São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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Tendência da historiografia moderna em desfazer os mitos pessoais esbarra na necessidade psicológica dos indivíduos de se reconhecerem em líderes políticos, grandes autores e cientistas ou estrelas midiáticas

Heróis por acidente

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Vivemos numa era de história "a-heróica" ou anti-heróica, em diversos sentidos. Muitos historiadores profissionais transferiram seus interesses do que chamam de "alta política" para a história da sociedade ou a cultura popular, dando mais ênfase aos movimentos coletivos do que aos indivíduos e evitando o que eles passaram a chamar de modo "triunfalista" de escrever sobre o passado.
A biografia de um indivíduo ainda é um tema popular para livros e filmes, mas muitas dessas biografias são anti-heróicas no sentido de que desmascaram seus sujeitos, ao invés de glorificá-los, enfatizando suas fraquezas tanto quanto suas forças, ou ainda mais.


Fica claro que diversos santos têm a mesma biografia


Apesar dessas tendências, a maioria das pessoas ainda precisa de heróis, pelo menos durante algum tempo. Podemos dizer que eles são psicologicamente necessários. Algumas pessoas rezam para santos, enquanto outras reverenciam libertadores nacionais, grandes autores e cientistas ou estrelas como Marilyn Monroe [1926-62] e Elvis Presley [1935-77] (que continuam sendo objeto de culto várias décadas após suas mortes não apenas nos EUA mas também em outros países, como o Japão).
Heróis e heroínas desse tipo atuam como modelos ou símbolos de nossas identidades ou nossos valores culturais. Ver um determinado indivíduo sob uma luz heróica também pode ser uma expressão de esperança no futuro.

Oferta e procura
Por isso, eleitores de muitos países, do Reino Unido ao Brasil, com freqüência vêem um novo presidente ou um novo primeiro-ministro como uma espécie de super-homem ou "salvador da pátria", até que o líder comece a agir de maneira demasiado humana e surja a desilusão. O herói pode até se transformar em vilão, já que os vilões também são psicologicamente necessários.
A maioria das pessoas procura vilões (Saddam Hussein para alguns, George W. Bush para outros) aos quais atribuir a culpa por desastres, porque é difícil aceitar o fato de que um único indivíduo (mesmo Hitler [1889-1945] ou Stálin [1879-1953]) não possa ser totalmente responsável por um processo complexo como um genocídio, uma guerra ou a inflação. Em suma, como [Otto von] Bismarck [fundador e primeiro premiê da Alemanha, 1815-1898] comentou certa vez, todo mundo precisa de alguém para amar e de alguém para odiar.
Alguns indivíduos realmente praticam atos heróicos, seja de bravura ou generosidade. Do mesmo modo, não creio que eu seja especialmente ou indevidamente cínico se afirmar que o suprimento de heróis nunca é suficiente para atender à demanda de símbolos religiosos ou políticos ou se sugerir que os indivíduos que praticam atos realmente heróicos não levam vidas completamente heróicas, especialmente nos bastidores ou depois que os fotógrafos vão embora. Foi certamente por isso que Napoleão [1769-1821] disse que nenhum homem é um herói para seu camareiro. Existe uma lacuna entre oferta e procura assim como existe entre o ato heróico e a vida heróica.
A lacuna é superada por um processo que poderíamos chamar de "mitologização".
"Mito" é uma palavra que tem muitos significados. Aqui a estou usando para me referir às histórias que uma determinada cultura considera especiais ou mesmo sagradas, histórias que têm um significado simbólico e cujos protagonistas são maiores que a vida, sejam eles sobre-humanos ou subumanos.

Jornal, TV e cinema
Originalmente transmitidos por via oral, os mitos também circulam em veículos impressos, em filmes ou na televisão. Não sabemos como surgiram os mitos da Grécia Antiga ou da China, mas no mundo atual, em que as reputações sobem e descem muito rapidamente graças à velocidade da comunicação, não é difícil observar o processo da mitologização em funcionamento.
O processo muitas vezes começa quando uma pessoa percebe alguma semelhança entre os atos de um determinado indivíduo -Fidel Castro, por exemplo, ou Madre Teresa- e um tipo cultural específico -como um líder nacional ou um santo que já é tema de um mito.
A próxima etapa nesse processo é atribuir ao novo herói algumas das qualidades desse tipo cultural. Se um bandido -por exemplo, Lampião- rouba dos ricos, provavelmente será visto ou lembrado como alguém que também dá aos pobres, porque é isso que fariam os bons bandidos, como Robin Hood, na Inglaterra, ou Diego Corrientes, na Espanha. Se um líder político morre em circunstâncias misteriosas, como Emiliano Zapata [1879-1919], no México, ou o rei dom Sebastião [1554-1578], de Portugal, em um campo de batalha no norte da África, especialmente se sua época ou liderança for seguida de um desastre, geralmente se dirá que ele não está realmente morto.
Está apenas dormindo ou escondido e voltará em breve para trazer a seu povo justiça ou mesmo o que se considerava uma era de ouro. Nessa forma elaborada, o mito circula por via oral assim como em outros veículos, gradualmente acumulando detalhes.
Esses detalhes muitas vezes derivam das vidas de antigos heróis. Se examinarmos as vidas dos santos, por exemplo, fica claro que diversos santos têm a mesma biografia. São Carlos Borromeo [1538-1584], o austero arcebispo de Milão, por exemplo, já era visto durante sua vida como um segundo santo Ambrósio [339-397], que havia sido bispo de Milão. De maneira semelhante, são Felipe Neri de Florença [1515-1595] era considerado um segundo são Francisco de Assis.

Reciclagem
Os reis costumavam ser vistos ou pelo menos elogiados como um segundo Alexandre, o Grande [356 a.C.-323 a.C.], um segundo Augusto [63 a.C.-14] ou um segundo Constantino [280-337], e algumas histórias que circulam sobre eles já tinham sido contadas sobre esses ilustres antecessores.
Essa reciclagem é típica das tradições orais. É uma das maneiras como as histórias são apresentadas como relevantes para a vida cotidiana dos ouvintes. Se elas tiverem interesse para os ouvintes, detalhes particulares das histórias serão lembrados e transmitidos; caso contrário os detalhes serão esquecidos. Assim, um determinado indivíduo é dotado de uma biografia heróica que segue uma trama estereotipada.
Os estudiosos podem descobrir que não há evidência confiável de grande parte do que se diz ou se escreve sobre um determinado herói ou podem escrever com a intenção deliberada de desmitologizar ou desmascarar aquela pessoa, reduzi-la a seu tamanho humano comum.
Ao mesmo tempo, as histórias continuam circulando até que seja hora de lhes atribuirmos um novo protagonista. A necessidade de heróis não desaparecerá. Podemos dizer que a maturidade psicológica é marcada não pela rejeição de todos os heróis, mas pela capacidade de admirá-los sem perder a consciência de suas fraquezas humanas.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar).
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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