persistente e passa por cima das ambiguidades morais do caso. Os criadores de um filme recente sobre o tema ("Em Busca da Terra do Nunca") não tiveram habilidade suficiente para mostrar um homem fugindo de seu próprio escrutínio e, em conseqüência, precisaram mudar todos os fatos do caso.
Mas a ambigüidade, para o "Peter Pan" de Barrie, não é problema. O livro é repleto de personagens e objetos que não são nem uma coisa nem outra ou, então, que são duas coisas ao mesmo tempo: um homem se faz passar por cão, uma cadela se faz passar por mulher, uma menininha se faz passar por mãe, Peter Pan se faz passar pelo Capitão Gancho, um dedal se faz passar por beijo.
Há também outros tipos de ambigüidade. Jacqueline Rose expôs a pouca confiabilidade da posição narrativa, que supostamente se dirige às crianças de dentro da própria infância: "Wendy sabia que teria que crescer. Você sempre sabe disso depois de completar 2 anos. Dois anos é o começo do fim", mas que, ao mesmo tempo, especula sobre a infância de fora para dentro: "E vamos embora como as coisinhas mais insensíveis do mundo, que é o que as crianças são, mas tão sedutoras". Se "nós" somos as crianças, quem é que nos acha tão sedutoras?
Rose também observou que a mesma instabilidade contagia a linguagem do livro, de modo que ela às vezes é de uma simplicidade digna de cartilha, própria para uma criança -"a luta foi curta e dura"-, mas, em outras partes, é dotada de uma impenetrabilidade jamesiana: "Mesmo isso e a insegurança acrescida da vida que ele levava, devido à pertinácia do crocodilo, dificilmente justificam um sentimento vingativo tão implacável e maligno".
É precisamente essa mobilidade de tom que imita a interpretação telescópica do mundo que é própria das crianças. É essa a lógica que permite que se seja grande e pequeno ao mesmo tempo, que se esteja em segurança e ao mesmo tempo correndo perigo, e que, uma vez que Barrie a capturou e lhe conferiu voz, lhe permitiu brincar com a idade, em "Peter Pan", do mesmo modo que Lewis Carroll brinca com o tamanho em "Alice no País das Maravilhas". Não existe precedente para isso.
O plano original de Barrie para "Peter Pan" era que fosse uma "peça de fadas", o que ele definiu como uma peça em que "todos os personagens são crianças, com uma visão da vida infantil" e, à medida que a obra foi avançando, elas foram ficando mais infantis.
Mas nem todos os personagens de "Peter Pan" são crianças -apenas os masculinos. De fato, a infantilidade dos personagens masculinos é definida em oposição específica às características nitidamente adultas de auto-sacrifício, cuidado, curiosidade sexual, ciúmes sexuais e ternura maternal manifestadas por Sininho, Tiger Lily, Sra. Darling, as Sereias, a criada Liza (que revela ser a mãe de um dos meninos perdidos, Slightly) e a Pássara do Nunca. Mesmo Wendy, que é criança, é "mulher em cada centímetro dela", e, na lógica espantosa de Peter Pan, o que comprova sua condição de mulher adulta é o fato de ela ter consciência de que é "apenas uma menininha" e não poder realmente ser a mãe dos meninos perdidos.
Nenhum dos personagens masculinos demonstra tanto domínio sobre a questão de quem ou o que poderia ser sua mãe -fraqueza que o autor reconhece como sendo sua.
Quantas vezes na história da literatura um escritor trouxe à tona um tema novo? Barrie o fez, e entre os muitos milhares de palavras escritas sobre "Peter Pan" poucas lhe atribuem o crédito devido por isso. Tampouco existem muitos livros que prefiguram o futuro com precisão, mesmo no campo da literatura infantil, no qual a invenção de outros mundos oferece amplo âmbito para tais extrapolações. C.S. Lewis, por exemplo, em "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas", imaginou um mundo no qual "era sempre inverno e nunca Natal" -precisamente o inverso da situação que vivemos hoje.
Mas os casos de meninos presos nessa condição vêm aumentando em número e influência, tanto na vida real quanto na literatura, desde D.H. Lawrence até Nick Hornby, e não dão sinais de estar diminuindo em nenhuma das duas situações.

Algumas edições de "Peter Pan"
Trad. Paulo Mendes Campos, Ediouro, 104 págs., R$ 24,90.
Trad. Dinah de Abreu Azevedo, ed. Loyola, 110 págs., R$ 28,80.
"Peter Pan e Wendy", trad. Hildegard Feist, Cia. das Letrinhas, 224 págs., R$ 33,00.


Nicola Shulman é crítica literária.
Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: + autores: O pensamento futuro em gestação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.